LÍNGUA VIVA
Adriana Lichtenfels Riccio (*)
O dia fora cansativo. Depois de ler mais de cinqüenta páginas de originais de livros, corrigindo-os e reescrevendo-os, na tentativa de torná-los mais adequados aos padrões da norma culta e, quem sabe, mais atraentes ao leitor, a redatora saía da editora. Por fim, ia para casa descansar. Deixaria para trás seu cacoete profissional: a correção da língua.
Qual o quê! No ponto de ônibus, notou a presença de duas jovens que conversavam com muito entusiasmo. Quando o ônibus chegou, quase atropelando os passageiros que o aguardavam, as duas logo se adiantaram para entrar no veículo e não perder lugares. A redatora foi no vácuo das moças, e conseguiu sentar no banco bem detrás ao delas.
Tão cansada que estava, apenas olhava pela janela. E não via nada. Não ouvia nada. De vez em quando, a cabeça cambaleava, os olhos fechavam de sono e também da ardência provocada pela leitura diária. Não via a hora de chegar em casa.
De repente, as moças à sua frente começaram a travar um diálogo pra lá de interessantíssimo:
? Menina, você sabe que até hoje eu não sei a diferença entre probrema e poblema.
A redatora despertou de sua sonolência; seu cacoete foi acionado. A musculatura enrijeceu, a cabeça ficou reta, despertou. Alerta, aguardava o que vinha a seguir. E veio:
? Ah, mas, se você não sabe, eu te explico.
? Você sabe? ? disse a outra, admirada.
A redatora já estava pensando que era gozação, mas daí a resposta veio sábia e certeira:
? Ora, probrema, veja bem, pela quantidade de "r" que enrola na língua, só pode ser uma coisa assim mais séria, uma dificuldade da humanidade, uma guerra, uma catástrofe, um "probremão". E "poblema", note a leveza do "l", só pode ser uma coisa boba, menos séria, uma dificuldade pessoal, tipo namorado atrasar no encontro, um "pobleminha".
? Ah, agora entendo ? disse a outra, grata pela explicação.
A redatora, diante do problema, ficou radiante, boquiaberta. Nunca vira tão presente e de perto a língua em movimento; a língua viva. Norma culta que se cuide! Muito em breve talvez os dicionários Houaiss e Aurélio, dentre outros, tenham de incorporar tais acepções do problema às novas palavras.
(*) Autora do livro Sonhos, delírios, pesadelos, São Paulo, iEditora, 2002, redatora e editora de textos didáticos free-lancer