Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fernando Rodrigues

REPORTAGENS COMPRADAS

“Mídia do PR vende R$ 6,4 mi de ?reportagens?”, copyright Folha de S. Paulo, 2/09/03

“O governo do Estado do Paraná gastou R$ 6,418 milhões em 2002 com a compra de ?reportagens? em 76 veículos de comunicação (68 jornais, 6 revistas e 2 colunas). O governador do Estado na época era Jaime Lerner (PFL). As operações são legais e estão registradas, embora a ANJ (Associação Nacional dos Jornais) proíba essa prática em seu código de ética.

A Folha teve acesso a 187 notas fiscais que atestam as negociações. As informações foram tabuladas e checadas. O processo de apuração levou sete meses. Todos os envolvidos foram procurados, sendo que 67 foram localizados. Desses, um negou a venda de ?reportagens?, apesar de ter sido confrontado com documentos.

O Paraná é o sexto Estado mais rico do país, segundo o IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em 2002, gastou R$ 86,129 milhões com publicidade e propaganda -desse total, 7,43% (R$ 6,418 milhões) foram para ?reportagens?.

A existência de ?matérias pagas?, como se diz no jargão jornalístico, é uma prática disseminada no Brasil, sobretudo em publicações de pequeno e médio portes. O país não tem uma mídia regional forte nem com independência financeira. Parte dos jornais e das revistas aceita dinheiro para divulgar como ?reportagem? informação de interesse de políticos ou empresas. Não havia registro até hoje, porém, de tantas ?matérias pagas? comprovadas com notas fiscais como nesse caso do Paraná. Empilhada, a documentação tem quase meio metro de altura -as 187 notas fiscais, as planilhas de inserção dos textos, os processos de faturamento e as milhares de páginas com cópias dos textos.

O código de ética da ANJ condena a prática de venda de reportagens. A regra manda ?diferenciar, de forma identificável pelos leitores, material editorial e material publicitário?. A Folha é filiada à ANJ e cumpre essa determinação.

Todos os 120 veículos associados da ANJ devem seguir a regra. No Paraná, 13 jornais são filiados à ANJ. Quatro venderam reportagens em 2002 sem identificar para os leitores que se tratava de uma operação comercial. São eles: ?Diário dos Campos? (Ponta Grossa), ?Diário Popular? (Curitiba), ?O Estado do Paraná? (Curitiba) e ?Tribuna do Norte? (Apucarana). Ouvidos pela Folha, representantes dessas quatro publicações confirmaram as operação de venda de reportagens.

Apenas um veículo de circulação nacional está incluído na documentação das ?matérias pagas? do Paraná: a revista ?IstoÉ Gente?, da Editora Três. Em duas edições veiculou reportagens sobre atrações turísticas paranaenses para as quais há notas fiscais cobrando R$ 500 mil pela ?inserção?. Desse valor, R$ 100 mil foram pagos de comissão à agência de publicidade que estava licitada para fazer o negócio, a Loducca.

A direção da ?IstoÉ Gente? nega que tenham sido operações de venda de ?reportagens?. Seriam, diz a revista, casos de reimpressões de textos em forma de encarte para serem distribuídos pelo cliente (o governo Lerner).

Licitações legais

A operação de venda de ?reportagens? é clara nos documentos. À exceção da ?IstoÉ Gente?, os proprietários e editores dos veículos ouvidos pela Folha confirmam os negócios. ?Eu faço através de nota fiscal?, diz Newton Della Bona, dono da revista ?Panorama?.

Cada processo de venda de ?reportagens? contém três itens principais: 1) a nota fiscal do meio de comunicação que vendeu o espaço para a publicação do texto do governo estadual; 2) fotocópias do que foi divulgado no veículo; e 3) a nota fiscal da agência de publicidade que intermediou o negócio. Tudo está carimbado e conferido pelos então responsáveis no governo paranaense.

O material a que a Folha teve acesso está arquivado em dois lugares: no Tribunal de Contas do Estado do Paraná e na Procuradoria Geral do Estado do Paraná.

Todos os casos de ?reportagens? pagas foram intermediados por três agências de publicidade: Loducca, Opus Múltipla e Master.

Ao fazer a intermediação, as agências exerciam um direito adquirido por meio de licitação pública. O governo paranaense fez uma concorrência para divulgação de ?ações de governo? junto com publicidade. Aí estão embutidas as ?matérias pagas?. A comissão das agências foi de 20%, uma praxe no mercado publicitário. Do total de R$ 6,418 milhões gastos pelo governo, R$ 1,283 milhão foi para o cofre dos publicitários contratados -cujo trabalho foi apenas emitir as notas fiscais. Os textos eram produzidos pelos veículos ou pelo governo.

Tom laudatório

Há um tom laudatório a favor de Jaime Lerner nas ?reportagens? vendidas. O então governador é dado como responsável por várias boas ações na mídia local.

?Lerner construiu 534 pontes em sete anos?, publicou o ?Jornal do Oeste?, de Toledo, em 10 de março de 2002. Valor pago por essa e mais 22 ?notícias?, inclusive ?Lerner recebe medalha de honra da Ucrânia?: R$ 30 mil.

?Programas educacionais do governo reduzem em 21% o analfabetismo entre jovens?, divulgou o jornal ?A Notícia?, em 14 de março de 2002, por R$ 1.600.

Como as reportagens falavam do governador paranaense, muitas vezes seus aliados também aparecem beneficiados pelas ?matérias pagas?. Por exemplo, em 18 de março do ano passado, o ?Jornal Regional?, de Loanda, publicou no alto de uma página: ?Lerner e FHC inauguram pontes e pregam a união pela governabilidade?. A nota fiscal descreve o valor do serviço ?com chamada na capa? em cores: R$ 3.200.

Fani Lerner, mulher de Jaime Lerner, também teve sua imagem divulgada à custa de ?matérias pagas?. Em 24 de abril do ano passado, ela apareceu em foto ilustrando metade da primeira página do ?Diário da Manhã?, de Ponta Grossa. Na página 13, a ?reportagem?: ?Fani Lerner é a mulher do ano?. Por esse e outros textos, o jornal recebeu R$ 24 mil.

Apesar de venderem as ?reportagens?, alguns jornais têm slogans para autopromoção defendendo a ética jornalística. O ?Jornal Caiçara?, de União da Vitória, estampa na sua primeira página: ?Professa a Verdade – Insinua o Belo – Advoga o Bem?. Cobrou R$ 1.000 para publicar que o ?Paraná gerou em fevereiro [de 2002] 5.511 empregos formais?.

O ?Impacto?, de Santo Antônio do Sudoeste, apregoa em sua nota fiscal: ?O jornalismo que valoriza a sua imagem?. Na fatura, registra R$ 1.600 em troca de ?divulgações de ações de governo?.”

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“Veículos confirmam faturamento de textos”, copyright Folha de S. Paulo, 2/09/03

“Todas as 76 empresas de comunicação com notas fiscais de venda de ?reportagens? foram procuradas pela Folha. O jornal encontrou 67. As demais não estão mais no endereço que aparece na documentação (notas fiscais e cópias das ?reportagens?).

Dos 67 veículos encontrados, oito preferiram não comentar. Apenas um dos contatados negou de forma peremptória a publicação de ?matéria paga?: a revista de celebridades ?IstoÉ Gente?, para a qual há notas fiscais no valor total de R$ 500 mil -duas operações de R$ 250 mil para dois textos de oito páginas cada um.

O diretor de projetos institucionais da Editora Três, Expedito Grossi, declarou que ?o governo [do Estado do Paraná] comprou uma quantidade ?X? de ?reprints? do caderno para redistribuição lá [no Paraná]?. ?Reprints?, explicou, são reimpressões de uma determinada notícia, em grande quantidade. No caso, o governo do Paraná teria se interessado em fazer a distribuição dos textos publicados por ?IstoÉ Gente?.

A fatura da revista menciona que a natureza dos serviços foi ?inserção?, termo comumente usado para publicidade. Grossi diz que isso deve ter ocorrido ?para simplificar?, mas o trabalho teria sido, ?com certeza?, uma reimpressão. A Folha perguntou se poderia ter acesso a algum documento que demonstrasse o pedido de reimpressão do governo do Paraná. Segundo Grossi, seria difícil localizar tal papel, pois a operação foi há mais de um ano.

As respostas da maioria (53) dos outros veículos contatados foram sempre positivas, admitindo a publicação de ?matérias pagas?. ?Quando a matéria é informativa, nós não vemos nenhuma necessidade se o cliente pedir para não cercar. Até porque é uma matéria informativa?, diz Baltazar Oliveira, proprietário da ?Tribuna do Norte?, de Apucarana.

?Sai como matéria jornalística?, afirma Vânio Pressinatte, editor de ?A Tribuna do Povo?, de Umuarama.

Representantes de alguns veículos disseram que os casos apresentados pela Folha poderiam representar algum engano. Mas não chegaram a contestar propriamente a publicação -uma vez que foram confrontados com suas notas fiscais e as ?reportagens? anexadas. A minoria (cinco) das pessoas contatadas disse que enviaria explicação por escrito, o que nunca aconteceu.

Alguns disseram que a prática é antiga e remonta a vários governos passados. É o caso do colunista Pedro Washington, cujo texto era publicado por sete jornais diários no ano passado. Ele recebia um pagamento para divulgar informações em sua coluna: ?É publicidade de matéria de interesse do governo?.

?Aqui, no Paraná, sempre foi muito comum isso. Você tem uma coluna valorizada e é como se fosse um ?merchandising? que hoje se faz na televisão?, explica Washington.

Roney Rodrigues Pereira, diretor do ?Jornal do Estado?, relata algo semelhante: ?Talvez identificar seja mesmo o mais correto. Convencionou-se que não seria. Os outros jornais também não identificavam. Sempre foi assim, inclusive nos governos passados. Não foi uma coisa trazida pelo governo [Jaime] Lerner?.

Governadores

A Folha procurou durante quatro semanas o ex-governador Jaime Lerner (PFL), que esteve no comando do Paraná de 1995 a 2002. Por meio de sua assessoria, Lerner disse que preferia não comentar. O seu secretário de Comunicação em 2002, Deonilson Roldo, também não se manifestou. Três ex-governadores procurados negaram ou disseram não saber exatamente se a compra de ?reportagens? ocorria quando estiveram no poder.

José Richa, 68, que hoje está no PSDB e governou o Paraná pelo PMDB (1983-1987), declara que ?não existia? o uso de matérias pagas durante o seu mandato. ?Inclusive, eu sempre disse: aquilo que for notícia, se vocês quiserem, publiquem; se não quiserem, não precisam publicar?, afirmou.

Álvaro Dias, 58, do PDT (governou pelo PMDB de 1987 a 1991), disse que, ?infelizmente, no Paraná há essa manipulação do governo?. ?As formas são as mais diversas.? Indagado se havia ?matérias pagas? na sua época, declarou: ?Não. Pelo menos formalmente, não?. E informalmente? ?Não, não… Na verdade, eu descentralizava. O secretário [de Comunicação] é que cuidava disso. E eu não me lembro do procedimento que ele adotava em relação aos jornais do interior.?

Roberto Requião, 62, do PMDB, atual governador e que também comandou o Estado de 1991 a 1994, nega usar ?matérias pagas? em seus dois mandatos. ?Eu nunca fiz isso?, declara.

Agências

A Loducca e a Opus Múltipla informaram, por meio de suas assessorias, que preferiam não se manifestar sobre a venda de ?reportagens? no Paraná.

Antonio Freitas, 58, presidente da Master, declarou o seguinte: ?Nós veiculamos preferencialmente anúncios publicitários. Pela legislação, a agência autoriza o veículo por conta e ordem do cliente. É política de cada veículo identificar ou não como informe publicitário. A agência não tem o poder de fazer um jornal publicar sem identificação. Eticamente, essa prática não é correta. O que é necess&aaaacute;rio é deixar claro para o leitor que aquilo é pago, mas essa é uma tarefa do veículo?.

A ANJ (Associação Nacional dos Jornais) foi informada de que quatro de seus sócios estão na lista de veículos que publicam ?matérias pagas? no Paraná, mas preferiu não se manifestar a respeito.”

 

SAÍDAS PARA A MÍDIA

“Comunicações ficam só no varejão”, copyright O Estado de S. Paulo, 31/08/03

“Que falta hoje às comunicações brasileiras? Depois de ouvir uma dezena de especialistas e líderes setoriais, creio ter elementos para uma radiografia sintética dessa área e, principalmente, do que precisa ser feito, com urgência, pelo governo Lula.

1. Reestruturar – O Brasil deveria retomar e concluir o projeto de reestruturação iniciado no primeiro mandato de FHC, mas interrompido no segundo. Aquele projeto foi concebido para abranger as três áreas cobertas pelo Ministério das Comunicações – telecomunicações, correios e comunicação eletrônica, mas só alcançou, efetivamente, a área de telecomunicações. A conclusão dessa reestruturação, contudo, parece ser muito difícil de ser conduzida por um governo do PT, partido sem projeto, sem visão política dessa área, sem modelo institucional e sem quadros profissionais minimamente preparados para a tarefa.

2. Aceitar novo conceito – Num novo projeto nacional, o conceito de comunicações deve ganhar sentido muito mais abrangente, que é o de infocomunicação. Em conseqüência, é essencial que a agência reguladora seja incumbida legalmente da regulação e da fiscalização não apenas de telecomunicações, mas também de correios e comunicação eletrônica de massa. Para que isso ocorra, o Congresso Nacional deveria aprovar duas novas leis, a Lei Postal e a de Comunicação Eletrônica, nas quais ampliaria as atribuições da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), transformando-a na Agência Nacional de Comunicações (com a sigla Anacom).

3. Ir além do varejo – Nas comunicações, o governo Lula não disse, até aqui, a que veio. Em lugar de formular políticas públicas inovadoras e modernas, o Ministério das Comunicações contenta-se com o varejo das questões menores, como a das tarifas e das briguinhas com a Anatel. Baixou, é verdade, um pomposo ?decreto de políticas públicas?, mas esse documento não passa de uma ampla declaração de intenções e de objetivos. O lado positivo da ação do ministro Miro Teixeira continua sendo sua disposição para levantar debates polêmicos, como o da TV digital e dos novos contratos de concessão.

4. Incluir digitalmente – É estranho que o PT, partido cujo discurso tem sido voltado para o social, não perceba que está perdendo sua grande oportunidade histórica de realizar a revolução da inclusão digital no Brasil. Os ministérios mais envolvidos nesse tema – Comunicações, Educação, Ciência e Tecnologia e Planejamento – parecem subestimar o papel decisivo das novas tecnologias nesse processo de inclusão, que significa, em última análise, democratizar o acesso à informação, ao conhecimento, à cultura e ao entretenimento. São políticas públicas desse tipo que deveriam balizar a ação da Anatel e estimular prioritariamente a mobilização de recursos privados, de investidores e de empresas operadoras em todo o País.

5. Fortalecer a Anatel – Em lugar de atacar a Anatel, o governo Lula deveria envidar todos os esforços para fortalecer e aprimorar a agência reguladora, consolidando seu quadro de pessoal e dando a seus profissionais pelo menos uma perspectiva de carreira e de futuro. Essa é a grande prioridade da agência reguladora, neste momento. A omissão governamental nessa área pode conduzir ao malogro da própria missão da Anatel. Se isso vier a ocorrer, não tenham dúvida de que os saudosistas do monopólio estatal gritarão em coro: ?Viram? O modelo privatizado não deu certo e fracassou?.

6. Criar cultura regulatória – Nesse campo, tudo recomenda que, após privatizar os setores de infra-estrutura, invistamos seriamente no desenvolvimento de uma cultura regulatória moderna, em especial na área de Comunicações.

7. Corrigir a supertributação – Como baixar preços dos serviços nessa área, se o Brasil se transformou hoje em campeão mundial dos impostos sobre telecomunicações, chegando a cobrar 50% de ICMS e outros tributos nas contas telefônicas? O presidente Lula bem poderia chamar os congressistas antes da votação final da reforma tributária e dizer-lhes: ?Comunicação, companheiros, é fator de produtividade e de desenvolvimento, e não artigo de luxo?.

8. Simplificar o Fust – Caberia ao governo desburocratizar o Fundo de Universalização das Telecomunicações (Fust), colocando-o a serviço do País. Criado há três anos, o Fust acumula quase R$ 4 bilhões em caixa, sem ter aplicado até agora um único centavo em projetos setoriais.

9. Estimular a competição – Para ampliar a concorrência, em especial em telefonia fixa, o Ministério das Comunicações e a Anatel terão que pôr em ação todos os mecanismos e estratégias possíveis. Se não o fizerem, mais de 90% dos brasileiros ficarão ainda por muitos anos nas mãos de três monopólios regionais. Nessa linha, o governo só tem falado. Mas não age concretamente.”