Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um tema fora da pauta

AMÉRICA LATINA

Chico Sant?Anna (*)

Nos últimos tempos, a América Latina tem aparecido com maior freqüência nas páginas de jornal e nas televisões brasileiras. A nova inclinação da política externa nacional traz como conseqüência maior espaço para os países vizinhos ao Brasil. Crise econômica na Argentina e Uruguai, guerrilha na Colômbia, instabilidade social e política na Venezuela e no Chile são alguns dos temas preferidos dos nossos meios de comunicação. Apesar dos esforços governamentais de unir a América Latina, dificilmente encontramos uma notícia de caráter positivo. Tradicionalmente, os países latino-americanos, suas realidades, culturas e feitos são muito mal divulgados no Brasil. Fala-se pouco da América Latina e o pouco que se fala é quase sempre pejorativo.

Uma análise das notícias divulgadas durante quatro anos em três importantes jornais brasileiros (Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e Correio Braziliense, de 1990 a 1994) mostrou que, em média, as 21 nações latino-americanas não chegam a gerar duas notícias por dia em cada um desses periódicos. A freqüência é de apenas 1,41 nota diária. Em geral, esse jornais destinam de duas a quatro páginas aos temas internacionais. Cada uma dessas páginas abriga cerca de quatro a seis notícias. Comparando-se o espaço físico destinado ao noticiário internacional e o espaço ocupado pelos temas latinos percebe-se o grau de importância dos países da região para a imprensa tupiniquim.

Os jornais fazem ainda um recorte temático muito peculiar, pelo qual grande parte da América Latina desaparece na geografia de nossa imprensa. Nosso estudo demonstrou que duas em cada três notícias regionais se referiam a um seleto grupo de países: Peru, Colômbia, Cuba, México, Chile e Argentina. Assim, para a maioria dos brasileiros com acesso aos jornais pesquisados, a América Latina praticamente se limita a esses países. Sobre os demais não se publicava quase nada e, portanto, eles deixam de existir imaginário do brasileiro. As exceções são para momentos bem específicos. Uma viagem da seleção brasileira de futebol para América Central, ou um campeonato em alguma paradisíaca ilha do Caribe. Países como Honduras, Costa Rica. Guatemala, El Salvador, Equador e Haiti, só ocupam espaço em nossa mídia se houver uma grande catástrofe ou se a tabela da FIFA colocá-los na rota da seleção.

Ótica particular

O afunilamento editorial verificado não se limita à dimensão geográfica. Há também uma forte concentração em poucos temas. Todos com carga negativa muito forte. Terrorismo, narcotráfico, crises sociais, econômicas e políticas, instabilidades nos parlamentos, nas sedes dos governos e nos quartéis ocupavam, no noticiário examinado, sete em cada dez notícias. Para se ter um paralelo, a produção científica e tecnológica latino-americana não chegou a representar meio por cento das 7.891 reportagens identificadas.

O somatório dessas duas características editoriais leva a opinião pública a entender a América Latina como sinônimo de Peru, Colômbia, Cuba, México, Chile e Argentina ? com o tempero de crises políticas, corrupção, guerrilhas, contrabando, narcotráfico, dentre outros temas grotescos. Poucos brasileiros saberão apontar que avanço científico ou tecnológico se desenvolve neste Nuevo Mundo. Desconhecerá as pesquisas colombianas para a produção da vacina contra a malária, os avanços cubanos com o Interferon, não saberá que existem quase meio bilhão de hermanitos e hermanitas que possuem ricas histórias culturais e sociais bem próximas às brasileiras e que, a cada dia, buscam contribuir para um mundo melhor.

Recentemente, outros países começaram a ficar mais em evidência. A abordagem, porém, leva o mesmo referencial: efeitos "tango" e "tequila", as "loucuras" de Chávez, a "ditadura" de Fidel e a guerrilha colombiana são as predileções de nossa imprensa, que é incapaz de manter uma coluna fixa para os temas latino-americanos. Nem mesmo as novas tecnologias, que permitem em tempo real ver o que se passa numa televisão andina ou nas paginas de qualquer jornal caribenho, mudou esse comportamento secular da imprensa brasileira.

A importância dada a fatos ocorridos na nossa vizinhança é a mesma concedida a acontecimentos verificados no outro lado do planeta. Prevalece o critério do sensacionalismo. Quase não temos correspondentes estrangeiros: a maioria é de free lancers que não desenvolvem uma cobertura rotineira e só são acionados em momentos de críticos. Desta forma, prevalecem as agências transnacionais de notícias que contam o que querem com a ótica que desejam. Se, para o sociólogo francês Pierre Bourdieu, os jornalistas têm um par de óculos muito especial para ver o mundo, poderíamos acrescentar que as lentes das agências são bem mais diferentes.

Amnésia editorial

A recente reunião de cúpula da Organização Mundial do Comércio, em Cancún (México), mostra bem a importância estratégica da notícia. Com estruturas mais poderosas, as agências transnacionais repassaram com muita maior ênfase o ponto de vista dos Estados Unidos e da União Européia, em detrimento do G-22, grupo dos países em desenvolvimento que reúne mais da metade da população mundial, dentre as quais as da China, Índia, África do Sul, Brasil e Venezuela. Assim, a maior fatia da população do mundo ficou menos informada sobre as propostas que lhe trariam maiores benefícios e mais informada sobre a posição dos ricos e poderosos.

Em recente pesquisa de mestrado, por mim realizada na Universidade de Brasília, acompanhei todas as notícias veiculadas na grande imprensa nacional sobre as eleições de 2001 na Venezuela. Eleições que deram a vitória a Hugo Chávez e a aprovação da nova Constituição. Ao longo de seis meses, o total de notícias veiculadas nos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Correio Braziliense, Gazeta Mercantil, O Globo e Jornal do Brasil foi de aproximadamente cem textos. Apenas três notícias foram feitas por correspondentes ? duas na Folha e uma no Globo. Todas as demais foram transmitidas por agências, em sua grande maioria retransmitindo notas veiculadas na imprensa oposicionista da Venezuela.

Nos seis meses pesquisados, as notícias pareciam desejar construir um cenário de instabilidade política, criar nas mentes a possibilidade de derrota de Chávez, de crise social. As notas despejadas pelos computadores buscavam classificar o mandatário do país vizinho numa espécie de "bobão", "um milico golpista sem condições de governabilidade", "um novo general latino-americano". Por outro lado classificavam de "moderno", "símbolo de avanço", "capaz" e "democrático" a Francisco Árias, outro militar que esteve ao lado de Chávez no frustrado golpe militar, mas que preferiu ser candidato pelo establishment. Pois bem: Chávez venceu e é com ele que desde o governo FHC se negociam tratados econômicos para desenvolvimento regional. Seria normal esperar de Chávez, ou da opinião pública brasileira rejeições de lado a lado.

É de se ressaltar que, embora as três reportagens feitas especialmente pelas repórteres brasileiras enviadas pelos jornais brasileiros ? todas elas muito bem conceituadas na imprensa nacional ? mostrassem um cenário totalmente contrário ao que transmitiam as agências, nossos veículos pareciam dar mais credibilidade aos informes estrangeiros. A cada reportagem feita pela equipe própria surgiam no dia seguinte longos textos contradizendo o da véspera. Resultado: o cenário construído e repassado aos leitores brasileiros se mostrou irreal, ainda no dia da eleição as agências internacionais apontassem um empate técnico.

As urnas mostraram que a leitura das correspondentes brasileiras estava certa, embora tenham sido ignorada. Mais grave ainda: no dia seguinte, quando Chávez venceu, nenhum diário brasileiro teve a ética de fazer um mea culpa. Como numa amnésia editorial fortíssima, todos estamparam em grandes manchetes os êxitos do líder venezuelano e não explicaram aos leitores porque as notícias veiculadas anteriormente apontavam para um desfecho totalmente diferente.

Semente da segregação

Estaria a imprensa brasileira vinculada a uma grande trama internacional? A esta pergunta procuramos responder nas investigações. É possível que sim. Talvez mais por omissão do que por ação. A América Latina não é notícia que valha uma cobertura de melhor qualidade? Este é o sentimento de muitos colegas de profissão.

Por que não utilizamos os avanços da tecnologia para propiciar à opinião pública uma gama mais ampla de informações? Não encontrei nenhum manual, nenhuma ordem, nenhuma determinação patronal que estabelecesse um melhor tratamento editorial às bombas de Israel do que às de Bogotá. Nada que garantisse maior volume de informação sobre Saddam Hussein do que a Eduardo Duhalde. É certo que a inércia jornalística diante do volume de informações despejadas pelas agências noticiosas torna mais fácil preencher os espaços ainda vazios das páginas dos diários. A falta de correspondentes próprios reduz a capacidade de escolha. Mas, mesmo quando o assunto é jornalisticamente forte, há um comportamento cultural por parte de alguns de nossos editores contrário à América Latina.

Esse desinteresse editorial pôde ser constatado em fevereiro de 1999 (época em que eram privatizadas as companhias brasileiras de eletricidade), quando a imprensa nacional ignorou um apagón em Buenos Aires. A falta de luz, atribuída à falta de competência de uma empresa recém-privatizada, durou mais de uma semana e trouxe prejuízos de bilhões de dólares.

Nosso tratamento editorial pôde também ser constatado no início da crise econômica da Argentina, em 2001, quando um dos editores de Internacional que acompanhamos preferiu substituir os informes sobre a Casa Rosada por uma nota que relatava o fato de Monica Lewisnky ? a estagiária que teria tido relações sexuais com o ex-presidente Bill Clinton ? ter obtido na justiça norte-americana a autorização para recuperar o vestido, ainda impregnado com o sêmen de Clinton. Em outra oportunidade, outro apagão, desta vez no México, foi substituído por fofocas internas à coroa inglesa. "O povo prefere escândalos, por isso, é importante causar impacto", justificou o editor de plantão.

Muitos irão dizer que crises lá fora não são interessantes, mas tal critério editorial não permitiu aos brasileiros uma melhor reflexão sobre o futuro da privatização das nossas companhias elétricas. Registre-se que o capital internacional estava presente nas empresas argentinas e mexicanas que provocaram os apagões, tidos pelas imprensas locais como frutos da falta de conhecimento tecnológico dos novos proprietários das antigas estatais.

Numa viagem ao passado da imprensa brasileira é possível constatar que nunca os meios de comunicação tiveram um sentimento de latinidade, de construir uma identidade latino-americana, de buscar tornar mais próximos os brasileiros de seus vizinhos. Pelo contrário, tanto na imprensa quanto na literatura e até nos livros escolares do Império era transmitido um sentimento xenófobo. Vale ressaltar que a recíproca também era verdadeira. Se do lado de cá os jornais estampavam que o melhor lugar para um paraguaio era o pelourinho do centro da praça, de lá surgiam as expressões macaquitos brasilños e cambá, que em guarani significava negro malandro.

Historiadores como Francisco Adolfo Varnhagen e Mello de Moraes, responsáveis pelos primeiros manuais de História do Brasil, plantavam, ainda no Império, a semente da segregação. Semente absorvida nas artes, como são os casos de Joaquim Manoel de Macedo, romancista autor de A Moreninha, e Pedro Américo, autor da pintura A Batalha do Avaí.

Controle social

Se hoje presenciamos uma Europa unificada e, para tanto, além dos acordos econômicos, volta suas objetivas e holofotes para construir uma identidade européia, para mostrar a franceses o que há de bom na Alemanha, a espanhóis o que se destaca em Portugal; se hoje a União Européia deseja se fortalecer a partir da unidade diante dos Estados Unidos e para isso procura construir um novo imaginário popular; nós, abaixo da linha do Equador, continuamos a nos agredir, a ridicularizar e a caricaturar a vizinhança. O Brasil ainda está de costas para a América Latina. Desta maneira, perde o espaço privilegiado que poderia desfrutar no mundo globalizado e se torna apenas mais um das duas centenas de países que a Terra abriga.

O especialista cubano Ernesto Vera registrou uma vez que a sobrevivência dos latino-americanos, enquanto um povo independente, está à mercê da mídia.


"Sem uma consciência é impossível alcançar objetivos libertadores nacionais e sociais. (…) A América Latina e o Caribe estão obrigadas a despertar e atuar com passos firmes pela integração, mas devem fazê-lo com a urgência que exigem os tempos. Essa é precisamente a ação concertada dos jornalistas progressistas latino-americanos, permitindo influir de forma ativa na necessidade de sobrevivência de nossos povos."


Na Europa foi criado um canal franco-alemão, Arte, dedicado a aparar as históricas arestas entre os dois povos. Uma agência de notícias televisivas, Euronews, procura aproximar todos os países por meio da informação. Outro canal, TV-5, reúne os povos europeus e africanos de fala francesa. Nossa imprensa continua olhando apenas para o Hemisfério Norte. A imprensa nacional, as autoridades, os fóruns Mercosul, Parlatino e congêneres deveriam priorizar um maior intercâmbio de informações, maior espaço para as notícias, maior e melhor volume de informações. Resta saber se os interesses econômicos das empresas jornalísticas brasileiras, principalmente quando vivenciamos um momento de globalização, estão afinados com este processo que tem natureza emancipatória. Estaríamos diante do fenômeno dos "mecanismos condicionadores", que Armand Mattelard relembra em O imperialismo cultural na era das multinacionais, e que eram utilizados pelos estrategistas da guerra do Vietnã como a conquista de corações e mentes?

O comportamento de nossa mídia pode ser causa ou conseqüência dessa nova ordem mundial e, neste caso, é preciso ter em mente as palavras Homi Bhabba, que se considera "convencido de que a dominação econômica e política tem uma profunda influência hegemônica sobre as ordens de informação no mundo ocidental, sua mídia popular, suas instituições e acadêmicos especializados".

Para Ernesto Vera, "os grandes meios [da comunicação] carecem de pátria e têm por soberano o grande poder econômico e os lucros, sempre num casamento comercial, que atua com fator externo que transformaram a notícia e a ética profissional numa mercadoria".Cabe a nossos empresários do jornalismo mostrar o contrário.

Somos forçados a admitir, no entanto, que este quadro tende a se consolidar diante do processo de convergência tecnológica e econômica, salvo se mudanças estruturais sejam implantadas de forma a transformar a informação num fator de evolução social e de fortalecimento da união de nossas nações. Para isto, se fazem necessárias as seguintes mudanças:

** Alteração dos modelos pedagógicos e dos conteúdos didáticos na educação escolar brasileira de forma a, no médio e longo prazos, gerar um novo conceito cultural sobre a América Latina e sobre a importância do processo de integração regional;

** Alterar o ensino de Jornalismo, de forma a capacitar os estudantes de Comunicação dentro de um contexto onde a América Latina, sua cultura, seu povo e seus meios de comunicação sejam alvo de estudos e preocupação;

** Inclusão nos acordos internacionais pró-integração latino-americana de mecanismos práticos que incentivem o intercâmbio cultural e, em especial, o de informações jornalísticas, bem como a criação de publicações regionais, espaços editoriais específicos, canais e/ou programas televisivos com a temática latina;

** Despertar junto ao empresariado nacional do setor da informação e do entretenimento o potencial econômico que a América Latina e o peso político que a integração propiciaria não só às nações e seus povos, mas também ao próprio empresariado ? fato já detectado por grupos estrangeiros que estão comprando meios na região (Disney, Prisma etc.) e que com a abertura ao capital internacional estarão logo, logo batendo às portas de nossos veículos.

Como ressaltou Beatriz Paredes, ex-presidente do Parlatino e da Câmara dos Deputados do México, há um desafio lançado e esse é o de como conseguir que a "identidade latino-americana não se dilua, não desapareça quando estamos articulados e economicamente vinculados à potência mais poderosa, ao país que é o indicativo da geração de padrões culturais que, através da modernização tecnológica, tornam-se estereótipos que circulam universalmente como valores paradigmáticos e que, no caso da nossa zona, são protótipos para as novas gerações".

Esse é desafio lançado à sociedade como um todo. A educadores, governantes, agentes culturais, empresários e jornalistas. O momento político internacional e a eficácia das novas tecnologias podem conspirar contra, mas também podem ser a mola propulsora das transformações necessárias para a efetiva construção do sentimento de latinidade entre os brasileiros. No caso específico dos meios de comunicação, a sociedade não pode esquecer que a informação é um direito do cidadão e que a mídia presta serviços públicos e, portanto, devem estar alinhados com os interesses da comunidade e não com os objetivos do grande empresariado internacional.

Cabe à sociedade exercer o controle social sobre os meios e ao Estado fazer cumprir a Constituição, que define, dentre outras finalidades, o caráter educativo e cultural da mídia.

(*) Jornalista, ex-vice presidente da Federação Latino-americana de Jornalistas (Felap), mestre em Comunicação Social pela Universidade de Brasília e doutorando em Ciências da Informação e Comunicação pela Universidade de Rennes 1 ? França. Este texto foi redigido a partir da dissertação de mestrado "O papel da mídia impressa brasileira no processo de integração latino-americana ? um estudo do comportamento editorial de grandes periódicos nacionais". E-mail <chicosantanna@hotmail.com>