DOMINGO ILEGAL
Ivo Lucchesi (*)
De início, cabe fixar quanto lamentável é a necessidade de se firmarem posições críticas (favoráveis ou contrárias) à natureza do episódio do qual se fez protagonista uma tarde do Domingo Legal. Os artigos de Marcelo Coelho e Nelson Hoineff publicados na edição da Folha de S.Paulo de domingo, 21/9 [veja íntegra na rubrica Entre Aspas, desta edição do OI], deveriam bastar para encerrar o assunto, afora tudo já declarado e publicado em semanas anteriores. Todavia, dada a importância que a frágil realidade cultural do Brasil dedica aos meios de comunicação de massa, elegendo-os como fontes prioritárias para a extração de substância com a qual a maioria da população forma para si o caldo de conhecimento, o fato criado, com seus desdobramentos em instâncias jurídicas, realimenta a discussão.
O perigo do fantasma
A questão central que mobilizou diferentes setores da mídia nacional se situa na apropriada ou indevida decisão da justiça em suspender a exibição do programa no último domingo. A situação em si é pífia. Punir o futuro com base no passado. Entra aí o recurso da “lei de presunção”. Sobre o tema já discorri, no ano anterior, em dois artigos escritos para este Observatório [“Sobre a liberdade e leis de presunção I e II”, remissões abaixo]. Não menos familiar é o tema da “pegadinha”, a respeito do qual também chamei atenção, no artigo “O país das pegadinhas”, em 15/7/03 [remissão abaixo]. Nada, portanto, do que agora está em xeque causa a menor surpresa.
Se uma emissora põe no ar matéria fictícia, fazendo-a passar por verdadeira, independentemente de seu teor mais ou menos grave, a dedução é óbvia: prática de estelionato (artigo 171 do Código Penal). Pelo delito, conseqüentemente, devem responder, na esfera jurídica, todos que para o fato concorreram, a começar pelo responsável direto: o apresentador do programa.
Caberia, no caso, à direção da emissora tomar outras medidas, tais como: preservar a figura do profissional, tirando-o temporariamente do ar, enquanto se desse a tramitação do processo; mantê-lo regularmente, como se nada houvesse ocorrido. Enfim, tratar-se-ia de uma avaliação interna. O que não se deve estimular é a condenação sumária e prévia. É bom lembrar que o “homenzinho do Texas” vendeu ao mundo o pacote militar de uma invasão no Iraque, apoiado no recurso da presunção. Presumindo que o Iraque detinha armas de destruição em massa, as forças de coalizão, a despeito do veto do Conselho de Segurança da ONU, flagelaram um país. E pior: nada de que se nutriu a presunção foi encontrado.
É claro que a farsa levada ao ar é abominável e, portanto, merecedora de punição exemplar na justa medida. Para tanto, porém, há de se agir com a prudência que os mecanismos da democracia estabelecem como procedimentos adequados. Investigue-se, reúnam-se as provas necessárias, promovam-se inquéritos e acareações. Ao fim, exiba-se à sociedade a verdade, seguida da meritória punição em conformidade com os preceitos legais. Fora desses limites, o que se tem é: poder discricionário, bravata judiciária, hipocrisia midiática.
Será que o país está disposto a rasgar a fantasia, na medida real do que o desnudamento exigiria? O modelo midiático (impresso e eletrônico) imperante há décadas no Brasil assume o compromisso público de redefinir seu rumo? As emissoras de TV (comerciais e públicas) pretendem colaborar com oferta de qualidade, em nome da purificação que o episódio mais recente suscita, poupando a população de maiores infecções cerebrais?
Será, por outro lado, que haverá da parte majoritária da população a querência por opções diferentes? Os detentores do capital (inclusive em âmbito governamental) têm a intenção de estabelecer critérios qualitativos para o destino de verbas do que patrocinam? Sinceramente, não disponho de nenhum sinal capaz de apontar transformações. Lembro que, até o incidente da fraude jornalística, a Petrobras reconhecia no Domingo Legal e, principalmente na figura de seu apresentador, um “produto” de “qualidade”, haja vista a campanha comemorativa de seu cinqüentenário, que estava sendo preparada, tendo à frente Gugu Liberato.
A ronda da hipocrisia
Num gesto de estratégica pureza e interessado pudor, anunciantes saíram suspendendo contratos com o programa em questão. Frise-se, porém, que tal atitude não proveio da exibição em si da matéria e sim da reação capitaneada por profissionais da mesma mídia, incluindo entre eles o recém-chegado “juiz de futebol-apresentador”. Há, na verdade, em todo o quadro, um acúmulo de falsificações cuja fedentina exposta deixa o ar brasileiro saturado e tóxico.
Moral da história: se das implicações que envolvem o recente fato midiático advier um projeto à altura de reverter os compromissos éticos e culturais que os meios de comunicação de massa devem ter perante a população, tudo terá sido justificado. Em caso contrário, começo a desconfiar da natureza de tanta pressão: redes interessadas em desbancar concorrentes?
Um fato estranho até agora não foi alvo de especulação. Se houve, desconheço. Refiro-me ao pedido de demissão do então diretor do Domingo Legal. Qual foi a razão do afastamento, justamente na quarta-feira anterior ao programa? Ou é coincidência, ou é interferência. Será que a demissão teve raízes numa encomenda recusada? De altos escalões (dentro e/ou fora do SBT), terá partido a idéia da matéria? Se houve, é interessante sabermos de onde partiu.
Uma coisa, por fim, é fácil de avaliar: algo pode ser ainda pior que o Domingo Legal? O próprio SBT provou que é possível. Em lugar do programa proibido, na tarde de domingo (21/9) ampliou-se o Xaveco no qual a juventude brasileira é exibida com o perfil infantil, ignorante e, como sempre, participante do que há de mais fútil. Sob esse aspecto, o veto conseguiu agravar o quadro. O desfecho melancólico se deu com um “extra” do Ratinho, exibindo os vovôs da Jovem Guarda com o que, já naquela época, não era de se exaltar. Bem, afinal de contas, nem o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, escapa dos holofotes: terminou sentado no palco em tímidos gestos rítmicos sobre o couro de um atabaque (“toda menina baiana tem um jeito…”). Muito ainda restará por se ver…
(*) Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha) ? RJ
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