REPÓRTERES SEM FRONTEIRAS
Carlos Eduardo Pestana Magalhães (*)
A hipocrisia da organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF), com sede em Paris, continua. Auto-intitulada organização internacional de defesa da liberdade de imprensa, sua ação mais contundente e contínua é a constante crítica à falta de liberdade de imprensa em Cuba e a denúncia contra a prisão de 30 jornalistas na Ilha. Tudo bem. Mérito para a RSF. No entanto, param por aí suas ações contundentes ? manifestações em frente às embaixadas de Cuba em Paris e Londres, ampla divulgação várias partes do mundo de textos e fotos contra a situação na Ilha etc. Atacar Cuba tem sido o "prato preferido" da organização, com grande estardalhaço nos países onde está presente ou tem algum tipo de repercussão. Basta acessar sua página na internet ? <http://www.rsf.fr> ? para ver a importância que as denúncias contra Cuba tem para a RSF. É aquela coisa: chutar "cachorro morto" é fácil. Difícil é provocar um bem vivo e grandão.
Enquanto isso, a censura oficiosa do governo norte-americano, mais especificamente as rígidas normas de controle da informação que as forças armadas impuseram à cobertura da invasão do Iraque, na figura emblemática dos repórteres "embutidos" (embedded), aqueles que acompanhavam o avanço das tropas ao lado dos soldados; o comportamento excessivamente patriótico que vários veículos de mídia assumiram, como CNN, Fox News e outros, transformando o jornalismo em propaganda para o governo, a manipulação grosseira das informações por parte dos veículos de imprensa, a pressão política e econômica do governo sobre a imprensa etc. repercutiram negativamente mundo afora. E qual a atitude da RSF? Nada além do formal, dos textos de denúncias no sítio. E tudo bem.
O máximo a que se chegou, até agora, de alguma coisa próxima a uma denúncia mais forte e pesada foi a matéria "Repórteres Sem Fronteiras indignada pelos simulacros de investigação do Pentágono", de 23 de setembro, publicada no sítio da organização:
"Según el Pentágono, los soldados norteamericanos que el 17 de agosto mataron en Bagdad a Mazen Dana, el camarógrafo de Reuters, actuaron ?respetando las reglas de disparar?. Reporteros sin Fronteras está indignada por la falta de seriedad y trasparencia de las investigaciones del ejército norteamericano sobre la violencia armada, de la que muchos periodistas están siendo víctimas en Irak" (no original, em espanhol).
Basta a indignação? Basta comprovar o resultado vergonhoso da investigação do Pentágono, inocentando as forças armadas nos vários assassinatos de jornalistas no Iraque? Cadê os protestos da RSF em frente às embaixadas americanas em Paris, Londres etc.?
Christiane Amanpour denuncia
O que se espera de uma entidade que se diz defensora das liberdades de imprensa é, no mínimo, que seja ética, igualitária, lutadora, imparcial, responsável socialmente, que vá fundo nas questões. A falta de liberdade, as prisões arbitrárias e injustas, a manipulação e o controle da informação não acontecem somente nos países totalitários. Há diferentes formas de se manietar a informação, controlar a divulgação, sem necessariamente haver uma ditadura. Um regime político ditatorial atua às claras ? censura, prende, tortura, mata ?, enquanto em alguns países democráticos ou pretensamente democráticos o controle vem sob forma de pressão dos governantes ? verba de publicidade e propaganda, lobby (grupo de pressão), ameaça velada ? e das próprias empresas (jornais, revistas, rádios, televisão), que utilizam os veículos para este ou aquele lado de determinada situação. Isso sem falar de julgamentos falsos para condenar jornalistas ou veículos de imprensa considerados incômodos ao status quo. Há também mortes, prisões, tortura. É só procurar que acha.
A carta enviada ao presidente Lula, em função da sua visita oficial a Cuba, é mais um lance dessa hipócrita histórica.
"Às vésperas da vossa visita a Cuba, Repórteres sem Fronteiras, organização internacional de defesa da liberdade de imprensa, deseja chamar sua atenção sobre a ausência de liberdade da imprensa nesse país. Como Vossa Excelência sabe, após a onda de repressão lançada pelo governo cubano no dia 18 de março passado, setenta e cinco dissidentes foram presos. Entre eles, vinte e seis jornalistas independentes. Estes últimos, acusados de ter levado a cabo ações ?contra a independência ou a integridade territorial do Estado?, foram condenados em processos sumários, a penas que vão até vinte e sete anos de prisão. Antes desta onda de prisões, quatro de seus colegas já tinham sido aprisionados na ilha. Com 30 detidos, Cuba transformou-se hoje na maior prisão do mundo para os jornalistas. A longa amizade que une Vossa Excelência ao presidente Castro e as afinidades ideológicas que tem com o regime cubano são notórias. Porém, nenhum democrata, de direita ou de esquerda, compreenderia que estas afinidades primassem sobre o respeito aos direitos humanos. É por isto que solicitamos a Vossa Excelência de intervir em favor da liberação dos 30 jornalistas e de encontrar-se com os membros de suas famílias, bem como com os representantes da oposição e defensores dos direitos humanos. Se Vossa Excelência não fizer nenhum gesto em seu favor, seu crédito pessoal e a imagem do Brasil se veriam gravemente afetadas perante a cena internacional."
O fim dessa carta é de uma arrogância ímpar, independentemente de qualquer posição quanto à figura do presidente do Brasil.
Então, por que a RSF não envia carta a Blair, visto que o primeiro-ministro britânico se diz tão amigo do presidente dos EUA, pedindo que ele intervenha junto ao presidente Bush para que o Pentágono responsabilize judicial e militarmente soldados e oficiais responsáveis pelo assassinato de jornalistas no Iraque, pelo míssil que atingiu as instalações da TV al-Jazira, puna os responsáveis pela manipulação e o controle das informações veiculadas pela mídia ianque antes, durante e após a invasão do Iraque etc. etc.? Impossível de acontecer? Quem sabe…
Só para exemplificar melhor o que acontece na imprensa ianque: a jornalista americana Christiane Amanpour, correspondente de guerra da CNN, declarou o seguinte, recentemente: "Lamento dizer, mas algumas TVs ? talvez, até certo ponto, a minha estação ? foram intimidadas pelo governo e por seus soldados da Fox News [canal ultraconservador, rival da CNN, pertencente ao magnata ultraconservador Rupert Murdoch]" (…) "Instalou-se um clima de temor e autocensura sobre o trabalho informativo que realizamos" (…) "Não foram feitas perguntas suficientes sobre a guerra", disse a jornalista. Estas declarações foram dadas em entrevista num canal a cabo, CNBC. A CNN declarou que "Christiane é uma das maiores jornalistas do mundo (…), mas seus comentários não refletem a realidade de nossa cobertura". A Fox News retrucou que "é melhor ser visto como soldado de Bush do que como porta-voz da al-Qaida". A matéria completa está na Folha de S.Paulo, caderno Mundo, de 17 de setembro, no texto "Governo intimidou TVs, diz jornalista da CNN".
Bom momento
Na realidade, a RSF tem agido segundo dois pesos, duas medidas. É feroz com Cuba e é dócil com os EUA. Urge maior ação da entidade contra tudo o que foi, e continua sendo feito, pela maioria dos veículos de mídia americanos, transformando a imprensa em veículo de propaganda do governo americano.
A tão falada liberdade de imprensa nos EUA só existe quando não há confrontação com o "american way of life" e os valores patrióticos ianques, normalmente impostos pelas administrações governamentais, além daqueles historicamente aceitos pela população. Vários jornalistas americanos denunciaram a forma como a imprensa vestiu a bandeira do país, deixando de lado a credibilidade e a responsabilidade social da mídia. De paradigma de imprensa livre para o mundo democrático a mídia ianque, hoje em dia, é um dos exemplos de imprensa controlada e manipulada pelos governantes e pela elite política e econômica do país. Um exemplo a não ser seguido.
E a RSF, o que acha? Por que não aproveita o momento político atual, com o presidente Bush em baixa em seu país, e aproveita para tomar atitudes mais dignas e contundentes de defesa da liberdade de imprensa no mundo, e não só em Cuba?
(*) Jornalista