Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia legitima servilismo governista

ARGENTINA & FMI

Sérgio Luiz Gadini (*)

Na semana passada, boa parte da mídia fez coro com o servilismo político brasileiro, diante da simples resistência do governo argentino em aceitar as imposições do Fundo Monetário Internacional (FMI) para renegociar sua dívida externa.

O substantivo que mais se ouviu/leu foi "calote". Dos telejornais às emissoras de rádio, chegando aos jornais impressos e às páginas da internet, em alguns casos, a notícia assumiu defesa propagandística do imperialismo materializado no FMI: "O maior calote da história" ou "Argentina apela para o calote", arriscaram alguns colunistas e comentaristas, obviamente tentando avalizar o servilismo econômico que tem caracterizado os sucessivos governos brasileiros, fielmente mantido pela administração petista.

Diante da relativa eficácia da estratégia do governo argentino, de um dia para o outro a mídia precisou voltar atrás para reconhecer que o "calote" fez a cúpula do FMI rever as regras antes impostas para renegociar a dívida. E o que fez a mídia brasileira, no dia seguinte? Em vez de rever e, a partir do caso argentino, discutir a política econômica do governo Lula (que está arrochando ainda mais a vida da maioria da população), boa parte dos diários e telejornais do país optou pelo silêncio. Breves notas, notícias rápidas ou matérias de agências davam o tom da cobertura (vergonhoso, em alguns casos, se comparado ao modo como foi noticiado no dia anterior).

O acordo que acabou aprovado entre o governo argentino e o FMI não é nenhuma medida de resistência revolucionária contra a dependência econômica, mas indica claramente um caminho para que os banqueiros tenham mais respeito com os países que há décadas pagam juros com o dinheiro que deveria ser aplicado em serviços públicos.

Mesmo que o recuo do FMI não signifique muita coisa, se comparado ao caso da dívida brasileira, o fato é que entre as imposições do Fundo para negociar com a Argentina estava um aumento das tarifas públicas e a garantia de elevado superávit. Ao questionar as principais cláusulas do acordo, o governo do presidente Néstor Kirchner, eleito em disputa desacreditada (com aproximadamente 23% dos votos válidos, uma vez que não houve segundo turno pela desistência do concorrente), sugere que não adianta muito receber cerca de 60% dos votos numa eleição… e continuar aceitando a política econômica ditada por grandes banqueiros, sob a batuta do Fundo Monetário Internacional.

"Caso diferente"

Mais ilustrativa dessa "defesa" que parte da mídia verde-amarela fez da política de dependência econômica globalizada na miséria parece ter sido a coluna de Merval Pereira (O Globo, 12/9/03). Como que assumindo a função de porta-voz dos interesses do FMI, o Sr. Pereira mantém postura similar a de outros coleguinhas: tenta desqualificar o questionamento do governo argentino, começando pelo título de seu texto ("Bravatas e realidade").


"A mais recente bravata do presidente da Argentina, Néstor Kirchner, que resultou numa aparente vitória diante do FMI, não emocionou muito a área econômica do governo. O quase calote não mereceu um telefonema de congratulações do presidente Lula (do que se queixou Kirchner) pelo simples fato de que não se considera, no governo brasileiro, que este seja um fato a comemorar. Talvez agora, com o acordo firmado, Lula telefone", diz.


Ah! E quem disse que a iniciativa do governo argentino deveria "emocionar&qquot; o embalo servil e entreguista que parece marcar o atual governo brasileiro, Sr. Pereira? Os dirigentes do FMI, os grandes banqueiros e, a essa altura, também os (novos?) liberais que respondem pela política da agiotagem institucionalizada, devem agradecer essa considerável parcela da mídia verde-amarela que faz coro ao que denominam de "manutenção de "compromissos"… às custas da fome de milhões de brasileiros, que até votaram em Lula esperando outra coisa.

Talvez fosse melhor pensar que alguns desses coleguinhas não leram ou não chegaram a compreender direito a lógica da dependência econômica que os governos da maioria dos países pobres mantêm para "agradar" velhos agiotas da (neo)globalização.

E como ficou o governo brasileiro? Ainda se lê uma ou outra matéria em que ministros tentam explicar que "o caso argentino seria diferente do nosso". Conversa para… dormir! A propósito: questionar uma dívida, que já foi paga várias vezes em seu valor real, e é mantida como estratégia de dependência econômica, seria mesmo um calote?

(*) Jornalista, professor da UEPG-PR