Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Coelho

GUGU FORA DO AR

“Gugu se viu em uma pegadona”, copyright Folha de S. Paulo, 21/09/03

“No mundo das ?pegadinhas?, brinca-se com a credulidade do pedestre, do cidadão, do otário comum: a pessoa passa vexame, leva susto, sofre humilhação, e tudo fica por isso mesmo. Às vezes, não é um otário real. Atores são contratados para fazer o papel de transeunte e de iludido.

Em casa, o espectador se diverte de qualquer modo: sente-se aliviado da própria credulidade, de sua própria condição de otário. Rindo ou duvidando dos bate-bocas de mentira e das reportagens fajutas, o espectador leva a sério (talvez) as pílulas de emagrecimento, os cosméticos milagrosos e as ofertas do patrocinador.

Será que alguém levou a sério a entrevista com supostos membros do PCC no programa do Gugu? Dois tipos encapuzados, dizendo-se membros da organização criminosa, ameaçavam sequestrar o padre Marcelo e algumas celebridades da televisão.

Depois de tantas pegadinhas, Gugu se envolveu numa pegadona. Os ameaçados pela entrevista ofenderam-se profundamente. De apresentadores, tornaram-se vítimas, ou figurantes, numa reportagem de mau gosto comparável às que costumam fazer.

Atacaram Gugu. Inventar tudo isso apenas para ganhar ibope! Que escândalo! Isso não se faz! Que baixo nível! As críticas vieram no costumeiro tom de denúncia estertorante. Trata-se de sensacionalismo também, é claro.

Um dos apresentadores entrevistou um ?autêntico? membro do PCC, que negou o plano de sequestrar o padre Marcelo, já que ?o PCC também gosta de Deus?.

Gugu, por sua vez, disse que estava arrependido. No programa da Hebe, desculpou-se aos colegas, por quem tem respeito e amizade. Perguntou quem jamais cometeu erros. Não conseguiu chorar de arrependimento, embora as câmeras torcessem para isso.

Hebe chorou em seu lugar. E deu um conselho para Gugu: que ele não se preocupasse tanto com a audiência, com o ibope.

A farsa vem em camadas infinitas. A credulidade do espectador é sempre o pressuposto de tudo. O arrependimento de um, a indignação de outro, a ameaça daquele e o conselho desta última não são para valer. E todos sabem disso, até o espectador, que não se importa, imagino, com a veracidade de coisa nenhuma.

A reportagem verídica que vem com fundo musical, ameaças tonitruantes e indignações de araque não pretendem coisa diferente do que a reportagem forjada, apresentada com ar sério de bom moço na quermesse de domingo. Tudo se resume à guerra por audiência, e ninguém se preocupa em esconder essa motivação.

Se o cinismo geral arranja um tom de súbita autocrítica, é porque na guerra por audiência todos pareceram a ponto de se entredevorar. E talvez seja essa a única coisa verdadeira em todo o episódio. Em meio à crise no setor, parece ser aspiração básica de cada emissora a de eliminar os seus rivais, como as facções que disputam o controle de uma favela.

No submundo da TV, o sequestro faz-de-conta é símbolo de todo o festival de mentira e violência que cotidianamente é encenado sob o nome de -não sei bem- entretenimento, notícia, denúncia, diversão.”

“Medo do novo deixa TV ruim”, copyright Folha de S. Paulo, 21/09/03

“Na tarde da última terça-feira, Gugu Liberato foi entrevistado ao vivo por quatro outros apresentadores de TV. Uma única frase foi dita por todos: ?Precisamos repensar a nossa responsabilidade?. Ela apareceu com a mesma gravidade que cada um costuma impingir aos seus programas. Acusando Gugu e tirando uma casquinha de sua audiência, aproveitaram também para fazer uma profissão de fé.

Não precisavam. Nenhum deles tem nenhuma culpa do que aconteceu. Nem os bandidos ou os que gostariam de sê-lo que fazem suas bravatas no ar. Traficar, matar é o seu negócio. O da televisão está sendo transformá-los em heróis.

Por isso a programação da TV aberta e o PCC guardam tantas semelhanças. Ambos pensam no proveito imediato; não se importam com o mal que possam causar às suas vítimas; tem visões peculiares de comportamento ético; carecem de talento para ganhar a vida de forma honrada.

Deter-se no horário de acesso é um rico exercício. Suas atrações são idênticas na forma e no conteúdo. Superpõem seus vácuos criativos na busca de cinco mesquinhos pontos que, nesse contexto, configuram um bom desempenho de audiência.

É estatisticamente impossível que não existam formatos capazes de fazer a mesma pontuação nesse horário. Programas que possam propor à audiência experiências mais estimulantes de televisão e aos empresários negócios mais bem-sucedidos. Formas capazes de atrair consumidores sem levá-los para emboscadas.

Formatos assim existem. Não são implementados porque há no seu caminho a barreira do medo. Um medo pior que o de tiros. Medo das diferenças. Medo de qualquer coisa que não se pareça com o que existe à exaustiva repetição.

Essa fobia do novo se alimenta de uma estrutura de criação monolítica, que estrangula a circulação de idéias originais.

É num terreno assim que floresce não apenas a glorificação da bandidagem, mas a inversão generalizada de valores éticos, morais e artísticos. O conteúdo vulgar que está diante do espectador tem o efeito de desestimular sua capacidade de discernimento. O mito da eficiência empresarial da TV brasileira está em crise. Os que hoje desenham uma televisão ruim estão moldando também uma televisão deficitária. Na semana passada, o ministro José Dirceu voltou a negar que esteja em curso um Proex da televisão. Se estivesse, ele não poderia deixar de levar em conta a maneira pela qual estão assentados os seus modelos de produção.

Culpar um apresentador, qualquer que seja, por fraudes e glorificação de criminosos, é o mesmo que culpar mamões por nascerem em mamoeiros. Não é focando em Gugu ou nos programas sensacionalistas de fim de tarde que se vai mudar a televisão; mas sim examinando o sistema que promove a hegemonia desses valores na TV. É ele que está fraudando a boa fé do povo, insinuando a mentira de que uma televisão será tão mais bem-sucedida quanto pior. A TV é ruim simplesmente porque há o pavor generalizado que se possa fazê-la melhor.”

“Justiça mantém decisão e Gugu fica fora do ar”, copyright O Estado de S. Paulo, 22/09/03

“O SBT tentou, mas não conseguiu. A presidente do Tribunal Regional Federal da 3.? Região, desembargadora Ana Maria Pimentel, não acolheu recurso dos advogados da emissora e manteve a decisão que suspendeu a apresentação do Domingo Legal, ontem. Apesar dos rumores de que o programa seria levado ao ar de qualquer maneira, o SBT acatou a decisão da Justiça. A atração, que costuma ir ao ar entre 15h30 e 20h30, foi substituída por uma série de reprises.

O programa de Gugu Liberato foi suspenso na sexta-feira, pela juíza Leila Paiva, da 10.? Vara Cível. Os advogados da emissora recorreram, pedindo a suspensão da liminar. Ontem pela manhã, a desembargadora resolveu manter a decisão.

O advogado do SBT, Carlos Miguel Aidar, lamentou a decisão, em entrevista concedida à Rádio CBN. ?Acho que houve um ato de censura. O que se está censurando não é o programa passado, mas o programa que iria ao ar?, disse o advogado, que também é presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP). Para ele, a punição deveria ter sido outra, como, por exemplo, a aplicação de multa. A condenaçao foi por causa de uma falsa entrevista de integrantes do PCC, exibida dia 7. Se o programa fosse ao ar, o SBT teria de pagar multa de R$ 100 mil.

Para o coordenador da campanha pela ética na TV Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania, o deputado federal Orlando Fantazzini (PT-SP), não se trata de censura. ?Vejo a decisão da juíza como uma punição pelo que o programa levou ao ar anteriormente?, disse. Fantazzini defende na Câmara dos Deputados a regulamentação de regras para a TV.

Reprises – Para ocupar o espaço vago na grade de programação de ontem, o SBT tirou algumas pérolas da gaveta. No início da tarde, exibiu a premiação do Grammy Latino, apresentado no dia 3. Depois pôs no ar a reapresentação do Troféu Imprensa, mostrado em junho pela emissora, e os programas de Celso Portiolli – Curtindo Uma Viagem e Xaveco -, que costumam ir ao ar aos domingos a partir das 13 horas. A emissora desengavetou ainda um Programa do Ratinho de dois meses atrás.

Além da ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, que resultou na suspensão do programa de ontem, outros processos estão em andamento contra o SBT e Gugu. Um processo administrativo foi instaurado no Ministério das Comunicações para apuração dos fatos e poderá resultar até na cassação da concessão da emissora, além de uma advertência ou multa.

A 2.? Promotoria de Justiça do Consumidor em São Paulo também instaurou inquérito civil público sobre o episódio. A promotora do consumidor Deborah Pierre vai intimar Gugu, o diretor Maurício Nunes e o produtor Rogério Casagrande, para se explicarem em 15 dias.

As comissões de Ciência e Tecnologia e de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados pediram ao ministro das Comunicações, Miro Teixeira, uma ampla investigação e imposição de ?punição exemplar?. (Colaboraram Thélio de Magalhães e Marcelo Cardoso)”

“A vergonha de ser repórter”, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 22/09/03

“Tem muito jornalista sério por aí fingindo não ver o que Gugu Liberato, José Luís Datena, Marcelo Rezende & Cia estão fazendo com a imagem da profissão repórter. Dizem até que Elio Gaspari proibiu o porteiro de seu prédio de tocar no assunto.

O assunto – como Elio não é leitor da coluna posso nele tocar – tem origem na entrevista fajuta com um par de membros do PCC que o SBT arrumou na esquina por 500 merréis domingo desses de queda livre no ibope do programa do Gugu. Até aí tudo bem, é prática do jornalismo vespertino da TV brasileira criar circunstâncias que justifiquem a indignação histérica dos apresentadores desse tipo de programa.

A tragédia da reportagem entra no script como mera escada para o monólogo final dos âncoras do apocalipse. Datena, Rezende & Cia são pastores de cultos de reportagem. Não exorcizam bandidos, mas deixam telespectadores em transe. O que gritar mais alto contra o estado de coisas a que chegamos ganha quatro pontos de audiência.

O assunto é velho, batido. ?Às seis horas da tarde na televisão brasileira, é preciso mandar às favas o preceito jornalístico de valorizar o substantivo e soltar os bichos sobre os adjetivos?, já dizia Joaquim Ferreira dos Santos há seis meses em NoMínimo. Vale tudo contra o vale-tudo. Chamar bandido para o pau, por exemplo, rende três pontos no ibope. Parece concurso de super-heróis em Gothan City – se vivesse na Grande São Paulo, Batman seria apresentador de um Cidade Alerta desses da vida.

A guerra da audiência transcorria normalmente nos templos do mundo cão da TV brasileira até que Gugu, como diria o mestre Boni, ?fez merda?. Na tal encenação grosseira com os bandidos caricatos – ?tá ligado?? -, os mano contratados para o serviço ameaçaram de morte meia dúzia de Datenas, aí incluídos o Marcelo Rezende e o Oscar Godói. Resultado: Gugu Liberato virou a Geni do jornalismo de estética evangélica. Jogar pedra nele passou a dar 20 pontos de audiência.

Gente suficiente para mobilizar a polícia, o Ministério Público, a Assembléia Legislativa de São Paulo e, claro, o Congresso Nacional não perderia a chance de aparecer na TV anunciando que vai investigar o caso. Todas as tardes, há mais de dez dias, a ética em jornalismo passou a ser assunto de programas que não têm o menor zelo pela verdade. Pedem fogueira para Gugu e Silvio Santos.

O duelo do mal contra o mal ganhou as primeiras páginas de jornal depois que um produtor do SBT entregou o esquema de aluguel de bandido para entrevistas bombásticas. Gugu chorou na Hebe e foi chamado a depor na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados; a Petrobras retirou sua cota de patrocínio ao Domingo Legal; enfim, o circo pegou fogo.

Insaciáveis, Datena, Rezende & Cia continuam aos berros no picadeiro da indignação da própria honra, sem dar conta de que estão todos sob a lona em chamas. O assunto está quicando na mesa dos chefes de reportagem da grande imprensa: que barbaridades são cometidas diariamente na TV brasileira para iludir a audiência? Existe hoje no país um mercado informal de figurantes disponíveis para pegadinhas em praça pública, briga de marido e mulher em programa de auditório e entrevistas com bandidos encapuzados. Quem os contrata? Quanto cobram? Quem os instrui? Que tipo de miserável faz mais sucesso na TV?

Ou, vai ver, tudo isso vai acabar fazendo com que o Gugu volte bater no Faustão nas tardes de domingo – e vida que segue!”