Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa mexicana, poder e truculência

CASO EXCÉLSIOR

Wladir Dupont (*), da Cidade do México

Ao cair da tarde de 8 de julho de 1976, o diretor do então prestigioso jornalão mexicano Excélsior, Julio Scherer, acompanhado de uma centena de colaboradores fiéis e alguns correspondentes estrangeiros (o signatário incluído), descia às pressas, angustiado, as escadarias internas do velho prédio da imponente Avenida Paseo de la Reforma, 18. Nos seus ouvidos ressoava a palavra ratero (gatuno), gritada por um bando de baderneiros, muitos deles gráficos e burocratas da cooperativa da casa; outros, ferozes guaruras (capangas) saídos dos porões do governo do presidente Luís Echeverría. O poder maior da República, já bastante afetado em seu prestígio pelas bárbaras repressões aos movimentos estudantis de 1968 e de 1971, andava muito contrariado com a política editorial do jornal ? a única no país de forte e corajosa oposição ao regime.

Ali mesmo, na calçada, o grupo, um pouco mais refeito da indignidade e do vexame de uma expulsão tão violenta e arbitrária de seu local de trabalho, ensaiou os primeiros passos do que seria a revista semanal Proceso, em circulação quatro meses depois e que, graças a uma incansável e às vezes pesada linha investigativa e de denúncia no trato da informação, seria o ponto de partida para as grandes mudanças ocorridas desde então na imprensa mexicana. Os meios de comunicação, tradicionalmente agachados e áulicos, estavam submetidos aos desmandos e caprichos autoritários, não poucas vezes fatais, dos governos instalados pelo partido único, o PRI (Partido Revolucionário Institucional).

Ao mesmo tempo em que nascia uma imprensa mais livre e corajosa, aqui e ali explorando as crescentes brechas e rachaduras no sistema, o Excélsior, depois de oito anos sob o comando jornalístico tenaz, sério e profissional de Scherer, afundava numa vergonhosa crise de credibilidade (e econômica) que se arrasta até hoje, sem solução à vista. Os cooperativistas, divididos, não se entendem na hora em que aparece um investidor disposto a comprar o jornal, à vista.

Crise agravada pelo surgimento de um poderoso e competente concorrente, o Reforma, de enorme agressividade comercial, e a reformulação de outro jornalão tradicional, o El Universal. Os dois obviamente aproveitando a ampla liberdade de expressão no país, que permite valorizar, agora sim, o criatividade de fotógrafos, chargistas, colunistas e analistas políticos, num leque enorme de correntes ideológicas. Sobretudo, e isso é da maior importância, acabando com o excessivo respeito e temor à figura do presidente da República ? e à da primeira-dama.

Ao lado de Proceso, que Scherer dirigiu por vinte anos com a mesma valentia e competência anterior, sempre levando uma vida modesta, surgiram filhotes representativos como a revista cultural Vuelta (hoje Letras Libres), do poeta e pensador Octavio Paz; o jornal tablóide Unomásuno, de um dissidente do grupo de Scherer, Manuel Becerra Acosta; além de boas publicações como os também tablóides La Jornada, El Financiero, Milenio, La Crónica de Hoy e El Independiente. E mais outras quatro revistas semanais ? Cambio, Época, Vértigo e Milenio Semanal.

Hoje estão disponíveis nas bancas da Cidade do México 15 jornais com uma circulação diária que varia de 2 mil a 100 mil exemplares de segunda a sexta-feira; nos fins de semana, Reforma e El Universal, que são os maiores, chegam a 150 mil exemplares/dia. Ou seja, pouco se lê jornais no México:


Jornalista histórico

Afastado do bulício da profissão, Julio Scherer, hoje já passado dos 70 anos e aposentado, convertido em respeitado escritor de livros sobre problemas nacionais, sempre discreto e arredio, preferiu esperar os efeitos do tempo para dar sua versão completa dos fatos. Deixou, primeiro, que um de seus mais próximos auxiliares e amigos, o escritor e dramaturgo Vicente Leñero, contasse a história, novelada, do sórdido assalto presidencial ao Excélsior, no livro Los Periodistas. Depois, em alguns trechos de um pequeno livro de memórias da profissão ? Los Presidentes ?, Scherer relatou certas passagens do episódio, principalmente suas tensas relações com o então presidente Echeverría ? ou seja, o jornalista sozinho, indefeso e aterrado, diante do poder supremo da nação encarnado em uma única figura, por certo tenebrosa.

Finalmente, o vilão maior da história, o jornalista Regino Díaz Redondo, espanhol, cria de Scherer e autor intelectual do golpe dentro do jornal, contou há um ano, no livro La gran mentira ? el caso Excélsior, sua participação no drama. Redondo ficou à frente do jornal nos 24 anos seguintes ao golpe e, há três anos, foi expulso pelos cooperativistas acusado de corrupção, já então abandonado pelo poder de plantão, naquele momento em transição democrática. E saiu por uma porta traseira do edifício num reluzente e blindado carrão importado, rumo ao seu palacete no sul da Cidade do México.

O livro de Redondo, que lança sobre Scherer a acusação infame de "manejos impróprios dos recursos da cooperativa", foi olimpicamente ignorado pela imprensa mexicana, que reverencia Julio Scherer como "periodista histórico".


Grandeza anulada

Agora Scherer faz o relato completo do episódio Excélsior no livro Tiempo de saber ? prensa y poder en México. A ele cabe esclarecer o que e como foi a crise interna que desembocou em sua expulsão do jornal, ao lado dos colunistas e repórteres-estrela. Outro renomado jornalista e escritor, Carlos Monsiváis, apresenta, na metade final do livro, um balanço das relações entre a imprensa e o poder no México.

Que não se espere, contudo, um livro cheio de revelações escandalosas ou penosos ressentimentos acumulados ao longo de 27 anos ? pelo menos na parte redigida por Scherer. Bem de acordo com seu temperamento sóbrio, em público ao menos, ele conta sua própria história dentro do jornal ? uma carreira iniciada aos 18 anos, como contínuo de redação ? e não se lança a impropérios contra o traidor, Regino Redondo, que teria sido escolhido a dedo pelo presidente Luís Echeverría para transformar o jornal numa suja extensão propagandística da presidência da República.

Scherer adota um tom de reminiscência, elegante, até meio literário, evitando valorizar a figura do inimigo mas nem por isso deixando de dar seu recado. Repete-se aqui uma desgraça comum nas relações entre o jornalismo e o poder: "O presidente não via com bons olhos o desempenho do jornal e jogou o jogo perverso do poder em seu próprio tabuleiro: fomentar o desânimo, semear a discórdia, destruir paulatinamente…"

O que teria desatado e agravado a fúria de Echeverría, diz Scherer, foram os artigos do historiador Daniel Cosío Villegas, que pela primeira vez na história da "ditadura perfeita" (dixit Mario Vargas Llosa) destroçava o mito presidencialista no México. Echeverría, vaidoso e prepotente, urrava.

E quanto ao parceiro de Scherer no livro, Carlos Monsiváis, um dos mais lúcidos e ferinos analistas da mentalidade mexicana, seus "usos e costumes", embora reconheça a maior liberdade de imprensa hoje existente no país, no final faz um balanço menos otimista da situação, observando o desprezo olímpico do atual presidente Fox em relação à imprensa escrita, que todos os dias deita e rola sobre o casal do palácio Los Pinos, Vicente e Marta.

Desolado, Fox disse há pouco que já perdeu a batalha com a imprensa e o resultado é que seu governo destina à televisão as gordas verbas oficiais, pois o veículo é mais fácil de controlar.

"O Presidente Fox", diz Monsiváis, "considera a imprensa escrita produto de segunda mão em seus discursos e atividades. É assim, e assim tinha que ser. Fox cresceu no marketing que, como se sabe, anula toda grandeza."

(*) Jornalista e escritor brasileiro radicado no México