IDADE EQÜINA
Edilton Siqueira (*)
Milênios depois da invenção da escrita, a humanidade está às portas de uma nova era, onde todas as conquistas do pensamento não se resumem mais na democracia, mas no direito de abrir mão do diálogo em prol de resoluções isoladas dignas dos animais.
A divisão didática da história fatia o processo de desenvolvimento humano através de suas realizações mais importantes, onde a data provável da invenção da escrita estabelece o marco inicial da periodização. Da mesma forma, os grandes acontecimentos sociais, políticos e culturais que serviram e servem como novos orientadores para o mesmo processo são estabelecidos como delimitadores das diversas idades históricas. Foram assim consideradas, como marcos divisórios, datas como as quedas do Império Romano e de Constantinopla, além da Tomada da Bastilha.
Talvez não por acidente ou simples convenção todos esses fatos representem de um lado o aprimoramento da democracia e de outro a derrocada de um regime totalitário. Além disso, todos foram marcados em certa ordem pela destruição. Assumimos normalmente essa interpretação porque assim quis a história dos vencedores, e tais considerações somente foram trazidas às academias muitos anos depois dos fatos. A pergunta que propomos, nesse sentido, é a seguinte: seria possível perceber claramente o surgimento de uma nova era, de uma nova idade histórica? E se fosse possível, se isso acontecesse exatamente neste momento, como se definiria esta nova “idade”?
É lugar comum, mas necessário, relembrar que a escrita ampliou as possibilidades culturais, o que permitiu o surgimento da filosofia e das diversas ciências que hoje regem nosso cotidiano. Por conseguinte, os avanços científicos facilitaram a vida, ampliaram as perspectivas da humanidade e permitiram conquistas que vão da clonagem à internet. Salientando esta última, já existe tecnologia para levar quase qualquer tipo de informação conhecida aos mais isolados recantos do mundo. No entanto, a julgar por nosso comportamento cada vez menos razoável, parece que alguma coisa se perdeu no caminho.
A facilidade de acesso traria à informação melhor tratamento, resultando em melhores discussões e melhor formação da consciência. Uma conseqüência evidente, previsível, que não se confirmou. De fato, ocorreu justamente o inverso. Hoje o conhecimento está mais acessível e muito poucos se dão ao trabalho de buscá-lo. Pelo contrário, preferem “consumir” informações instantâneas. A televisão pensa por nós. Comentaristas nos apresentam realidades objetivas pré-fabricadas. Formadores de opinião expressam suas considerações pessoais como se fossem unanimidades permitidas por uma lógica incontestável. E nós simplesmente engolimos tais pílulas de sabedoria sem qualquer autocrítica, dotadas que estão da credibilidade fornecida pela maquiagem eficiente de uma linguagem rápida.
Desinformação coletiva
Pesquisas científicas têm tanto mais investimentos quanto melhor representam os planejamentos econômicos e militares (quase sempre congruentes), enquanto o povo simples prefere esquecer a crítica fundamental e continuar valorizando objetos, como pérolas e diamantes, por exemplo, que não servem para quase nada, tendo apenas valor representativo como “jóias raras” para almas idiotas. Distanciando a informação do raciocínio, o homem está parando de pensar, e vive como se fosse apenas mais um animal. É como se o cérebro estivesse fadado a escolher o que comer, o que vestir, o que comprar e em que acreditar.
A mídia exerce papel cada vez mais fundamental na condução das sociedades, tanto que o “quarto poder” conseguiu relegar a religião à quinta posição na escala do controle institucional. Muita coisa mudou desde os tempos de Gutenberg, e hoje são as igrejas que pedem a bênção dos meios de comunicação. Não é por acaso que as grandes potências político-econômicas são também os gigantes da comunicação de massa, assim como não é casual que a opinião pública de “certos países” (ou todos eles) simplesmente não tenha capacidade intelectual para compreender os meandros políticos engendrados por seus governantes.
Algumas nações tidas como portentosas transitam pelo mundo como macacos em loja de cristais. Do outro lado, nas periferias econômicas miseráveis, o diálogo que já não existia e a educação que nunca chegou ao batente foram substituídos pela brutalidade, agora incrementada pela moderna facilidade na obtenção de recursos de guerra, desde armas e explosivos a informações distorcidas por seitas fanáticas. Grupos políticos obscuros e organizações paramilitares de “revolução popular” conseguem arregimentar militantes através de continentes, seja na rede mundial da al-Qaida ou no caso do estudante carioca Alexandre Donato, que com apenas 14 anos fugiu de casa e decidiu enfrentar sozinho a travessia dos rios amazônicos para juntar-se à guerrilha colombiana das Farc. Nessa desinformação coletiva ninguém esmiúça o conteúdo até o limite, a verdade possível fica a meio caminho, o diálogo escorre pelo ralo e o raciocínio que vá para o inferno.
Monólogo universal
Há diversas evidências dessa mediocridade do debate democrático contemporâneo. Osama bin Laden, milionário saudita com formação superior, envolve-se nos conflitos religiosos de sua etnia e aprende as artes da guerra com os norte-americanos que promovem a luta contra o regime soviético. Anos depois o mesmo guerrilheiro promove o atentado terrorista mais bem-sucedido da história, no coração da nação tida como invulnerável, outrora sua aliada e agora inimiga mortal. O governo Bush inicia o combate aos inimigos ocultos promovendo sua própria escalada de “terrorismo de Estado”. Invade o Afeganistão e, em seguida, contrariando a ONU e quase todo o mundo, alia-se a alguns poucos parceiros econômicos e invade também o Iraque, sob a desculpa da ameaça de armas de destruição em massa que nunca foram encontradas. Hoje pede auxílio à ONU para tomar conta do problema que criou e não consegue controlar, relembrando um Vietnã já quase superado, enquanto deixa à míngua dois povos sofridos que já nem lembram o que é liberdade.
Mais. A ministra de Relações Exteriores da Suécia ? um dos países com melhor qualidade de vida e educação do mundo ? é esfaqueada num supermercado, supostamente devido a suas posições políticas. Quase inacreditável. Enquanto isso, na periferia do mundo, jovens matam-se uns aos outros nas guerrilhas urbanas brasileiras e latinas em geral, nos conflitos étnicos africanos, nas “guerras santas” do Oriente Médio, nas revoltas populares da Indonésia… Nem bem completamos 10 anos da queda do Muro de Berlim e surge um novo, agora na Cisjordânia, construído pelo governo de Israel para separar fisicamente árabes e judeus. E finalmente, complementando nossa seqüência de desastres, o já lendário conflito entre israelenses e palestinos é coroado pela recente observação do vice-primeiro-ministro israelense, Ehud Olmert, que considera o assassinato do líder palestino Yasser Arafat como uma das opções mais viáveis para acabar com os obstáculos à paz na região. Ninguém sabe o que este senhor comeu antes de proferir tamanha “genialidade”.
Em todos estes exemplos somente uma coisa permanece evidente: não existe mais diálogo. Quando muito, um monólogo inflamado pela imprensa na tentativa (quase sempre bem-sucedida) de hipnotizar a opinião pública, haja vista o apoio do povo americano à invasão do Iraque a despeito de todos os protestos mundiais e locais, ilhados que estavam nas considerações dos “falcões” e seus asseclas. Considerando nossos dias, podemos dizer sem grande margem de erro que a queda do WTC representa o marco de uma nova era em que o ser humano simplesmente parou de conversar.
Ave Incitatus!
Não há mais diálogo entre as pessoas, desde os relacionamentos entre pais e filhos, que se enfrentam cada vez mais violentamente todos os dias, às negociações entre nações que nunca chegam a consensos pacíficos. Vivendo irracionalmente, jogamos por terra toda a consciência obtida com o duro esforço de tanta reflexão científica e filosófica.
Parecemos estar mesmo condenados a voltar às origens, não mais como criaturas destinadas a pensar, refletir, crescer e viver melhor. Mas retornamos ao pasto, relinchando palavras de ordem e promovendo a democracia terrorista aos coices. Nos tempos de Incitatus os quadrúpedes chegavam apenas ao posto de senador. É lamentável que hoje pareçam assumir a posição de chefes de Estado, já que não se sabe se os vaqueiros ou seus cavalos dominam o mundo e assim configuram o surgimento dessa nova Idade Eqüina, que pode vir a ser mesmo uma nova fase histórica.
Talvez todos esses lamentos sejam enganos passageiros, e não o surgimento de um novo tempo. Tomara, pois de outra forma, será a primeira vez na história em que o novo divisor será um marco de destruição ocorrido não para o crescimento da consciência, mas para destinar nosso retorno às cavernas.
(*) Analista de sistemas, estudante de Filosofia e (se tudo correr bem) futuro jornalista