Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os mitos da mídia de celebridades

JORNALISMO FÚTIL

Claudio Julio Tognolli (*)

Eviscerar os porquês de comportamentos pontuais da imprensa
requer processos que jamais passariam pela boa sociologia. Já
que afirmar que é verídico é, agora, uma convenção
de todo o relato fantástico (como notou o filósofo),
busque-se justamente extratos da mitologia das redações
para entender o que se passa na cabeça dessas redações.
Se cremos sincera essa petição de princípios,
tem uma validade que desdoura diretores de redação
o extrato que se segue: conta o jornalista e escritor Renato Pompeu
que há apenas uma diferença entre o jornalismo que
se faz hoje e o jornalismo que se fazia 30 anos atrás. “Antigamente,
você ia vender uma história ao diretor de redação
e ele dizia: ?vamos dar isso por que ninguém está
falando nisso?. Agora”, prossegue Pompeu, “você procura um
diretor de redação e oferece uma história,
e ele te responde: ?não vamos dar isso porque ninguém
está falando isso?.”

Aporias à parte, o que estamos assistindo é uma imprudente
massificação da figura do mito. O jornalismo contracultural,
nascido no off Broadway, se comprazia em ser pendular: era
a reportagem golpeada pelos primeiros sóis da marginalidade,
que se imiscuía no oblíquo, e que volta e meia mitificava
certos ícones justamente pelo fato de eles terem jamais sido
mitificados. Era assim que um dos maiores editores de artes e espetáculos
que este país já teve, o finado Casimiro Xavier de
Mendonça, atravessava finais e finais de semana, Brasil afora,
para investigar, sob Veja, quem eram os ícones ainda
não mitificados da cultura popular brasileira, sobretudo
das artes plásticas.

O inapreciável dom da imprensa sempre foi justamente navegar nesse off Broadway. As pontuais substituições, nas empresas de comunicação, de diretores ligados ao mundo da cultura por diretores ligados ao mundo da economia nivelou por baixo a valoração: e assim trocamos o popular pelo popularesco, lentamente.

Velha e repassada

No mundo cult ou papo-cabeça de quem sempre pensou nossa
mídia autóctone, sobretudo nas universidades, era
imperioso e fatal que se estudasse aquele medo que nutria Theodor
Wiesengrund Adorno: o homem que há 60 anos disparava das
moderne ist wirklich unmodern geworden
(o moderno ficou fora
de moda) temia que fossem implodidas as barreiras entre a arte popular
e a arte culta. Ou, traduzindo: o apagamento de barreiras seria
um dos catastrofismos que poderiam acontecer com a cultura.

Pois bem: nossa mídia apagou e diligentemente tem apagado fronteiras que, francamente falando, deveriam ter sido mantidas estanques. Lentamente, é o que vemos, o estatuto da cidadania virou estatuto do consumidor, e ali, nos cadernos de Cidades e todo o Brasil, o espaço tradicionalmente dedicado aos problemas da cidadania foi perdendo força para os problemas do consumismo. O que era cidadania consuetudinária virou consumo com garantias de devolução. A tribuna valorativa dos problemas do cidadão virou um grande Procon. Se se apagaram as fronteiras entre o que era ser consumidor e o que era ser cidadão, também implodiram-se as barreiras coquetemente conquistadas e erigidas e que impunham alguns limites, ainda que também valorativos, entre o que era “boa arte” e entre o que era arte de péssima qualidade ? portanto devotada ao consumo.

Quando falamos massa, em claro, há que se passar pelo conceito de Ortega y Gasset, ou seja, tudo o que é de baixa qualidade, pelas concepções da sociedade mecanizada de um Friedrich George Juenger, pela turba burocratizada, como viam Georg Simmel, Max Weber e Karl Manhnheim, e até pela burra uniformidade denunciada por gente como Emil Lederer e Hannah Arendt.

Nesse processo, vemos agora a massificação do mito, o que não deixa de ser uma das piores perdas para a mídia em geral e para o jornalismo, em particular. A saber: mitifica-se a tudo e a todos. Numa rapidez em que o agora é o ápice do tempo e que torna velha e repassada a frase dos 15 minutos disparada por Andy Wahrol: ou, como notava Baudelaire, uma das feições mais insinuantes desse mundo “moderno” era a presença do eterno no instante. A conexão desses pensamentos com os fenômenos da mídia ganha mais profundidade quando a mídia de massa resolve falar sobre ela mesma, a exemplo do diretor de redação que se dirigiu a Renato Pompeu no início deste artigo.

Buracos negros

Uma dessas raridades, quando a mídia massiva fala sobre seus postulados, consta da página 18 de Em Revista número 3, publicação da Associação Nacional dos Editores de Revistas. A reportagem se chama “Revistas de celebridades: espelhos de nossa sociedade”. E o lead da repórter Sueli Mello é este:


“Dentro de alguns anos, os sociólogos que quiserem contar como era o Brasil ou uma determinada parte da sociedade do Brasil terão uma boa fonte para pesquisa. Consumidas pelos mais diversos públicos, independentemente de faixa etária ou classificação econômica, essas publicações, além de proporcionar entretenimento e informação e satisfazer a curiosidade humana a respeito da vida de quem faz sucesso, funcionam como uma espécie de espelho de dupla face, no qual os famosos se refletem e os não famosos se miram, captando cada detalhe do modo de ser dessas personalidades para imitá-los dentro de suas limitações”.


Nada de novo no front. Trabalhar com modelos não é coisa nova: Tito Lívio vendia a torto e a direito os modelos a serem imitados pelos jovens romanos e Plutarco chegou mesmo a escrever Vidas dos Homens Ilustres. Paul Valery, em 1932, falando sobre Goethe, referia que ele “representa para nós, senhores humanos, uma das nossas melhores tentativas para nos tornarmos semelhantes aos deuses”.

A reportagem da revista da Associação Nacional dos Editores de Revistas avança revelando que “na realidade, as revistas de celebridades são associadas pelo consumidor a situações de descanso”. A mesma reportagem traz uma alusão ao pensamento de Roberto Civita, para quem “a última revista que eu leio à noite é a Caras porque aí eu vou dormir sem nenhum problema em minha cabeça” (sic).

Chegamos talvez no ponto mais fundamental desse fenômeno das revistas ditas de celebridades: a supressão do tempo. Revistas sobre celebridades trabalham, juntando a evicção do relógio com mitos já repassados: a fortuna inexpugnável, a beleza inquebrantável (ainda que a custa de consentidamente confessadas declarações sobre botóx et caterva). Mas certamente o congelamento do relógio é o mais insinuante.

Isso porque a aura dos mitos é sempre revestida da supressão
do tempo. Ou melhor: de um resgate do Grande Tempo, quando viveram
os mitos perfeitos; ou ainda na previsão de um Grande Tempo
em que o tempo como o conhecemos (repleto dos óxidos da rotina
e das fricções do dia-a-dia) será suprimido.
O melhor guia nessa interpretação talvez seja ainda
um texto de 1953, escrito por Mircea Eliade, e constante da obra
Mythes, Rêves et Misteres (Éditions Gallimard,
Paris, 1957). Ali, ele escreveu:


“É evidente que certas festas do mundo moderno, profanas na aparência, conservam ainda a sua estrutura e função mítica: as comemorações do Ano Novo, ou os festejos que se seguem ao nascimento de uma criança, à construção de uma casa ou mesmo à instalação num novo apartamento, denunciam a necessidade, obscuramente sentida, de um recomeço absoluto, isto é, de uma regeneração total. Seja qual for a distância entre essas comemorações profanas e o seu arquétipo mítico ? a periodicidade da Criação ? não é menos evidente que o homem moderno sente ainda a necessidade de re-atualizar periodicamente tais cenários, por mais dessacralizados que se tenham tornado. Não se põe a questão de avaliar a que ponto o homem moderno ainda está consciente das implicações mitológicas dos seus festejos; um só fato interessa: é que eles ainda têm uma certa ressonância, obscura mas profunda, em todo o seu ser”.


Da mesma obra de Mircea Eliade, infelizmente jamais adotada em cursos de Comunicação e Jornalismo, estão elencados os mitos da supressão do tempo ou resgate e previsão do Grande Tempo em que não há fricção: nesse sentido, a fricção da qual nenhum de nós poderá fugir ao longo de nossas vidas (como tão bem postulavam por exemplo Norberto Bobbio e Ortega y Gasset) encontra um fim nos mitos de uma sociedade mais justa, seja a
salvação pelo comunismo (Marx) ou pelo Reino Igualitário dos Céus (Cristo) ? de resto, sociedades escatológicas, do futuro, sem tempo que as corrompa.

As revistas sobre celebridades são, nesse sentido, os buracos negros da mídia: a tudo absorvem, até a próprio noção de tempo. Por isso tanto nos atraem: são na verdade dobras temporais (time wharps).

Ardis da mídia

O mito da mídia das celebridades requer sempre o prenúncio de uma vida nova, um incipit vita nova, e a isso os reality shows já prestaram atenção: inscreva-se no concurso e concorra ao ingresso no mundo das celebridades em que a fricção não existe! Já que todo o signo da mídia é ambivalente, de vez em quando é bom mostrar que o outro lado da vida, a vida realpolitik do povão, pode também suceder ao mundo do faz-de-conta das mega-estrelas. Foi por isso que, mesmo a custa de um erro de jornalismo quase criminoso, Época colocou em sua capa Ana Maria Braga dizendo que suspeitava ser vítima de erro médico. Foi por isso que a morte de Ayrton Senna alavancou tanto as vendas da mídia de celebridades: era um raro prenúncio de que o diabolo ex machina também baixa na encruzilhada das esquinas em que os jet setters têm as suas coberturas e castelos.

Aliás, no mesmo artigo da revista da Associação Nacional dos Editores de Revistas, lemos o seguinte extrato didático, em que fala à repórter Sueli Mello o diretor-superintendente de Caras, Edgardo Martolio:


“Nós estávamos encontrando essa fórmula de adaptação local quando aconteceu o acidente com o Senna. Foi quando nós vendemos 1 milhão de exemplares. E, com base nisso, começamos a vender mais porque Senna dividiu a história de Caras“.


O mito da mídia viverá ainda muito disso. Mas, quando o Zé Povinho ganha o status de celebridade mítica porque foi visto fazendo sexo debaixo dos edredons, alguns ajustes têm de ser refeitos caso contrário o modelo se esgota. Não é para menos que a Rede Globo anunciou que vai colocar mega-estrelas mundiais, como Paul McCartney, nas novelas: já que o mito tradicional agora freqüenta a mesma telinha que o Zé Povinho recentemente alçado a mito pelo atalho dos reality shows, temos que criar algo que ultrapasse a estratosfera. Afinal, o mito não pode ser dessacralizado.

Redramatizando o mundo, e desdramatizando o tempo, a mídia prossegue em seus ardis: afinal the show must goes on.

(*) Repórter especial da Rádio Jovem
Pan, professor da ECA-USP e do Unifiam (SP), membro do International Consortium
of Investigative Journalists (
www.icij.org)