Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

As novas formas de violência

A violência que campeia no Rio e em São Paulo é normalmente associada pelo leitor ou espectador de mídia a assaltos e tiroteios. Mas é preciso prestar atenção a aspectos miúdos tanto da atual campanha eleitoral no Rio quanto do cotidiano institucional dos cidadãos para se tomar contato com uma dimensão regressiva da violência que, a médio prazo, poderá ser tão ou mais assustadora do que as anomias conhecidas.

Assim é que em O Globo (17/8/2008) se pode ler que duas professoras de História da Escola Municipal Aureliano Ribeiro, em Piabetá, foram transferidas como retaliação às lições que deram sobre coronelismo e a República Velha. Uma delas descreve a perseguição:

‘Um dos alunos da oitava série era filho de uma amiga da prefeita e comentou com a mãe o que estava aprendendo. Logo depois, a diretora pediu minha transferência. Só dei a matéria do livro…’

Este é um episódio análogo à realidade, ainda próxima, da maioria dos professores sob o regime militar. Em escolas de ensino básico, ou mesmo em cursos superiores, não se podia citar impunemente Marx ou outros clássicos do pensamento social associados à transformação do Estado. O próprio fenômeno do ‘coronelismo’ político no Nordeste era tema perigoso, ainda que pela simples referência deslocada à patente militar.

Marketing e currais eleitorais

Tão ou mais regressivo ainda é o fenômeno das candidaturas de membros de clãs, destinados a manter oligarquias locais. Um exemplo: em Nilópolis (RJ), o candidato a prefeito que detém a apoio da máquina municipal e da principal coligação partidária pertence à oligarquia comanda pelo chefe da contravenção local, vinculado à quadrilha da máfia dos jogos.

Esta segunda realidade é certamente associável aos processos eleitorais da República Velha, quando se votava a bico de pena nos ‘coronéis’, sob a vigilância de jagunços. A campanha eleitoral de agora nos ‘grotões’ urbanos e periféricos do Rio é marcada, como tem demonstrado a imprensa carioca, pela presença e pela truculência de candidatos, militares e civis, ostensivamente armados.

É certo que as novas feições desse velho tipo de violência institucional vinha se desenhando ao longo das duas décadas posteriores ao fim do regime militar. Por exemplo, as eleições municipais de 2004 no Brasil, que a mídia classificou como ‘um dos maiores espetáculos eleitorais da modernidade’ (5.563 municípios, 350 mil candidatos a vereador, 15 mil candidatos a prefeito, 400 mil urnas eletrônicas, 360 mil seções eleitorais e 120 milhões de eleitores), realizadas contra um fundo de desemprego generalizado, foram, na prática, uma combinação violenta de marketing avançado com currais eleitorais ao estilo antigo.

Recrudescimento da violência

Não é preciso ser um grande analista para entender que foram se frustrando aos poucos as expectativas progressistas no sentido de que partisse da nova esquerda política uma práxis de conteúdo libertário, um ‘choque social’ ou uma ruptura do modelo econômico dominante que proclamasse uma política de renovação institucional. É preciso ressaltar que foram vários os teóricos, ao longo do século passado, a manifestar descrença quanto à possibilidade de que se pudesse desenvolver tal práxis no interior da democracia parlamentarista.

Já na primeira metade do século 20, o politólogo Carl Schmitt sustentava que a crise do parlamentarismo ‘se mostra na incompatibilidade entre instituições e regulações remanescentes do século passado e a nova realidade’. Ele via a degeneração do parlamento na passagem de sua antiga condição de instituição de debate público à de articulação de negócios privados, argumentando que o anacronismo dessa forma institucional instrumentaria a corrupção e tenderia ao centro, isto é, à despolitização e suas conseqüências.

Schmitt pertencia à direita política européia. No entanto, Alain Badiou, um pensador de esquerda, ativo na atualidade francesa, segue a mesma linha de raciocínio:

‘O parlamentarismo é uma forma política que exclui a ruptura, já que ele garante pelo menos uma continuidade, que tem a ver com a forma constitucional do Estado e, talvez, mais fundamentalmente, a continuidade da idéia de representação em sua dupla forma.’

Em outras palavras, haveria um conservadorismo de estrutura no parlamentarismo que subordina a voz popular ao voto e, portanto, subordina a política a meros ritos de calendário eleitoral.

Evidentemente, a complexidade dessa questão exige a minúcia e a paciência das longas análises. Mas os tópicos levantados podem servir como balizas para imprensa e público melhor observarem o que está ocorrendo no país, onde algo mais grave do que o velho autoritarismo estatal se instala à sombra do enfraquecimento das instituições, por sua pura e simples caduquice cívica. E esse ‘mais grave’ é o recrudescimento da violência, seja qual for a sua forma visível.

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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro