SUSAN SONTAG
"Susan Sontag vê a dor", copyright Folha de S. Paulo, 24/08/03
"Em ?Ensaios sobre a Fotografia?, estudo clássico escrito no fim dos anos 70, Susan Sontag defendia que a força moral das fotos de guerra estaria neutralizada pelo excesso de exposição. Inundados por imagens capazes de causar indignação, teríamos perdido a capacidade de reagir.
Em seu livro mais recente, ?Diante da Dor dos Outros?, a escritora norte-americana revê o argumento e defende que abstrações como essa são irrelevantes em face do sofrimento real das vítimas. ?Há uma realidade que existe, apesar das tentativas de enfraquecer sua autoridade?, diz.
Sontag, 70, falou à Folha na última terça-feira, poucas horas depois do atentado contra a sede da ONU em Bagdá que matou o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello e ao menos outras 22 pessoas, além de deixar mais de cem feridas.
Lançado nesta semana, o livro é uma reflexão a respeito das representações da guerra e do efeito que exercem sobre quem as vê. Sontag traça a evolução da iconografia sobre o tema, das pinturas de Goya (1746-1828) à Guerra Civil Espanhola, das imagens do Holocausto às fotos dos atentados de 11 de setembro de 2001, e expõe seu raciocínio com elegância e erudição, exercitado em romances como ?O Amante do Vulcão? (1993) ou na coletânea de ensaios ?A Vontade Radical? (1987).
Em entrevista por telefone, de Nova York, Sontag desdobra as afirmações feitas no livro, nega a semelhança entre a guerra no Iraque e a do Vietnã e se opõe aos intelectuais que aceitam tomar o sofrimento por espetáculo.
Folha – Como o atentado ao escritório da ONU em Bagdá interfere no rumo do conflito?
Susan Sontag – Não sei. Nesse momento, só consigo pensar no grande brasileiro que acaba de morrer. No período em que morei em Sarajevo, conheci oficiais da ONU, e Sérgio Vieira de Mello foi um deles. Era uma pessoa muito importante, distinta, experiente e civilizada. Tinha uma grande carreira pela frente. Podia ter virado secretário-geral [da ONU].
Folha – O fato de Vieira de Mello ter sido morto por terroristas iraquianos não muda sua forma de encarar essa guerra?
Sontag – As pessoas falam em guerra no Iraque. Eu prefiro falar na invasão, conquista e colonização do Iraque. Não é tão difícil para os americanos invadir e conquistar, mas é um pouco mais difícil governar, como estão vendo agora. Vieira de Mello não era inimigo dos EUA. Pelo contrário, tinha excelentes relações com Washington. O que a resistência iraquiana está dizendo com esse assassinato é que não faz distinção entre a ONU e os EUA. Ambos são invasores. Só gostaria de dizer que sinto muita dor.
Folha – Há quem já fale numa ?vietnamização? do Iraque. Faz sentido essa expressão?
Sontag – Não. Aquela era uma ?guerra?. Essa é uma conquista, e praticamente sem oposição. No primeiro caso, havia um governo de fachada no sul. Agora, há um governo que foi deposto. Não acho que sejam comparáveis. Quem pensa nesses termos o faz provavelmente por otimismo, por achar que haverá resistência aos americanos.
Folha – Em que ?Diante da Dor dos Outros? difere de ?Ensaios sobre a Fotografia??
Sontag – Os ensaios do primeiro livro foram escritos porque eu me interessei por fotografia. Queria entender por que as pessoas fotografam, questões ligadas ao sentido moral e estético da fotografia. Já ?Diante da Dor dos Outros? começou pelo ângulo da guerra. O livro trata de uma realidade que as pessoas acreditam conhecer pelas fotos, mas que não conhecem.
Folha – De que modo sua experiência em Sarajevo contribuiu para essa mudança de concepção?
Sontag – A origem foram os anos que passei em Sarajevo, entre 1993 e 1995. A cidade estava sitiada. Não havia eletricidade, água corrente, telefone, televisão, muito menos computador. Era impossível ver as representações da guerra, nos jornais ou na TV. Agora, veja o exemplo do Iraque. Diversos jornalistas com quem convivi em Sarajevo estiveram em Bagdá. A TV ficava ligada, viam CNN, recebiam os jornais. Imagem e realidade, no Iraque, estavam lado a lado. Mas não quer dizer que tivessem melhor compreensão do que se passava. Pelo contrário. Após Sarajevo, vi que as pessoas que acompanhavam o noticiário de perto entendiam pouco sobre a guerra. Percebi que não havia substituto para a experiência. Essa é a origem das reflexões do livro.
Folha – Ao criticar autores como Guy Debord e Jean Baudrillard e suas teorias sobre a ?sociedade do espetáculo?, a senhora fala em provincianismo. Por que esse termo?
Sontag – Guy Debord, apesar de louco, era brilhante, deu uma grande contribuição. Quando ele disse que a sociedade havia se transformado em espetáculo, achava isso um problema gravíssimo. Mas quando Baudrillard adapta essa idéia e diz que tudo é espetáculo, que a realidade não existe, ele diz: ?Aproveitem, essa é a vida moderna?. Ou seja, não está sendo crítico, mas conivente.
Folha – Sim, mas onde está o provincianismo?
Sontag – Essa idéia de que vivemos num mundo pós-moderno em que nada é real, só espetáculo, é provincianismo. Pessoas como Baudrillard ou Noam Chomsky ficam em seus escritórios e suas confortáveis casas de campo e nunca viram o horror de perto, nunca viram a terrível condição em que vive a maioria das pessoas do mundo. Por isso não acredito no que dizem.
Folha – Ainda considera que o atentado de 11 de setembro não foi um ato covarde?
Sontag – Não sou admiradora da vaidade americana, nem do nacionalismo americano. Há diversas coisas de que gosto nos EUA e diversas outras de que não gosto. E uma delas é o comprometimento com a violência. Há muito medo e raiva. Acho que Michael Moore tem razão quando diz, em ?Tiros em Columbine?, que o país é governado pelo medo.
DIANTE DA DOR DOS OUTROS. De: Susan Sontag. Tradução: Rubens Figueiredo. Editora: Companhia das Letras. Preço: R$ 24 (112 páginas)."
"Imagens nos inspiram a uma maior investigação", copyright Folha de S. Paulo, 24/08/03
"Fotos de pessoas trucidadas, relatos de genocídio, cenas de massacre na televisão -coisas desse tipo, de tantas vezes repetidas, terminam deixando o público indiferente. A violência se banaliza. Pior: transforma-se em espetáculo.
Argumentos desse tipo não são novos, e a ensaísta americana Susan Sontag já defendia a tese no livro ?Sobre Fotografia? (77). A novidade de ?Diante da Dor dos Outros?, texto de 2003 que a Companhia das Letras publica, está no fato de que Sontag reexamina, e contesta, essas afirmações.
?Qual a prova?, pergunta, ?de que as fotos produzem um impacto decrescente, de que nossa cultura de espectadores neutraliza a força moral das fotos de atrocidades??. Imagens famosas, como a da menina vietnamita fugindo das bombas de napalm (foto tirada em 1972 por Huynh Cong Ut), têm o efeito de se fixarem na memória, como síntese e exemplo dos horrores da guerra; mas isso não significa necessariamente que tenham sofrido um processo de banalização.
Ela continua: ?O rosto horrivelmente desfigurado de veteranos da Primeira Guerra (…); o rosto empapado e inchado com o tecido das cicatrizes de sobreviventes das bombas atômicas americanas lançadas em Hiroshima e Nagasaki; o rosto fendido a golpes de facão dos tútsis que sobreviveram ao genocídio desencadeado pelos hutus em Ruanda -será correto dizer que as pessoas se habituam a essas imagens??.
Há fortes indícios em contrário. Sontag nota que, em geral, os governos são os principais interessados em não divulgar cenas chocantes. A então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher restringiu a presença de fotógrafos na Guerra das Malvinas; na Guerra do Golfo, a televisão deixou de exibir o massacre de milhares de recrutas iraquianos em retirada, bombardeados no que foi chamado por um militar americano de ?tiro ao alvo nos patinhos?.
Bom gosto?
Razões de bom gosto, talvez. Mas Sontag (e aqui encontramos o típico tom inconformado da autora, seja qual for a tese que esteja defendendo no momento) observa que o bom gosto ?é sempre um critério repressivo quando invocado por instituições?.
Excetuados alguns lances melodramáticos da argumentação, e certa tendência para ?mostrar serviço? no quesito informação enciclopédica (Ticiano, a Ilíada, Henry James), o livro de Sontag é convincente e foge do lugar-comum. Não é o acúmulo de fotos que produz indiferença; há uma série de outros fatores em jogo.
?A compaixão é uma emoção instável?, diz a autora. ?Ela precisa ser traduzida em ação, do contrário definha.? Comover-se, apenas, não é grande mérito moral. Por outro lado, podemos facilmente querer virar a página do jornal ou desligar a TV se considerarmos que a situação retratada é insolúvel. Sem dúvida, uma mera foto, por mais terrível que seja, não substitui uma análise contextualizada da situação que a produziu. ?Imagens dolorosas e pungentes?, diz, fornecem apenas a centelha inicial para que cada um de nós (se puder) vá mais adiante."