Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A visita da valorosa senhora

NOTAS DE UM LEITOR

Luiz Weis

Uma inspeção do que saiu nos três principais diários do país ? Folha de S.Paulo, O Globo e Estado de S.Paulo ? sobre o tiroteio entre o governo e a cúpula do Judiciário, desencadeado por uma proposta da relatora de uma comissão de direitos humanos da ONU, chegará necessariamente a uma conclusão que de há muito deixou de ser notícia: o brasileiro precisa ler mais de um jornal se quiser se informar e formar opinião razoavelmente fundamentada sobre as questões nacionais; e ainda assim corre o risco de ficar a pé, como se verá.

A questão nacional, no caso, é a incapacidade (ou o desinteresse) das instituições responsáveis pelo cumprimento da lei em punir a violência endêmica das polícias brasileiras, como a tortura e as "execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias" que figuram no nome da comissão em que trabalha a advogada paquistanesa Asma Jahangir.

No fim de uma visita de 21 dias por seis cidades, quando foi recebida pelo presidente Lula e pelos ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, e da secretaria especial dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, a compassiva relatora, de 51 anos, que tinha chorado ao tomar contato com o inferno da Febem, em São Paulo, disse que ia sugerir às Nações Unidas uma inspetoria no Judiciário, para identificar os motivos por que não se castigam os perpetradores de atrocidades no aparelho de Estado e os seus parceiros "privados" desse submundo.

Como Lula não se opôs à sugestão, que os mencionados ministros iriam endossar, parecia que o mundo tinha vindo abaixo. "Idéia de fiscalização da ONU revolta tribunais", mancheteou o Estado, na quinta-feira (9/10), dando uma centena de linhas aos revoltados do STF, STJ e TST, e registrando apenas uma tímida observação do ministro Bastos sobre o Judiciário não ser "o dos nossos sonhos".

Nos dias seguintes, quando também entraram em cena as corporações da magistratura, e as matérias se concentraram na troca de acusações entre o governo e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Maurício Corrêa, não houve quem não se apressasse em chamar a atenção para os "melhores momentos" da conhecida rixa entre ele e Lula, desde que este falou que era preciso abrir a "caixa preta" do Judiciário e aquele disse à Veja que o presidente sofria de "deslumbramento" e o governo, de "centralismo stalinista".

Assunto importante

Já no fim de semana, Estado e Folha lembraram que Corrêa, que se aposenta em maio do ano que vem, poderá sair candidato ao governo do Distrito Federal pelo PPS. (Terá sido por isso que o presidente do partido, Roberto Freire, considerou a sugestão da relatora Asma "uma interferência internacional indevida"?)

Embora o noticiário do Estado tenha ficado mais rico e equilibrado, depois do inicial alinhamento automático com os juízes que se disseram ofendidos, foram O Globo e, principalmente, a Folha que fizeram a coisa certa diante do sal esfregado nas feridas dos direitos humanos no Brasil: a morte da segunda testemunha ouvida pela relatora da ONU sobre a ação dos esquadrões da morte no Nordeste.

Em 27/9, cinco dias depois de depor, Flávio Manoel da Silva tinha sido assassinado em Pedras de Fogo, Paraíba. Em 9/10, 19 dias depois de ser entrevistado pela advogada, foi eliminado Gérson de Jesus Bispo, em Santo Antonio de Jesus, Bahia.

No Estado, a eliminação de Gérson rendeu 88 linhas em duas materiolas de uma coluna; no Globo, 110 linhas e título em quatro colunas (além de um box sobre o caso de Flávio Manoel); na Folha, 298 linhas, distribuídas por quatro matérias, a principal delas manchete de caderno.

O Globo, de seu lado, foi o único a dar em manchete, na primeira página, a declaração do ministro da Casa Civil, José Dirceu: "Brasil tortura e viola direitos humanos". Nove em dez leitores, conforme pesquisa no Globo On Line, consideraram o assunto importante (29%) ou "muito importante" (62%).

Jornalismo declaratório

Com o amplo espaço que faz bem em dedicar a quem o compra, O Globo foi também o jornal a publicar o maior número de cartas sobre a questão, a maioria a favor da inspeção.

O Estado foi o único a sair com um editorial ("Ingerência estapafúrdia") contra a inspeção ("?a sra. Asma, realmente, extrapolou?"). O Globo, em editorialete ("Nada a temer") ao lado do noticiário, como costuma fazer, ficou a favor ("O que insulta?não é o exame externo?mas a sistemática violação dos direitos humanos?"). A Folha, apesar do título anódino "Justiça na berlinda" e dos dois dias de atraso em relação aos concorrentes, também apoiou a iniciativa ("Abrir as portas do Judiciário para a ONU não significa perda de soberania nem nada parecido").

O melhor de tudo, pelas idéias articuladas e palavras claras, foram as colunas de Dora Kramer (Estado e Jornal do Brasil), "Um saudável olhar de fora", "Os fortes brigam, os fracos morrem"; e de Merval Pereira (Globo), "Em defesa da soberania".

De Dora: "O Poder Judiciário mais uma vez se põe na contramão das demandas democráticas?interpretando atos que visam ao bem-estar coletivo como agressões individuais". De Merval: "A defesa da corporação está fazendo com que o Supremo Tribunal Federal e as diversas associações ligadas ao Judiciário confundam alhos com bugalhos."

O pior foi nenhum desses jornais, ou, salvo engano, qualquer outro, ter informado desde logo o mais importante: no que consistiria a tal da "inspeção" ? a "humilhante proposta", como protesta o texto assinado por 27 presidentes de tribunais, que inflamou o patriotismo (ou terá sido o corporativismo?) da magistratura.

Por que nenhum repórter perguntou à relatora das Nações Unidas em cima da bucha como a organização faz esse tipo de coisa? Ou cada caso é um caso? E que resultados a coisa produziu onde foi permitida? Ou essa seria a primeira vez que uma instituição nacional passaria por semelhante pente-fino?

Só na terça-feira (14/10), o Estado trouxe uma parte das respostas, graças ao seu excelente correspondente em Genebra, Jamil Chade. Na véspera, ele ligou para a relatora Asma Jahangir, que estava em Toronto, no Canadá, e apurou que o que ela tem em mente é apenas a vinda ao Brasil de outro colega, especializado em Poder Judiciário, o argentino Leandro Despuis.

A relatora disse mais, segundo o correspondente:


"Por um compromisso assumido pelo Brasil durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, todos os relatores da ONU têm acesso livre ao país, o que significa que nenhum poder nem ator político poderia impedir a visita de Despuis ou de nenhum outro funcionário internacional".


E Chade informou ainda:


"Despuis, que vive em Buenos Aires, na verdade acaba de assumir o posto, até pouco tempo comandado por Dato?Param Cumarswamy, que esteve em locais como a Itália e a Arábia Saudita. O ex-relator gerou uma intensa polêmica na própria Argentina, em 2002, ao ameaçar visitar o país para avaliar a relação entre o Poder Judiciário e o Executivo. A viagem, contudo, nunca ocorreu".


Graças a Jamil Chade, apesar da demora, pelo menos os leitores do Estadão (que na mesma terça, aliás, tascava um segundo editorial contra a relatora) receberam algo mais do que páginas e páginas de jornalismo declaratório.