CASO ELLWANGER
“Julgamento histórico, festa política”, copyright Jornal do Brasil, 20/09/03
“Promotores de eventos não poderiam inventar comemoração mais apropriada e tocante para os 175 anos do Supremo Tribunal Federal: um dia antes da efeméride, nossa corte maior encerrou um julgamento que a maioria dos seus membros considerou o mais importante das últimas décadas: negou habeas-corpus ao editor nazista Siegfried Ellwanger.
Horas depois de marcar sua ausência física na solenidade, o chefe da nação pronunciou-se indiretamente através de inédita mensagem gratulatória: ?O STF foi sábio, seja pelo modo enfático com que condenou o racismo, seja pela contribuição firme que deu para criar novas referências no caminho de uma verdadeira igualdade racial no Brasil?.
A nota oficial da Presidência da República é assinada pela ministra Matilde Ribeiro, secretária especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que, de forma discreta, porém inequívoca, distancia o governo Lula da Silva dos efeitos danosos do voto do seu indicado para o STF, o ministro Carlos Ayres de Britto (um dos três que endossaram as alegações do editor nazista).
Com elegância e espírito público contornou-se uma crise pessoal entre o chefe do Executivo e o do Judiciário e ofereceu-se à sociedade brasileira magnífica lição republicana. Ellwanger, até agora, era o nome de uma tentativa para desenterrar um fóssil totalitário. Doravante servirá para designar a união tácita dos poderes para eliminar qualquer ameaça à democracia e ao Estado de Direito.
Para nós, a Segunda Guerra Mundial está encerrada. O Brasil alinhou-se formalmente na luta contra o nazi-fascismo em agosto de 1942. Agora, 51 anos depois, o país escorraçou definitivamente os seus fantasmas. Ao justificar meses antes o rompimento das relações do Brasil com os países do Eixo, o então chanceler Oswaldo Aranha foi incisivo: ?…nosso povo evoluiu na paz e formou sua mentalidade no acolhimento fraternal de todos os homens de boa vontade…?. O presidente do STF, Maurício Corrêa, regente do coro de sábios, alinhou-se a esse compromisso ao considerar que o caso transcende a mera condenação de um fanático, disseminador de ódios, razão pela qual tanto empenhou-se em resgatar nossa vocação liberal.
A conclusão satisfatória pelo expressivo placar de 8 a 3 não deve nos impedir de avaliar a última sessão, que, além dos votos dos ministro Marco Aurélio de Mello e Sepúlveda Pertence, teve uma novidade: puxados pelo ministro Celso de Mello, quatro ministros reiteraram os seus votos dando ao julgamento a exata dimensão conceitual que requeria.
No seu voto de 72 páginas a favor da concessão do habeas-corpus, o ministro Marco Aurélio insistiu em dois pontos. Um deles: a defesa de uma ideologia não é crime, a publicação de livros anti-semitas ?não representa perigo iminente de extermínio do povo judeu?. Engana-se o meritíssimo, pois o Mein Kampf, de Adolf Hitler, deflagrou um dos maiores massacres da história da humanidade. No Brasil, um dos livros de Ellwanger já teve impressas 39 edições, distribuídas gratuitamente no interior de São Paulo a grupos da classe média de direita.
Outro ponto em que, data vênia, enganou-se o ex-presidente da Casa: a condenação implícita de Ellwanger não atenta contra a liberdade de expressão. Tanto assim que seus advogados, espertamente, deixaram a questão de lado, fixando-se no aspecto bizantino: se anti-semitismo é racismo. Para Marco Aurélio não é. Evidentemente nada sabe sobre a legislação racial de Nuremberg e, muito menos, sobre a reunião de Wannsee que decidiu pela Solução Final para os que tivessem sangue da ?raça inferior?. Ignora também que nos anos 30 nossa direita xenófoba pretendia impedir a imigração de judeus e asiáticos (isto é, japoneses) porque poderiam adulterar ?os caracteres morfológicos da raça brasileira?.
Sepúlveda Pertence, também ex-presidente da Casa, conciliou sua reconhecida devoção às causas nobres com a maturidade política, e assim escapou das armadilhas tecnicistas que tantas vezes iludem questões fulcrais. Preferiu ater-se à singularidade do caso, caracterizando como racista e discriminatória a panfletagem de Ellwanger e Cia: ?A discussão me convenceu de que o livro pode ser instrumento da prática de racismo?. Ponto final.
O neonazismo está de volta, firme e forte. Em todos os quadrantes, em todas as trincheiras, ao lado de quase todas as militâncias, grassa o desrespeito à vida. Sitiados por tantos apelos à violência, encurralados pela insensatez e o ressentimento, assoberbados pelos magnos problemas relativos ao nosso futuro, recebemos da Praça dos Três Poderes um belo estímulo para o entendimento e a concórdia. Mãos à obra.”
“Holocausto judeu ou alemão?”, copyright Folha de S. Paulo, 19/09/03
“O tema em epígrafe é objeto de um livro que levou seu autor, acusado de racismo, a pleitear um habeas corpus, afinal negado pelo STF anteontem. A decisão do Supremo é paradigmática e comporta uma reflexão.
A alegação da defesa era a de que não se tratava de publicação racista, prática considerada pela Constituição crime inafiançável e imprescritível (art. 5?, XLII). Dentre outros argumentos, alegava tratar-se de obra de revisão histórica, mera interpretação de fatos ocorridos há mais de 60 anos, sob um viés ideológico de denúncia do sionismo. Está aí presente a premissa de considerar a verdade histórica como algo dependente da opinião subjetiva do intérprete, portanto a própria história como um conjunto desconectado de fatos que adquirem um sentido a partir da perspectiva de quem os descreve.
Há, nessa premissa, um dado que merece reparo. Se é inegável que o viés interpretativo é fundamental na reconstrução de fatos, isso não faz da ciência histórica um debate retórico, de mero confronto de opiniões. Como disse, certa vez, Clemenceau, ao ser indagado sobre quem deveria recair a culpa da Primeira Guerra Mundial: ?Não sei. Mas de uma coisa estou certo. Jamais se dirá que a Bélgica invadiu a Alemanha?.
Nesse sentido, a marca distintiva da verdade histórica é a verdade fatual, que pode ser interpretada, mas não pode ser negada, sob pena de falsidade deliberada. Isso, para o historiador, é um limite científico (que dele exige pesquisa fundamentada) e ético (que o impede de mentir).
A defesa do autor do livro pretendia que este tratava do revisionismo histórico, no campo de um debate intelectual, e, no tocante à questão judaica, do combate ao sionismo (mas não ao povo judeu e sua religião). Dizer, no entanto, que isso é prática de quem professa uma ideologia interpretativa, mas não de racismo, é afirmação que não se apercebe da diferença entre ciência e retórica. Para a ciência, que respeita a verdade fatual, pode-se, legitimamente, arguir imparcialidade e, por consequência, neutralidade. Já, para a retórica, conta o dito popular ?o que vale não é o fato, mas a versão do fato?. Quem assim ?pesquisa? e interpreta sujeita-se, porém, à perversão discriminatória e até a efeito racista de suas conclusões.
Nesses termos, é até possível sustentar a opinião de que o povo da Alemanha nazista, ao final da guerra, tenha sofrido intensamente uma represália desnecessária, pois já estavam impotentes. Mas não dá para ocultar, como fazem muitos revisionistas, que a propaganda nazista, até o último momento, sustentou que não haveria rendição em hipótese nenhuma.
Contudo dizer que quem sofreu o sistemático processo de dizimação humana foi o povo alemão, e não a massa de milhões de judeus, de 240 mil ciganos, de homossexuais, de deficientes físicos e mentais, de operários comunistas, de opositores religiosos, é transformar o Holocausto em versão ?legítima? da história. Mas dizer que essa versão é exercício científico, destituído da intenção de entorpecer a razão e de preconceito racial, é entrar no próprio jogo do nazismo.
Pode-se pesquisar em vão nos anais dos diários oficiais da época ordens do Führer sobre o holocausto. Em contraposição, havia leis de fachada, mas os verdadeiros decretos que continham a vontade do Führer em relação ao genocídio eram secretos. Assim, enquanto Hans Frank, governador oficial da Polônia indicado pelo partido, discutia em 1941 a possibilidade de se livrar dos judeus dos territórios sob seu comando, os SS já estavam assassinando sistematicamente os judeus que lá viviam.
Já no final da guerra, quando o ideólogo do partido Rosenberg discursava abertamente acerca do restabelecimento de alguns estados da Europa Oriental que haviam desaparecido sob o jugo nazista, Himmler e sua polícia secreta estavam tramando uma segunda fase do Holocausto para abranger toda a população eslava remanescente. O Estado tinha uma fachada para fins externos, mas o núcleo do poder era a polícia secreta.
Em se tratando de pesquisa histórica séria acerca do Holocausto, há ainda muito campo para o debate intelectual, como ocorre na República Federal da Alemanha, desde a década de 70, por exemplo, nos trabalhos de historiadores como Martin Broszat e Hans Mommsen, em que são apresentadas diferentes interpretações do holocausto. Mas isso não leva nenhum deles a negar o fato do extermínio dos judeus, ciganos, homossexuais etc.
Enfim, quem faz ciência sujeita-se ao julgamento da verdade e do erro. Mas quem faz retórica não pode eximir-se da responsabilidade por suas intenções e mesmo das consequências até criminosas de suas opiniões. De outro modo não existiria a calúnia, a injúria e a difamação. Ou, como já havia sentenciado na Alemanha sua Suprema Corte (caso Auschwitzlüge, 1994), dizer que ?no Terceiro Reich não teria havido a perseguição aos judeus é uma afirmação fática que, segundo incontáveis relatos de testemunhas oculares, confirmações em inúmeros juízos criminais e o conhecimento da ciência histórica, é comprovadamente falsa. Em si, uma afirmação com esse conteúdo não goza, portanto, da proteção à liberdade de opinião?. Em consequência, a corte alemã condena afirmações ?históricas? desse gênero, por serem uma séria infração constitucional que conecta a negação, no Terceiro Reich, do extermínio judaico por motivos racistas com uma agressão à dignidade do sobrevivente povo judeu.
Não foi outro o teor da importante decisão da Suprema Corte brasileira ao ponderar, afinal, sobre os limites da liberdade de opinião. Tercio Sampaio Ferraz Júnior, 62, advogado, é professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. Foi procurador-geral da Fazenda Nacional (governos Collor e Itamar).”
“Racismo, a doença infantil do fascismo!”, copyright Jornal do Commércio, 21/09/03
“O Movimento Estudantil teve, em sua liderança nacional, dois Betinhos: O branco e o preto. O branco era o Herbert José de Souza, mineiro, da Juventude Católica, posteriormente da Ação Popular, enquanto que o preto era o baiano, apoiado pela Juventude Comunista, que mais tarde, exatamente para que não os confundissem, passou a ser conhecido como Caó, as iniciais de seu nome – Carlos Alberto de Oliveira.
O Movimento Estudantil dos anos sessenta era bem diferente do que é hoje. É bem verdade que os estudantes universitários daquela década, não passavam de cem mil, hoje são, parece, mais de três milhões! Quase todos que atuavam naquele movimento, depois de formados, tornaram-se pessoas participativas e importantes da vida nacional. Desde ministros no Supremo, como o honrado Sepúlveda Pertence, aos membros dos órgãos da nossa justiça e vida parlamentar. Betinho trouxe o problema da fome, hoje adotado como bandeira por Lula. Caó o da discriminação racial, tendo sido um dos mais ativos deputados que construíram a nossa novíssima Constituição, de outubro de 1988.
Caó, mesmo sendo um excepcional e apaixonado Deputado Federal, jamais deixou de ser o mesmo de sempre; homem simples, jornalista brilhante de hábitos comuns e modestos. Pelo seu belo cavanhaque e seus 1,85 metros de altura, seria visto como um professor de uma Universidade inglesa, passeando pelo Rio de Janeiro, em férias… Constantemente o encontrava – e era sempre motivo de um bom papo, aos sábados, na Cobal do Humaitá, onde ambos fazíamos compras para nossas casas.
Um dia, naquelas conversas de fim-de-semana, disse-me: ?Aprovamos nesta semana, na Constituinte, o artigo que torna, inafiançável e imprescritível, os crimes de racismo. Assim meu caro amigo, a partir de agora quem tentar te ofender ou praticar o anti-semitismo, dançou! Teremos menos fascistas no Brasil. Judeu, negro, homossexual, cigano, enfim, todas as minorias, poderão juntar-se. Finalmente, o Brasil tem uma lei que nos protegerá, efetivamente?, dizia orgulhosamente sorrindo, aquele que para mim já era um descendente da Rainha de Sabá!
Curioso, assisto a TV Justiça e vejo o ministro – que foi nomeado por Lula -, Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto, lendo o seu voto sobre o ?Hábeas Corpus? impetrado a favor do editor nazista Siegfried Ellwanger, que está sendo julgado no Supremo, há 10 meses. Como bem disse Alberto Dines, em um magnífico artigo publicado no JB, ?o Supremo está julgando, não o nazista, mas, o nazismo?. E quem colocou a questão nesses termos foi o próprio ministro Carlos Britto.
Com a aposentadoria do ministro Moreira Alves, remanescente da ditadura militar e como já havia proferido o seu voto, o ministro Joaquim Barbosa, também nomeado por Lula, ficou impedido de exercê-lo, já que havia sido nomeado na vaga deixada pelo anterior.
Fiquei sabendo que entre nossos 11 ministros da mais alta Corte de Justiça do meu país, existiam, pela confusão em que se estabeleceu a discussão pelo Hábeas Corpus, simpatias por certos conceitos doutrinários, fora de moda que o editor gaúcho publicitára em diversas edições de livros. É lastimável que tenhamos no Supremo – que é o órgão da Consciência Nacional -, ministros que tenham pensamentos que nada têm a ver com a índole do nosso povo. A lei Caó veio para denunciar para a sempre e para a história os que discriminam seus semelhantes, em nosso país, seja de que tipo for.
Mandarei para todos os ministros, um DVD do filme produzido em 1985, que reproduz, de maneira irretocável a impressionante Conferência de Wansee. Foi Manfred Kolitrowsky, um grande amigo e produtor de cinema alemão, j&aaacute; morto, infelizmente, que dedicou 15 anos de sua vida na pesquisa daquela Conferência que determinou, em hora e meia de reunião, como se faria o extermínio de milhões de judeus.
O resultado final do Hábeas Corpus do julgamento que durou 10 meses, terminou esta semana, dia 17, data que ficará histórica. O resultado foi de oito a três, contra o nazismo, de maneira clara e inconfundível. Emocionei-me muito com a convicta e explosiva posição do ministro Nelson Jobim contestando a tese de Carlos Brito.
Assim, foi também, ao ver e ouvir o último voto, do décimo-primeiro magistrado, por sinal, seu decano, exarado pelo ministro Sepúlveda Pertence. As lágrimas me vieram aos olhos, quanto, além de tudo, ele pedia desculpas aos demais colegas por de ter sido o responsável de trazer à colação e, por isso também a confusão, quando tocou no tema da liberdade de expressão – que não era o caso -, pelo qual o simpático ministro Marco Aurélio, ?embarcou?, transformando-se no terceiro voto favorável ao Hábeas Corpus.
Votaram a favor o relator do recurso (já aposentado) Moreira Alves, Marco Aurélio e o recém nomeado pelo presidente Lula, Carlos Britto. Contra: Maurício Corrêa, Carlos Velloso, Celso de Mello, Ellen Gracie, Antônio Peluso, também nomeado por Lula, Gilmar Mendes e Sepúlveda Pertence.
Pertence foi daquela turma dos anos sessenta, companheiro dos dois Betinhos, que faziam política estudantil. Rejubilo-me, também, que o Supremo tenha entre seus pares, um negro, o ministro Joaquim Benedito Barbosa que, lamentavelmente, numa questão que lhe era tão próxima, não pode votar. O Brasil orgulha-se do seu tribunal maior, o Supremo. A decisão de 17 de setembro de 2003 entrará para os anais da humanidade e ecoará pelos tribunais do mundo, não tenham dúvidas.”
“Voto no STF”, in Fórum dos Leitores, copyright O Estado de S. Paulo, 17/09/03
“É, no mínimo, estranho, para dizer pouco, que o Estado, contrariando sua secular história de invejável jornalismo, tenha dado curso ao editorial intitulado Um voto em favor do racismo. Não se trata, aqui, de desfazer das informações que dão conta do Holocausto judeu na 2.? Guerra Mundial – isso, parece, é assunto definitivamente assentado na memória dos povos, embora Katyn também o fosse até que os fatos merecessem pesquisas mais detalhadas.
Mas, enfim, a estranheza referida não vai além das chinelas deste simples repórter de província. E por duas razões. A primeira, porque se torna difícil aceitar que o rolo compressor que assola nosso novo país – assim denominado pela falida intelectualidade das esquerdas – tenha já decretado que, encontrada a suposta verdade suprema, se devam proibir as pesquisas destinadas a nos oferecer a oportunidade de um passo à frente nas escavações históricas. A segunda razão de estranheza decorre do julgamento açodado que o jornal se permite fazer do voto de um ministro da mais alta Corte de Justiça da Nação, onde o processo ainda se encontra e quando a nenhuma conclusão definitiva se chegou. Convenhamos, o editorial, que parece pretender fiscalizar o voto daquele e de outros ministros, como se os censurasse previamente, lembra o comportamento da imprensa alemã justamente no período do 3.? Reich – com a honrosa exceção de Munique – e revigora os argumentos de Carl Schmitt, o principal jurista do regime de Hitler. Isto quererá dizer que estamos tentando fazer com o Supremo Tribunal Federal o que os nazistas fizeram conosco? Telmo Cardoso Costa, Porto Alegre
N. da R. – O editorial criticava o voto e o juízo nele expresso, como já fizemos em outros editoriais, a propósito de outros votos, de outros ministros, em outros processos. Não nos consta que votos de ministros proferidos em processos sejam imunes a críticas, nem que tais críticas se constituam em censura ou ameaça à Justiça e à democracia.”