Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A balada do jabá interminável

MÍDIA & GÍRIA

Alexandre Figueiredo (*)


"(…) o brasileiro ainda não se livrou daquele instinto irrefreável de copiar tudo que pareça ?atitude?". ("Tolice instantânea", Veja, 20/8/03)


A frase acima ilustra a reportagem "Tolice instantânea", que mostra um dos inúmeros modismos recentes que a chamada "galera irada", inspirada nos meios de comunicação igualmente "irados", adota no Brasil, o flash mob, que consiste no seguinte: uma galera se reúne para fazer um gesto e, pouquíssimo depois, vai embora. Um ato supérfluo, sem qualquer profundidade social nem cultural.

Mas esse modismo não será aqui tratado. Ele está aqui para ilustrar um repertório de tolices que a mídia dedicada ao público jovem joga para seu público, passivamente, consumir. Esse modismo imbecilizante é coisa relativamente antiga, de uns quase 20 anos, mas ganhou intensidade dos anos 90 para cá. É desse universo todo fabricado por uma mídia movida pelo célebre jabá e respaldado pelos jovens toda a imbecilidade que ricos mauricinhos e patricinhas (que, para variar, dizem odiar "mauricinhos e patricinhas" e negam ser esses tipos) mostram nas páginas de jornais, programas de TV e emissoras de rádio, principalmente as chamadas FMs jovens, da Jovem Pan 2 à 89 FM, com sua linguagem neurótica e seus textos "digestivos" e "ágeis".

Quem não se lembra do modismo da dance music farofa, também conhecida como "charola", "dance baba" ou "bate-estaca"? A mídia incentivava o jovem não só a consumir lixo eletrônico vindo da Europa, com seus intérpretes sem cara, sem identidade, amestrados por espertos produtores, como incitava a defender tais armações dançantes. Enfim, cantoras conhecidas apenas por um prenome e rappers conhecidos por siglas e algarismos. Grupos (des)conhecidos que faziam a festa de si mesmos, venerados por uma "galera" narcisista, cuja relação com a mídia vinha desde meados dos anos 80, com o consumismo alienante e precipitadamente adolescente do Xou da Xuxa.

Agora a mídia jovem cria sua principal armadilha, que é "brincar" com os significados das palavras, como forma de criar uma linguagem supostamente moderna e supostamente original para os jovens.

Primeiro, veio a alteração do termo "banda", do qual se apoiou o modismo das ditas "boys bands". A mídia da dance music queria, no Brasil, criar um culto aos seus intérpretes que seja igual ao dos roqueiros, que costumam se referir aos intérpretes genericamente como bandas, contrariando o costume popular, que se referia como "cantores", mesmo quando ninguém era cantor. Um Jean-Michel Jarre, por exemplo.

Quem é inteligente sabe que a palavra banda é coletivo de instrumentistas. Mas a mídia não só do Brasil como dos EUA quis, para desespero dos músicos profissionais que levam tempo para aprender a tocar instrumentos e não criam uma boa música antes de muito ensaio e dedicação musical, confundir as mentes juvenis classificando grupos que não têm instrumentistas ? ou, quando muito, só um ? como "bandas".

Aí veio a epidemia. Qualquer grupo de pagode com dois cantores e três dançarinos era uma "banda". Qualquer Scheila Carvalho rebola e é considerada "musicista" pelos leigos. Na dance music, bastava juntar um amontoado de gente, atribuir-lhes alguma "atividade" musical (mesmo que seja apenas dublar playback), e eles viravam banda. E aí DJs de dance music, com suas rádios e revistas, difundiam o termo equivocado como se fosse "verdade universal".

Isso cria problemas em jornalistas jovens. Se um repórter despreparado ouve um produtor do programa Popstars falando que está preparando uma "banda" masculina, o pobre coitado vai escrever no jornal ou revista que esse grupo ? na verdade um grupo vocal cujos integrantes também dançam ? é uma "banda". Mesmo cantando músicas dos outros e não tocando instrumento algum.

O termo boy band é equivocado. Dessa onda toda, somente o Hanson pode ser definido como uma boy band. Seus componentes, garotos, tocam instrumentos, compõem suas músicas e até produzem seus discos. O resto, ou seja, grupos como Backstreet Boys, N’Sync, Five e derivados (tal como os antigos Menudo e New Kids On The Block) deveriam ser considerados boys choir (coro de garotos), e não boys bands.

Boys Not Band <
http://www.boysnotband.hpg.com.br
>, página do autor deste texto na internet, procura esclarecer com detalhes o assunto. Diante da ignorância reinante, um texto sobre o grupo vocal Rouge causou indignação entre os fãs somente porque diz que o grupo não é uma banda (apenas uma integrante toca instrumento, quando deveria haver pelo menos três instrumentistas, mais da metade do grupo). A deturpação do termo "banda" virou uma pegadinha que atingiu até um crítico da revista de rock Roadie Crew que, numa resenha do grupo Macacongs (cujo CD parodia a capa de um disco do Menudo), referiu-se ao Menudo como "banda", sem aspas.

Outro termo com significado adulterado e que resultou também em "pegadinha" é o da moda atualmente: a palavra "balada". Termo tradicionalmente associado à idéia de música lenta ou de história triste ? quem não se lembra de Balada triste, sucesso na voz do saudoso Agostinho dos Santos? ?, a palavra hoje é associada a "agito" e "vida noturna", com uma trilha sonora que nada tem a ver com música lenta, e sim com música eletrônica e, agora, qualquer música agitada.

Tratado como um tolo

De repente você ouve uma modelo e apresentadora de TV falando que não é "muito baladeira, não". Qualquer desavisado das gírias da moda deve, tranqüilamente, imaginar que a moça em questão não sabe tocar serestas ou compor canções românticas ou tristes. Mas a dita cuja quis dizer que não gosta de badalação. Enquanto isso, o "novo" sentido da palavra "balada" ? o de "agito" ? se espalha como um vírus pela mídia toda, a partir da mídia de dance music farofa. Sempre ela, sempre as Jovem Pan 2 e Luciano Huck da vida para dizer que gíria o garotão e a garotinha vão usar.

A palavra "balada", nesse sentido atual, é, portanto, uma gíria artificial. Não será a "gíria da geração", embora sua propagação seja ampla. Mas hoje qualquer jovem fala essa palavra, nesse sentido atual, como se fosse uma gíria criada naturalmente.

Talvez até exista uma lenda para explicar como veio esse sentido à palavra "balada". Um possível figurão da noite, sem querer, fez uma corruptela, falando "balada" quando queria falar "badala", uma abreviatura de "badalação". Mas, mesmo assim, essa expressão poderia ter caído no esquecimento. Com a sede de tendenciosismo da imprensa brasileira, segmentos dos mais diversos aderem à pegadinha de adotar esse jargão como se fosse também "seu". Agora até as "rádios rock" têm programas intitulados "Balada" disso ou daquilo. Sítios e seções de sítios também abusam do jargão, na tática goebbelsiana (alusão a Josef Goebbels, divulgador do nazismo. É dele a frase "toda mentira veiculada mil vezes se transforma em verdade") de fazer pegar uma idéia.

A alteração brusca da semântica de dadas palavras, um processo que existia antigamente, mas era natural, hoje parece se desenvolver num contexto de manipulação da opinião pública. Do contrário da coloquialidade espontânea de antigamente, hoje significados de palavras são artificialmente alterados. Até o termo rhythm and blues, que correspondia a uma versão dançante e elétrica do blues, hoje é atribuído a uma soul music melosa. O propósito, por parte dos setores da grande mídia, é criar um nível de compreensão nos jovens atuais diferente do das gerações anteriores, criando um conflito a partir das diferenças de entendimento. Um adulto entende uma coisa e o jovem de outra, a partir de uma mesma palavra.

E o que isso pode significar? Coisa pior, embora aparentemente uma gíria ou palavra com significado alterado em nada influa de positivo ou negativo. Mas, a partir disso, os jovens acabam rompendo com referenciais de outras gerações, subvertendo a lógica das palavras. E, o que é pior, uma palavra como "balada" poderá dar margem a polêmicas desnecessárias, que podem desviar o debate público de problemas mais graves. Será ótimo para os exploradores mediáticos da cultura jovem se enriquecerem, enquanto a "galera" tenta discutir se "balada" é música lenta ou música agitada.

Até quando o jovem será tratado como um tolo pela maioria dos meios de comunicação?

(*) Jornalista