‘O Núcleo de Cotidiano, responsável por acompanhar os assuntos relativos à cidade, precisa rever o modo como vem fazendo a cobertura dos temas policiais. Por diversas vezes, em comentários internos, tenho alertado que as notícias vêm apenas reproduzindo o que dizem as autoridades, sem investigação por parte do jornal. O mais grave é que esses depoimentos, uma versão dos fatos – normalmente provindos de fontes policiais -, freqüentemente são tomados como verdade factual. Os exemplos são muitos; para vê-los basta consultar algumas edições.
O POVO já teve problema sério com isso, depois de um adolescente de 16 anos ter sido morto pelo guarda de segurança de um posto de gasolina, em março de 2005. Pela versão da polícia, o jovem, junto com outro rapaz, tentava assaltar o estabelecimento quando foi morto. Além de acusá-los de assaltantes, foram-lhes atribuídas ‘várias passagens pela polícia’, segundo declarações da autoridade policial, que o jornal reproduziu como verdadeiras. O caso foi comentado na coluna ‘História exemplar’ (www.opovo.com.br/opovo/ombudsman/pliniobortolotti/458303.html). Na ocasião, o jornal teve uma postura correta: assumiu o erro, investigou o assunto e publicou o resultado, desmontando a versão policial.
Após isso, e durante certo tempo, aumentaram-se os cuidados em relação ao assunto e os problemas foram reduzidos. Entretanto vem-se verificando afrouxamento dos controles, culminando com ‘Adolescente morto e outro apreendido após assalto a PM’ (pág. 2, edição de quinta-feira). O morto a que se refere o título é um jovem de 14 anos que, junto com outro de 17 anos, segundo a matéria, teria tentado assaltar um soldado da Polícia Militar que estava com o filho de oito anos de idade, sendo este atingido no braço por um dos tiros disparados pelos rapazes.
Depois desse primeiro confronto, segundo a notícia, aconteceram outros três tiroteios durante a perseguição, na qual se envolveram soldados de duas companhias da Polícia Militar. O último e fatal encontro entre os policiais e o adolescente aconteceu da seguinte maneira, segundo o texto: ‘O primeiro disparo a atingir (o adolescente) foi na perna. Mesmo ferido, ele entrou no rio (Maranguapinho) (…), disparando contra os policiais. Foi quando dois outros tiros (o) atingiram no abdômen. O Adolescente conseguiu alcançar a outra margem, mas, em razão dos ferimentos, não deu prosseguimento à fuga.’ Segundo a notícia, os policias levaram o rapaz para o hospital, mas ele morreu antes de ser atendido. O texto sugere, pela forma como foi escrito, que o repórter testemunhou os acontecimentos, mas foi construído a partir de declarações de policiais. A história, da forma contada, parece inverossímil: que tipo de arma e quanta munição tinham os adolescentes para sustentar o ‘intenso tiroteio’ nos confrontos? Quantos policiais participaram da ação? Essas informações não estavam na matéria.
O repórter Nicolau Araújo, autor do texto, responde que, para ‘compor a matéria com riqueza de detalhes’, ele ouviu a 2ª Companhia do 6º Batalhão (Caucaia), a 4ª Companhia do 6º Batalhão (Conjunto Ceará), o Centro Integrado de Operações Policiais (Ciops) e a Delegacia Metropolitana de Caucaia. Segundo Nicolau, ‘as informações somente foram repassadas para os leitores depois que duas ou três fontes confirmaram a mesma história’. (Todas fontes oficiais da polícia, como se pode observar.) Sobre o tiroteio, ele responde: ‘Os adolescentes se esconderam nas matas durante boa parte da operação policial, como ainda, claro, foram ‘alvos’ de vários disparos, do que propriamente dispararam’.
Sobre o tipo de armamento que portavam e a quantidade de munição de que dispunham, informação faltante na matéria, o repórter acrescenta: ‘Os adolescentes estavam armados com revólveres calibre 38 e possuíam munições, segundo a polícia.’ Na resposta, o repórter retoca um pouco a matéria: os adolescentes viram ‘alvo’ dos disparos, em vez de agressores temerários, em condições de revidar à força policial. Sem ser especialista no assunto, parece óbvio que para sustentar os vários confrontos contra um grande número de policiais, como deixa transparecer a matéria (o cerco durou mais de duas horas e foram mobilizados soldados de duas companhias) seria necessário que os jovens estivessem bem armados e com bastante munição.
Como já escrevi uma vez, não se trata de duvidar, liminarmente, das informações da polícia e nem supor que adolescentes sejam incapazes de cometer crime – e menos ainda de defender a impunidade. No entanto, o repórter tem de se apegar à verdade factual; tem aplicar o método jornalístico: investigar, apurar, ouvir fontes variadas, exercitar a capacidade de perguntar, questionar, desconfiar, de confrontar as versões com a realidade. Se nada disso for possível, devido à pressão do relógio ou por qualquer outro motivo – e se a notícia for relevante – é imperativo deixar claro para o leitor que se trata de uma versão, dando-lhe o exato valor que ela tem: um modo particular de enxergar as coisas, sob os pré-conceitos (e interesses) de quem as vê.
IMPRENSA
O jornalista Ricardo Kotscho esteve em Fortaleza esta semana para o lançamento do livro Do Golpe ao Planalto – Uma Vida de Repórter, lembrando seus 40 anos de batente. Ele já esteve no que chama de ‘outro lado do balcão’, como titular da Secretaria de Imprensa e Divulgação, durante dois anos (2002-2004), no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, mantendo os mesmos princípios que pautaram a sua vida de jornalista. Estive no lançamento do livro, quando Kotscho conversou com os presentes. Anotei algumas frases, que deixo à reflexão dos leitores.
‘A imprensa foi longe demais. Vários veículos transformaram-se em partidos políticos e vêm perdendo leitores.’
‘A imprensa tem de contar ao povo o que acontece e não dizer em quem ele tem de votar.’
‘A grande mídia perdeu o contato com a realidade. É preciso voltar ao seu papel original.’
‘A grande derrotada nessas eleições é a mídia brasileira. Ela o que resta de coronelismo no Brasil.’
‘É preciso repensar o modelo de jornalismo; de artigo de primeira necessidade o jornal está se tornando dispensável.’
‘Liberdade de imprensa é (fundamentalmente) o direito de a sociedade ser informada.’
‘Todo mundo tem medo de brigar com a imprensa.’’