DOMINGO ILEGAL
Ricardo Mello (*)
Mais uma vez vejo o franzir de testa e os olhares preocupados dos meus colegas profissionais de comunicação diante da suspensão de uma edição do programa Domingo Legal, de Gugu Liberato, depois do lamentável episódio da falsa entrevista com integrantes do PCC. Apesar de concordar com a condenação da farsa dominical do SBT, ouço e leio a mesma frase de jornalistas de pequenos jornais a grandes nomes da comunicação brasileira. O próprio editor deste Observatório, Alberto Dines, partiu para o levante contra o que considerou censura ao sagrado e constitucional direito à liberdade de expressão.
Mesmo o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, jurista dos mais conceituados, fez coro com os profissionais da mídia, embora também tenha manifestado seu descontentamento diante da infame "entrevista". Mas, afinal, o que quer dizer censura? Temos a exata noção do significado dessa palavra?
Com meio século de ditadura, o brasileiro parece mais do que tarimbado para falar sobre censura, nos seus mais cruéis detalhes. Ocorre que o contrário é que representa a verdade. De tanto ser impedido de manifestar-se, nosso povo, principalmente artistas e comunicadores, alvos maiores dos censores que batiam ponto nas redações e casas de espetáculo, acostumou-se a chamar qualquer ato impeditivo de censura.
Manchadas de sangue
É normal achar que tudo é censura depois de ter passado décadas publicando receitas de bolo na primeira página do jornal. É mais do que compreensível ver censura em toda parte quem, por décadas, foi retirado dos palcos e teve suas obras destruídas. Mais aceitável ainda é perceber essa atitude em quem, além de todos esses desagradáveis episódios, também teve de encarar a tortura, a perda de amigos e parentes desaparecidos, de quem cresceu sem pai ou mãe por causa da maldade dos militares.
Por falar nesses tempos, diversas situações de verdadeira censura me vêm à lembrança e ajudam a elucidar um mistério: Gugu foi ou não censurado?
Chico Buarque, pouco antes de sua ida para o exílio, escreveu a primorosa Fado Tropical, e teve a felicidade ainda maior de convidar o grande Rui Guerra para gravar o texto falado, um belo poema, por sinal. A música narra a tristeza de um brasileiro que se vê obrigado a deixar a pátria. Já o texto recitado por Guerra revela o lado humanista de um carrasco, de alguém que mata, tortura e ofende, obedecendo a ordens de quem, na verdade, tem as mãos manchadas com o sangue de seu povo.
O médico e seu bisturi
À época, depois de ouvir a obra pronta, a censura simplesmente destruiu para sempre uma parte importante dela. Chico Buarque relançou a música numa coleção de CDs. Fado Tropical está lá, devidamente amputada. O artista, na clara intenção de mostrar a crueldade do censor, teve o cuidado de remasterizar uma música cujo importante pedaço lhe falta. É realmente doloroso ouvir, nos dias de hoje, tão linda canção e perceber o grande pulo, como se o CD estivesse arranhado.
Isso é censura.
O mesmo Chico Buarque, com o hoje ministro Gilberto Gil, foi preso depois de desobedecer à ordem do censor para que a dupla executasse uma música de forma instrumental num grande festival. Ambos, depois de subir ao palco, repetiram, por poucos segundos antes de serem retirados do evento direto para a prisão, apenas uma palavra: cálice, cálice, cálice. Gilberto Gil até hoje não consegue cantar a música. Quando insiste na tentativa tem de parar para conter as lágrimas.
Isso é censura.
Plínio Marcos teve centenas de textos teatrais vetados. Depois de prontos, recebiam o simplista carimbo de censurado, e tinham que ir para a gaveta. Seus brilhantes e mais caros textos só voltaram a ser encenados após a redemocratização. A grande maioria deles o autor não pôde ver no palco, pois a morte não esperou.
Isso é censura. Gugu não foi censurado
O dicionário Aurélio descreve o seguinte para o verbete censura: 1. Exame crítico de obras literárias ou artísticas; crítica. Pelo que entendo, censura-se algo já existente. Nossos presos e torturados políticos haviam se manifestado, de alguma forma ou em algum suporte, contrários aos objetivos ditatoriais. Além do mais, a censura é algo definitivo, ou pelo menos pretendia ser, haja vista a intenção dos militares em permanecer eternamente no poder.
Do outro lado dessa argumentação poderíamos colocar o caso de um motorista profissional acusado de direção perigosa, infração gravíssima, cuja pena é a cassação de seu direito de dirigir. Com a acusação formal de ter colocado em risco a própria vida e a de outras pessoas, o motorista terá a carteira suspensa, pelo menos até que se comprove ou não sua culpa. E isso porque se ele realmente for culpado significa que faz de seu carro uma arma, colocando vidas em risco. Para não permitir que um possível assassino continue praticando crimes a carteira é retida. Comprovada sua inocência, o homem recebe novamente a licença para dirigir, afinal, está provado que ele não representa ameaça à sociedade.
O mesmo se aplica a um médico em processo de investigação por suposto erro médico. Por precaução, é impedido de continuar clinicando, e só voltará ao trabalho depois de provada sua capacidade profissional para manusear o bisturi sem causar a morte de pacientes.
Gota d?água
Esse é o caso de Gugu Liberato. Seu programa dominical nada mais é do que o carro do motorista ou o bisturi do médico. É seu instrumento de trabalho. Se o apresentador é suspeito de utilizar seu programa para cometer um crime enxerga-se lógica no impedimento da utilização desse instrumento, pelo qual um novo delito pode vir à tona. Além do mais, o programa Domingo Legal teve apenas uma edição suspensa. Mesmo que o pedido da promotoria pública fosse integralmente aceito, apenas quatro edições seriam impedidas de ir ao ar. A volta estaria garantida, como, aliás, aconteceu, depois do período da punição. Outro argumento: o conteúdo do programa suspenso não foi avaliado pelos supostos censores. Se quiser, Gugu poderá apresentar, no próximo ou em qualquer domingo, o roteiro que estava programado para ir ao ar em 21/9.
Isso não é censura. É punição.
Todos têm o direito de expressar livremente seus pensamentos e opiniões. Liberato poderia dar entrevistas diárias a quem quisesse, dizendo o que bem entendesse, e isso em nenhum momento foi ameaçado. Falar o que se quer é direito inalienável de qualquer cidadão, assim como é inegável responder pelos danos eventualmente causados no exercício desse direito. Mas entre isso e ter permissão para continuar causando danos à sociedade existe uma quilométrica distância.
Gugu usou seu programa para prejudicar a nação e cometeu um crime. Como o médico negligente que mata seu paciente e o motorista imprudente que atropela uma pessoa, deve, sim, ser impedido de continuar exercendo a comunicação como profissão. Quanto à punição imposta a ele e ao SBT, só um reparo a fazer: Gugu, a produção e o departamento de jornalismo de seu Domingo Legal só deveriam ter permissão para voltar ao ar depois de apuradas as responsabilidades, punidos os culpados e liberados os inocentes por esse ato que representou a gota d?água da baixaria na televisão brasileira.
(*) Estudante de Jornalismo
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