Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

TV Bahia fez que não viu

ESTUDANTES EM SALVADOR

Fernando Campos (*)

A Semana da Pátria costumava ser de grande agitação cívica nos colégios de outrora. Os alunos reuniam-se no pátio escolar antes do início das aulas e cantavam o Hino Nacional, a Bandeira era hasteada, crianças do primário usavam lacinho verde-amarelo nos uniformes e coloriam os cadernos com faixas em verde e amarelo. Nos últimos anos a Semana da Pátria é solenemente ignorada por grande parte dos colégios, assim como acontece com o folclore, substituído pelo detestável Halloween.

Mas aconteceu uma coisa nova em Salvador. Uma Semana da Pátria que representará, quem sabe e assim esperamos, um novo rumo nas relações entre o poder público e a sociedade. Os estudantes, em sua grande maioria oriundos de escola pública, muitas vezes tachados de alienados, saíram às ruas protestando principalmente contra o aumento em 15% das tarifas de ônibus: o preço anterior era de R$ 1,30, e passaria a R$ 1,50, neste que é o segundo reajuste do ano do transporte público em Salvador.

Num espetáculo de civismo, mobilização e organização, os estudantes (não apenas de escola pública: logo juntaram-se estudantes de colégios particulares e universitários) tomaram as principais avenidas de Salvador com uma estratégia muito bem traçada. No mesmo horário, em vários pontos da cidade, desde bairros nobres até a periferia, os estudantes fizeram valer sua cidadania, protestando de forma pacífica contra o reajuste das tarifas.

E a população, em sua maioria esmagadora, apóia o movimento. Foi realmente espantoso. Os saudosistas lembravam-se constantemente das décadas de 60 e 70, quando os estudantes tinham voz e tomavam as ruas protestando e lutando pela democracia. Mas, infelizmente, nem tudo são flores, ainda mais na Bahia, onde os "donos do poder" querem perpetuar aqueles "anos de chumbo".

A TV Bahia, retransmissora da Globo no estado, é do senador Antonio Carlos Magalhães ? o qual, "humildemente", diz ser a emissora de propriedade da família. Pode-se, então, imaginar o tipo de jornalismo praticado pela rede. Mas, nesse caso das manifestações estudantis, o "Diário Oficial Televisivo" superou-se. Guardando as devidas proporções, lembrou a Rede Globo no episódio das Diretas-Já ? ou seja, ignorou (ou fingiu ignorar) o movimento até não conseguir mais.

Apesar dos transtornos no trânsito, com os congestionamentos das principais vias, a maioria da população, deve-se ressaltar novamente, apóia o movimento; basta uma breve conversa com as pessoas para perceber isso. Quem não apóia? Pessoas sem senso de coletividade, refesteladas em seus carros com ar-condicionado e que não utilizam o péssimo sistema de ônibus de Salvador. Aliás, a propaganda do governo, confeccionada durante as manifestações, comparava o preço da tarifa em Salvador (R$ 1,50) ao de outras capitais, como São Paulo (R$ 1,70) e Curitiba (R$ 1,65, salvo engano), pregando ser, entre as capitais, a tarifa "mais barata do Brasil". Na onda das comparações poderíamos lembrar o quanto ganha um funcionário da Ford na Bahia e um funcionário da Ford em São Paulo, mas esta já é outra história.

Péssimos alunos

Pois a TV Bahia tentou reduzir o movimento a uma grande bagunça. O que seria deste jornalismo chapa-branca sem a edição de imagens! Nos telejornais da emissora o que se via eram pessoas reclamando da manifestação, pessoas que só falavam em primeira pessoa ("eu estou atrasado para isso ou aquilo"…). A edição de imagens foi parar no jornal Hoje, da Globo, que na terça-feira (2/9) exibiu apenas cenas de depredação e confusão, deixando a sensação de caos na cidade, o que absolutamente não era verdadeiro. Houve, evidentemente, pessoas que se aproveitaram da situação para cometer atos de vandalismo, depredando ônibus. Minoria, mas era tudo o que a emissora queria. Em grandes manifestações populares, porém, sabe-se que isso é comum: de comícios a estádios de futebol, passando pelas filas enormes dos hospitais e postos de saúde, onde os idosos são tratados pior do que gado.

Alguns exemplos do que foi a "cobertura" da TV Bahia:

** No telejornal noturno de 1?/9, a "cobertura" da manifestação já deixava clara a postura: enquanto o eixo central da cidade, conhecido como Iguatemi, era tomado por estudantes, o trânsito paralisado, a apresentadora afirmava que o "trânsito estava normal na região do Iguatemi". As emissoras de rádio orientavam os ouvintes a evitar a região.

** No telejornal noturno de 2/9, para cada entrevistado a favor da manifestação pelo menos três eram contrários, segundo a edição da emissora.

** O auge da "cobertura" da Rede Bahia deu-se no dia 3/9, no telejornal do meio-dia. Enquanto as manifestações chegavam ao centro da cidade e dirigiam-se à prefeitura cerca de 3 mil estudantes, o telejornal dedicava quase todo o tempo à entrevista com uma nutricionista, discorrendo sobre os benefícios e malefícios do… cafezinho! Sim, amigos: uma revolução na cidade, e a retransmissora da Globo entretida com um papo sobre o cafezinho! Você aí, leitor, sabia que o cafezinho preto ajuda a emagrecer? Preste atenção, é assunto de extrema relevância!

Ou seja, a Rede Bahia distorce a realidade. É compreensível que uma emissora de propriedade de ACM preserve seus interesses. Para o jornal Correio da Bahia, também do senador derrotado em Salvador nas últimas eleições, a manifestação dos estudantes que ocorre desde sexta-feira, 29/8, teria "cunho partidário". Caíram do cavalo? Alguns integrantes de partidos "de esquerda" tentaram abrir suas bandeiras em meio às passeatas. Os estudantes não permitiram. O movimento foi espontâneo, sem nenhuma ligação com partidos políticos.

Aliás, sobre o jornalismo impresso, o único que manteve a lisura e cobriu com correção os eventos foi A Tarde. O Correio do senador e a Tribuna da Bahia, outrora valoroso jornal, hoje de orientação carlista, procuraram estampar em suas manchetes o "caos", a "bagunça" e a "desordem" das manifestações estudantis.

Portanto, quem assistiu aos telejornais da Rede Bahia deve ter ficado confuso, entre a realidade da mesa de edição e a realidade das ruas. O mundo de fantasia do jornalismo da emissora do senador, que trata Salvador como cidade perfeita e isenta de miséria, tem sua virtude, se é que podemos classificá-la assim: quem quiser saber das festas, dos novos grupos de pagode e axé e dos mimos da classe média, basta sintonizar os telejornais da Rede Bahia de Televisão.

E vivam os estudantes de Salvador, que revitalizaram a Semana da Pátria e foram mestres em civismo e democracia! Pena que os "donos do poder" sejam péssimos alunos!

(*) Professor em Salvador