Onze anos depois de sua morte, Paulo Francis ainda fustiga corações e mentes, e serve de modelo e inspiração para muita gente. Pouco comentada, sua ficção (a obra, não o personagem que criou para si próprio) deveria merecer mais atenção da crítica e do público. Tal é o caso de Carne viva (São Paulo: Francis, 2008), publicação post mortem.
No romance, diretor de banco, aspirante a presidente da instituição financeira, circula num ambiente elitista e cosmopolita, composto de fauna variada no que tange à formação, aspiração, projetos. De cara, nota-se o parentesco em relação aos seus romances anteriores, Cabeça de papel e Cabeça de negro, como, por exemplo: abordagem a partir do ponto de vista geopolítico da classe dominante, mesmo se ‘progressista’; permanência de certo tipo de caracteres, expressões e preconceitos dissimulados do universo franciano. Mas, não chega a ser um autopastiche.
Francis – como atesta sua obra jornalística e ficcional – era um admirador da upper class do ancien e moderno regime: da primeira, a elegância, a ironia fina e a possibilidade, antes da guilhotina, de não precisar tornar-se, tarefa enfadonha e masoquista do vir-a-ser neurótico almejado pela classe média; da segunda, o dinheiro, que tudo paga e dissolve. Francis, classe executiva, polêmico e nada alienado, sabia desse fascínio como atesta a auto-análise feita por Hugo Mann, seu alter ego nos cabeças: um rapaz que leu demais, aprendendo o que evitar, mas não o que é organicamente correto. Reconhecia-se um provinciano, filho da Revolução Industrial.
Há coisas que não podem ser adquiridas, assimiladas. Pode-se comprar o título, mascarar a origem, mas não a consciência da farsa. Portanto, aisance, termo caro a Francis, é, segundo ele, coisa para aristocratas e velhos burgueses (que já esconderam seus crimes). Resta, aos emergentes, novos ricos – condição, segundo os esnobes, quase abjeta –, o marketing pompier da revista Caras, ou o consolo bourgeois gentilhomme, à la Molière, contratando assessores para ajudar a diminuir o jeito gauche e a empurrar as gafes para debaixo do tapete.
Doses cavalares
Rimbaud percebeu isso e, ao invés de ficar em Paris, pedindo sobremesa porque não tinha dinheiro para pagar o prato principal, à la Baudelaire, ou enchendo a cara de absinthe, feito Verlaine, foi para África tentar enriquecer, virar um burguês. Francis, maduro, deve ter aplaudido a decisão de Rimbaud, poeta visionário que abriu mão da literatura (je ne m’occupe plus de ça), e resolveu ganhar a vida, tornar-se um empreendedor (vendendo, entre outras coisas, armas e escravos), ao invés de ficar mistificando no quartier latin. O câncer ósseo na perna minou-lhe a possibilidade e, em seu delírio de morte, Rimbaud falava em mercadorias e não nos versos que o imortalizaram, procurando, decerto, tatear os oito quilos de ouro ganho a duras penas, e que durante muito tempo manteve preso a cintura. O último Rimbaud possui um coeur d’argent.
Chico, o herói de Carne viva, foi um típico adolescente da classe média carioca nos anos dourados, quando o Rio era a capital da República e as favelas ainda não haviam envolvido a cidade. Filho de mãe provedora, mas distante, pai gilete (que fugiu com um marinheiro turco) e sobrinho de banqueiro, Chico é um rapaz que quer vencer na vida. É esforçado, e, ao contrário dos primos, não é monoglota, o que lhe facilita a ascensão, os estudos em Cambridge, uma visão panorâmica do mundo, e a preferência do tio. Safo, aprende, enquanto o tio não lhe passa o cetro, a construir seu próprio patrimônio.
Até aí nada de mais, e o enredo cabe numa trama de telenovela. O charme, na ficção de Francis, são as conexões, a tentativa do narrador pequeno-burguês em querer desvendar os mistérios, a complexidade das máscaras, persona, da classe dominante, que tem acesso, mas não faz parte. Assim, tanto em Cabeça de Papel, quanto em Cabeça de Negro, Hugo Mann (que de uma obra a outra passou de jornalista marginal a mais favorecido) destaca-se pelo saber livresco, a citação, o fascínio de épocas não vividas, a falta de aptidão para viver o seu tempo. Acaba por cair num ideal estético, como os decadentes da Belle époque, mas sem referência anímica, resultando daí o vazio existencial subseqüente. Cheio de culpas, retira-se para sua refrigerada torre de marfim, empanturrando-se de comida boa, bebendo bom uísque, folheando livros raros, idealizando mundos mortos, e sendo assediado por belas ex-leitoras. Que tal?
Chico, neste aspecto, é um personagem melhor resolvido. O falso brilhareco intelectual e niilista foi substituído por uma visão pragmática de mercado e um ideário WASP, pois o herói, embora não seja argentino, gostaria de ser inglês. É solidário e prestativo, seja ajudando uma moça, Bea, que não se lembra de ter desvirginado, seja com o namorado desta, Beau, metido com o grupo terrorista Baader-Meinhoff. Enfim, como em Cabeça de Negro, não faltam implicações sobre o declínio da esquerda e a globalização capitalista.
Situada, principalmente, entre os anos 1960 e 90, Carne Viva coloca Chico na Paris pré-revolucionária de maio de 1968. Hospedado no Ritz, põe em xeque a eficiência do famoso hotel, garantindo assim, apesar da greve geral, room service, pois como bom cliente não pode passar sem um lauto petit déjeuner, com direito a presunto e ovos. Saciada a fome, faz turismo revolucionário com uma socialite pelas barricadas estudantis. É fácil entender o ódio de Robespierre e Saint-Just. Como curiosidade, o aparecimento, rápido, de Paulo Hesse, diretor de jornal, herói de Cabeça de papel. O autor poderia colocar uma análise dele sobre os acontecimentos, certamente, bem diferente de De Gaulle: ‘Cocô de criança’. Crianças que acabariam por mandar o velho general, de pijaminha, para casa.
Hesse talvez seja o melhor personagem criado por Paulo Francis. Misto de oficial da KGB e intelectual, Hesse trai o sogro passando aos russos o verdadeiro mapa do establishment tupiniquim. Tem bons argumentos, e não quer que os americanos transformem o patropi numa Singapura. Obrigado a posar de reacionário, Hesse sublima a venda da alma através de doses cavalares de uísque, pó, sadismo sexual, e Wagner, claro, pois, apesar de nietzcheano, não é de ferro. Nos anos 1980, houve, em algumas redações, simulacros de Paulo Hesse, logo abatidos pela cirrose e/ou loucura. Hesse, como explica um bom manual de análise literária, é só um ser de papel.
Trilogia cachola
Há em Carne viva uma nostalgia, um lamento sobre a degradação do Rio e, no geral, do Brasil. Impossível – dado os desníveis econômicos que a classe de Chico ajuda a perpetuar –, segurar o caos quando a população pula dos 50 milhões, na década de 50, para os quase 200 milhões atuais. O Rio de Paulo Francis, que ia do centro a Zona Sul, era uma tocha, faísca de possibilidade de uma civilização tropical. Saudade dá engulhos, e o perfil Blade runner das metrópoles do terceiro mundo foi se adequando à necessidade da blindagem e ao risco das balas perdidas. Ninguém está a salvo.
Diogo Mainardi comenta na orelha de Carne viva que Francis parecia pressentir que aquele seu mundo idealizado, feito de livros, filmes, viagens, conversas, havia terminado. Francis, numa conversa com Ivan Lessa, disse que se considerava tecnicamente morto, sem perspectivas num mundo globalizado, medíocre, jeca, selvagem.
Arnaldo Jabor, falando sobre Glauber Rocha (em Glauber o filme, labirinto do Brasil, 2003, de Silvio Tendler), afirmou que o cineasta morreu, entre outras coisas, porque não sobreviveria neste mundo regulado pelo mercado, sem transcendência, logo ele, uma figura épica. Cabe uma analogia entre as duas situações? Glauber, saudado por Francis como grande artista, metaforicamente um grande assassino, capaz de realizar em ações aquilo que só entabulamos em pensamentos. Os dois fazem muita falta, mas essa história de last man deve ficar restrita aos que partem. Há muitos escombros, como no final de Carne viva, mas a mensagem final não é pessimista, pois, se vivemos numa época de selvageria, pode-se, pelo menos, lutar para evitar a hecatombe.
A data da conclusão de Carne Viva, conforme a última página, é outubro de 1996. Francis ainda viveria pouco mais de três meses. Ex-trotskista (tinha um retrato do velho bolchevique em seu escritório, ou seria na carteira?), Francis, pós-Pasquim, havia trocado o Rio por Nova York, tornando-se um neoliberal enragé e bon vivant. Tinha numerário para isso, melhor salário da imprensa brasileira, vivendo de dizer o que achava das coisas. Seu público era fiel, migrando junto com ele da Folha de S.Paulo para O Estado de S.Paulo, quando um ombudsman quis se meter de pato a ganso.
Artistas deitam e rolam em cima de coadjuvantes, e era engraçado vê-lo no Manhattan Connection, chupando bala e espinafrando o Caio Blinder. Morto o homem, ainda resta, em alguma gaveta ou arquivo, Cabeça, que completaria a trilogia cachola, e, desde os anos 1980, é o livro aguardado de Francis. Seria interessante que a viúva, Sônia Nolasco, publicasse a obra, sem revisão, como material de estudo, possibilidade. Fica a sugestão.
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Jornalista, mestre em Lingüística pela École des Hautes Études em Sciences Sociales, Paris, França, doutor em Letras pela PUC-RS, autor de João Antônio por João Antônio: literatura e malandragem