Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O imperialismo segundo Friedman

THE NEW YORK TIMES

Carlos Eduardo Pestana Magalhães (*)

O analista americano Thomas L.Friedman, que escreve no jornal The New York Times, é uma pessoa única. Suas idéias são dignas de um representante do imperialismo inglês do século 19. Seus argumentos são bem datados, apesar de escrever nos dias de hoje. Talvez, se tivesse vivido naquela época, provavelmente em Londres, teria sido um dos luminares da ideologia imperialista inglesa. Sentaria à direita dos primeiros-ministros Gladstone e Disraeli, na época vitoriana. No artigo publicado na Folha de S.Paulo, caderno Mundo, página A-12, 19 de setembro, "Nossa guerra com a França", sua posição favorável ao imperialismo, só que o norte-americano, fica bem evidente.


"Já é hora de nós, americanos, aceitarmos uma verdade: a França não é apenas nossa aliada irritante, não é apenas nossa rival ciumenta. A França está se transformando em nossa inimiga".


Não é incrível, que em pleno século 21, alguém escreva coisas assim?! Não parece um texto lorde inglês, conservador, reclamando dos franceses, no Times londrino do século 19?


"A França quer que os EUA fracassem no Iraque. A França quer que os EUA afundem num atoleiro no Iraque, na esperança maluca de que uma América enfraquecida possa abrir caminho para a França assumir seu lugar ?de direito? ? igual ao dos EUA. Ou até ?superior? no que diz respeito a moldar os destinos do mundo."


Os americanos podem moldar os destinos do mundo, claro. Então, o negócio é o seguinte. A França não pode atrapalhar o destino de salvador do mundo que os EUA se autodeterminaram. Na sua missão salvadora de depor Saddam Hussein, de construir um governo democrático no Iraque, o governo francês, assim como o de qualquer outro país civilizado, tem o dever de se unir ao esforço americano para a reconstrução da nação iraquiana, sem questionar nada, sem criar nenhum tipo de problema, apenas ajudando.


"Se fosse séria, a França usaria sua influência na União Européia para obter um grupo de 25 mil soldados europeus e um pacote de US$ 5 bilhões".


Quer dizer que mais soldados e dinheiro resolverão tudo, no Iraque ocupado e destruído pelas forças armadas ianques e inglesas?


"Mas a França nunca esteve interessada em promover a democracia no mundo árabe moderno, razão pela qual sua pose de nova protetora do governo representativo iraquiano ? após se mostrar tão satisfeita com o regime de Saddam ? é puro cinismo".


E, para justificar uma mudança na orientação do governo francês, Friedman se utiliza de um argumento um tanto quanto especial.


"A direção do mundo árabe-muçulmano, que fica bem perto da Europa, será afetada pelo que ocorrer no Iraque. Seria como se os EUA dissessem que não se importam com o que acontece no México porque estão furiosos com a Espanha".


Claro, afinal para os ianques, tudo abaixo do Rio Grande ? fronteira dos EUA com o México ? é quintal deles, oras!

Bem, todo o discurso de Friedman parte de um pressuposto imperialista, de que o mundo moderno e civilizado deve aceitar o papel de tutor e de paradigma dos EUA. Os interesses americanos não devem ser questionados porque eles representariam a melhor coisa possível para as pessoas. Ao invadir o Iraque de forma ilegal ? desrespeitando o Conselho de Segurança da ONU ?, depor Saddam, arrasar com as cidades, matar civis e militares e ocupar militar e politicamente o país, os americanos estariam amparados e desculpados por estarem implantando o regime democrático numa região do mundo atrasada e antiquada. Essa é a missão.

Atitude unilateral

Claro que a história não se repete, a não ser como farsa (Karl Marx, O 18 Brumário de Louis Bonaparte), mas parece que Friedman não se deu conta disso. Ele insiste em que "não existe autoridade iraquiana legítima e coerente que seja capaz de assumir o poder a curto prazo, e tentar forçar o surgimento de uma autoridade desse tipo poderia provocar um conflito interno perigoso e atrasar a construção das instituições democráticas no Iraque". Alguém precisa avisar ao Friedman que conflitos internos no Iraque já existem, e é exatamente por isso que a resistência iraquiana continua matando e ferindo soldados americanos que nem moscas. E depois, quem perguntou à fragmentada sociedade iraquiana da pós-invasão se eles querem essa democracia implantada "a fórceps" pelos americanos? Uma estranha democracia, em que os interesses primordiais serão dos invasores, e não da população, regras "democráticas" que garantirão a exploração da maior e única riqueza do Iraque, o petróleo, por empresas norte-americanas e aliadas. E tudo isso acontecendo no melhor estilo farsesco do imperialismo inglês do século 19 e início do 20.

Friedman, convenhamos, tem estilo. Ele procura exercer sua pretensa veia jornalística, mas sua postura está mais próxima da de um assessor direto da Casa Branca. Dá conselhos, sugestões, idéias, aponta qual a melhor direção a seguir, defende ardorosamente os interesses americanos, tudo isso sem questionar nenhuma vez o que motivou a invasão. Para ele, parece não existir a necessidade "imperial" dos EUA em dominar as fontes energéticas da região ? petróleo no Iraque e gás natural no Irã ?, em manter o controle político-militar no Oriente Médio e assim apoiar, política e militarmente, o Estado de Israel no conflito com os palestinos. Só que, mais uma vez, talvez por incompetência do governo Bush e cia., os EUA já estão com o pé no atoleiro. Bem enfiado.

E no jogo de interesses nacionais, entre os vários países que formam o bloco dominante no planeta ? EUA e União Européia ?, a atitude unilateral que ianques e ingleses tomaram ao invadir o Iraque, desrespeitando normas internacionais criadas, também, por eles mesmos, vai custar muito caro. Não serão os lamentos e as ameaças veladas de Friedman aos franceses e aos demais países contrários à invasão que influenciarão as decisões políticas a favor de Washington e de Londres. Uma coisa é certa: seja qual for a decisão tomada pelos países desenvolvidos, a população iraquiana será a maior prejudicada. Pouco ou nada conta nessa história toda. E a ONU, que tem sido instrumento político de dominação do Iraque, nestes últimos 11 anos, para EUA e Inglaterra vai continuar fazendo a mesma coisa. E os iraquianos sabem muito bem disso. Esse imbróglio vai longe, apesar de Friedman.

(*) Jornalista