Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Autores e editores numa boa notícia

A mídia brasileira parece a serviço de meia dúzia de editoras, das quais noticia ainda assim poucos lançamentos, de alguns poucos autores. E tampouco se ocupa das verdadeiras questões que afligem aqueles que concebem o livro como figura solar desde o Renascimento, os habitantes da Galáxia Gutenberg, entre nós extremamente despovoada.


Ainda assim, o Brasil vive o esplendor de uma produção editorial impressionante. Por isso a estranheza é ainda maior quando a mídia não cobre palavras e ações que vêm alterando o mundo do livro no Brasil. Duas ou três notinhas aqui e ali sobre os mesmos editores e alguns de seus autores e o notório banimento da Bienal do Livro exemplificam o descaso geral.


Por isso, não é surpresa que a mídia tenha ignorado um pronunciamento que, pela importância e pertinência do tema, fez por merecer repercussão, entretanto abafada. Refiro-me ao discurso de Renata Farhat Borges, presidente da Liga Brasileira de Editores (LIBRE), no 7º Congresso Ibero Americano de Editores, cujo tema central foi ‘O Livro, a Leitura e a Construção da Cidadania’, em 13 de agosto de 2008. Aos interessados: a íntegra do pronunciamento está disponível aqui.


‘Ação transformadora’


Diz ela logo na abertura:




‘Dentre as inúmeras assertivas dos editores independentes em todo o mundo, que se manifestaram formalmente em novembro de 2005 por meio da Declaração ou Manifesto de Guadalajara, estão aquelas bastante conhecidas de todos que atuam pela preservação da chamada bibliodiversidade: a de que a edição independente, ou edição local, aquela que é considerada instrumento das expressões culturais locais, sofre os efeitos da globalização econômica e da concentração de capital do setor nas mãos de grandes grupos de edição’.


No Brasil, não apenas os chamados pequenos editores estão sofrendo este tipo de restrição, mas a maioria das cerca de três mil editoras. Não é necessário pesquisar muito para se constatar que das cem maiores editoras brasileiras, apenas cerca de dez delas conseguem, não se sabe bem por quais razões, a atenção dos grandes jornais e revistas.


Continua a presidente da LIBRE:




‘A ação do editor independente na transmissão de valores do imaginário e das culturas locais não é compatível com a lógica mercantilista dos grandes grupos editoriais’.


Mas esta restrição, que vale para o atacado no mundo editorial das grandes corporações, manifesta-se no Brasil numa reprodução interna que amplia tal distorção no limite da perversidade.


Assim, nas palavras trazidas por Renata Borges para uma pertinente discussão, ‘o empobrecimento cultural que se alastra pela tendência homogeneizante do mercado editorial globalizado não se afina com os pressupostos da Convenção Sobre a Protecção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da Unesco, que expressa os ideais da maioria dos povos sobre a integração e o respeito às culturas locais’.


Retomando o manifesto em que se baseia, põe em destaque especial um trecho em que é apontada uma possível forma de enfrentar o cerco, não da mídia, mas do mercado:




‘O Manifesto fez um apelo a todos os editores independentes para que se reunissem em coletivos nacionais, regionais e internacionais a fim de defender os direitos dos editores empreendedores, de influenciar as políticas públicas do livro ao redor do mundo, dando especial atenção às especificidades dessa fatia do mercado editorial’.


Assinado por 70 editores de três continentes, o documento enseja que autores, bibliotecários e livrarias trilhem caminhos diferentes dos que vêm sendo percorridos até aqui, ao unir forças para o que chama de ‘uma ação transformadora’.


Sementes que frutificam


A LIBRE congrega 93 editoras brasileiras, definidas como independentes, procura organizar alguns atores do mundo do livro (autores, ilustradores, tradutores, editores iniciantes etc.) reunindo-os em encontros periódicos na busca de soluções para problemas comuns.


O Ministério da Cultura vem sendo instigado a incentivar a criação de quatro pólos regionais de apoio e estímulo à cadeia independente do livro, que já tem um nome: Ponto do Livro.


Segundo a presidente da LIBRE, ‘nesse momento, o Minc estuda a possibilidade de incluir essa proposta no programa Cultura Viva, que destina orçamento da União para pontos de cultura espalhados pelos Brasil’.


Mas os quase cem editores não se limitam a esperar as habituais benesses do governo. Ainda neste 2008, vão realizar em São Paulo e no Rio dois importantes eventos. Na capital paulista, a quinta edição da Primavera dos Livros. No Rio, esse evento já vai para a oitava edição.


Também o Sebrae-SP, entidade que apóia o desenvolvimento do empreendedorismo comercial no Brasil, foi provocado e designou um consultor especialista em redes colaborativas, com o fim de identificar possíveis acordos operacionais que vão intervir no gargalo do livro no Brasil: a sua distribuição.


Está sendo retomado ainda um projeto que o escritor Mário de Andrade inventou em 1930: o ônibus-biblioteca. É ainda um projeto modesto, mas envolve já quatro ônibus da Prefeitura Municipal de São Paulo em 112 roteiros mensais pela periferia da cidade, levando autores e livros.


Na gestão do escritor Fernando Morais como Secretário de Estado da Cultura nos anos 1980, em São Paulo, o projeto de fazer com que autores ministrassem oficinas literárias a quem queria ser escritor resultou num doce e inesperado fruto: muitos daqueles autores, que buscavam aprender com quem já demonstrara dominar certos fundamentos da arte literária, tornaram-se leitores apaixonados, não apenas pelos livros que descobriam nesses encontros, mas pelas questões cruciais que amarguravam autores, editores e leitores.


Renata Faraht Borges foi aluna dessas oficinas e talvez ali tenham sido lançadas em seu espírito as sementes que hoje começam a frutificar.


Informação sonegada


O projeto da LIBRE defende ‘políticas públicas éticas e democráticas’ para o livro num país em que há uma vitória prévia, ainda não alcançada em muitos países lusófonos: aqui, 180 milhões de pessoas falam, com leves variações dialetais que não impedem a comunicação, a mesma língua.


Poucos reconhecem que somos beneficiários neste particular da visão de um estadista que pensava no futuro: o Marquês de Pombal (1699-1782). Déspota, sim, mas que não tenhamos que escolher entre um déspota que tanto valor soube dar ao ensino da língua portuguesa e algum democrata que a tenha desprezado tanto, como tantos têm feito.


O governo Lula, que tem em seus quadros ministros e auxiliares de reconhecidos méritos intelectuais, está diante de uma oportunidade rara: levar o livro para além das 13 cidades onde hoje ele se concentra, especialmente nos estados de São Paulo, Rio, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia.


Somos 180 milhões de brasileiros, mas, embora estejamos lendo cada vez mais, ainda lemos muito pouco, ocorrendo com o livro o que já limita outros bens como o cinema, o teatro, a música de qualidade e outras formas de manifestação cultural: poucos têm acesso ao ‘biscoito fino’ que Oswald de Andrade dizia fabricar, a maioria come ‘cachorro quente’.


O atual governo retomou, alargou e aprofundou o projeto dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, que fez do governo federal o maior comprador individual de livros do mundo. Mas ainda persistem distorções de toda ordem, a começar pelos critérios de seleção do que é comprado, um verdadeiro quarto segredo de Nossa Senhora de Fátima. O que sabemos é que há exemplos concretos de que algumas escolhas têm sido feitas em bases inaceitáveis, mas que não invalidam, como insinuaram certos setores da mídia, o projeto em si, que tem sido um ponto alto deste governo e daquele que o antecedeu.


Em seu discurso, Renata Borges invocou Aldo Manuzio, mestre quinhentista da edição:




‘Um bom editor é aquele que atua concentricamente nos três âmbitos, ou que tenha pelo menos destacada sensibilidade intelectual, artística e cultural.’


Na Primavera dos Livros, que pretendem realizar entre 25 a 28 de setembro de 2008, no Centro Cultural São Paulo, as 93 editoras reunidas na LIBRE vão apresentar 10 mil títulos.


A mídia não deveria ignorar esse evento, mas não esperemos muito. Se acontecer o de sempre, dar-se-á o seguinte: será sonegada dos leitores da Galáxia Gutenberg um tema relevante e ninguém ficará sabendo de nada, como sempre.

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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de Cultura e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Novo Século); www.deonisio.com.br