Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Liberdade de expressão e regulamentação profissional

No ano em que estamos comemorando 200 anos da imprensa no Brasil e 100 anos da ABI – Associação Brasileira de Imprensa, primeira organização de jornalistas no país, estamos as voltas com o julgamento da nossa regulamentação profissional (Decreto-Lei 972/69) pela mais alta corte do país, o Supremo Tribunal Federal (STF), sob a alegação de que não foi recepcionado pela Constituição Federal, aprovada em 1988 e portanto fere a liberdade de expressão.


Antes de focar nas origens dessa situação em que nos encontramos, cujo mérito deverá ser julgado neste segundo semestre de 2008, é bom voltarmos no tempo para que a história faça justiça com os jornalistas que lutaram e lutam na defesa da regulamentação profissional e da formação, como forma de acesso ao exercício do jornalismo.


Em 1908, quando da eleição da primeira diretoria da ABI, o presidente eleito, Gustavo de Lacerda, repórter, em seu pronunciamento de posse colocava como objetivo prioritário a luta por uma regulamentação profissional e uma formação específica em jornalismo. Gustavo, que não tinha o equivalente ao segundo grau de hoje, sentia a necessidade não só da formação, mas também da regulamentação, justamente para qualificar o jornalismo da época, exercido na maioria das redações por pessoas desqualificadas e com interesses pessoais, financeiros e políticos colocados acima dos princípios éticos da profissão.


Este quadro perdurou até 1938, época em que tivemos a primeira regulamentação, a necessidade de registro da profissão no Ministério do Trabalho. Em 1949, editamos o nosso primeiro código de ética. No entanto, a categoria continuou lutando pelo aperfeiçoamento da legislação que regulamentava a profissão, com as funções e a forma de acesso ás redações.


Campanha permanente


Em 1968, reformulamos o nosso código de ética e continuávamos tentando aprovar no Congresso Nacional o projeto da regulamentação. Esse impasse permaneceu até 1969, quando ocorreu o Congresso Nacional dos Jornalistas, em Teresina (PI). O então ministro do Trabalho Jarbas Passarinho esteve presente na abertura e foi bombardeado por discursos de jornalistas defendendo a regulamentação. Diante do mal-estar que se criou, o governador do Piauí, Ovídio Nunes, resolveu marcar um jantar de confraternização entre o ministro e o então presidente da Fenaj, Lucídio Castelo Branco. A manifestação do ministro continuou sendo contrária à nossa regulamentação, principalmente porque nela constava a determinação de um piso salarial único no país para os jornalistas.


Entretanto, para fazer justiça, é importante lembrar que, em 1962, o Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais realizou um seminário nacional sobre regulamentação profissional, com a presença dos principais jornalistas brasileiros. Deste seminário saiu uma comissão encabeçada pelos jornalistas mineiros Virgilio de Castro Veado (ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas-MG), Washington de Mello (ex-presidente da Fenaj), Ubirajara Resende e Didimo Paiva (ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas-MG) com tarefa de elaborar uma proposta de projeto de lei regulamentando a profissão, inclusive com a exigência do diploma para todas as funções da profissão.


Esse texto foi encaminhado ao ministro Jarbas Passarinho, que fez várias mudanças, entre elas o piso único nacional, a não exigência do diploma para fotógrafos, diagramadores e ilustradores, registro de jornalista provisionado e jornalista colaborador, obviamente sob pressão dos proprietários dos meios de comunicação.


Não contávamos com os fatos graves que se precipitariam um mês após esse encontro. O presidente Costa e Silva, doente, foi afastado do cargo e substituído por uma Junta Militar, que editou o AI-5 e fechou o Congresso Nacional. Diante desse quadro político, tudo fazia crer que nossas esperanças de ter uma regulamentação estavam sepultadas. Qual não foi a surpresa ao recebermos na Fenaj, a época sediada no Rio de Janeiro, um telegrama do ministro Jarbas Passarinho informando que a Junta Militar havia editado o decreto-lei 972/69, de 17/10/1969, regulamentando a nossa profissão, com várias mudanças em relação ao projeto original.


Portanto, o decreto-lei não foi um presente da Junta Militar para os jornalistas, mas resultado de uma luta da categoria de longos anos, desde 1939, e que acabou se concretizando num momento de exceção do país por mera coincidência conjuntural.


Em janeiro de 1979, o presidente Ernesto Geisel extingue o AI-5 e, em março, o ministro do Trabalho Arnaldo Prieto edita o decreto-lei 83.284, atualizando a regulamentação dos jornalistas. Sem levar em conta as contribuições encaminhadas pela Fenaj, redefine a exigência do diploma e acaba com o estágio de jornalismo.


Antes de chegarmos a 2001, quando então a juíza substituta da 16ª Vara Cível da Justiça Federal de São Paulo Carla Ríster concede tutela antecipada acabando com a obrigatoriedade da formação superior em Jornalismo para o exercício da profissão, atendendo iniciativa do Ministério Público Federal, através do procurador da República André de Carvalho Ramos, sob a alegação de que tal exigência fere a liberdade de expressão no país, é bom lembrar que o patronato do setor de comunicações, liderado pela Folha de S.Paulo, durante o período de 1979-2001 fez campanha permanente contra a regulamentação da profissão e a exigência da formação específica em jornalismo. E praticamente sempre foi contra, conforme relata Alberto Dines em O Papel do Jornal – Uma releitura [Editora Summus, 5ª. edição em diante (1986)], no apêndice sobre a questão do diploma (pp.147-157).


Pesquisa rigorosa


A luta dos jornalistas brasileiros na defesa de sua regulamentação profissional está completando 70 anos. Sua historicidade não pode ser desconsiderada e nem tratada como um tema que data da ditadura militar, como se tem notado nas manifestações daqueles que são contrários à sua manutenção.


Ao ler neste Observatório o artigo ‘Regulamentação deve atender ao desenvolvimento humano‘, de Maurício Tuffani, com quem fiz um debate em alto nível no Curso de Jornalismo da Universidade Federal da Universidade de Santa Catarina (UFSC), em novembro de 2004, na IV Semana do Jornalismo, em Florianópolis, sobre o Conselho Federal dos Jornalistas, senti-me instigado a fazer este debate, que é importante e saudável para o país, no momento em que o STF vai decidir sobre a regulamentação de uma profissão que tanto contribuiu e continua contribuindo com a sociedade brasileira.


Em primeiro lugar quero focar a discussão apenas na regulamentação profissional, pois misturar com o CFJ serve apenas para confundir o leitor e não contribuiria com o debate ora em questão.


Como anteriormente já demonstrei, historicamente a luta da categoria foi pela regulamentação profissional – e isto é que está em jogo neste momento no STF. Conforme a argumentação da juíza Carla Ríster, o fato de tal diploma ter sido editado por decreto-lei durante o regime militar não teria sido recepcionado pela Constituição de 1988. Ponto. Há controvérsias. Temos inúmeras leis vigentes no país, com origem no mesmo período.


Ainda sobre regulamentação, nos países europeus as regulamentações variam, mas é comum que os jornalistas sejam submetidos a provas de tempos em tempos, ou a sistemas de seleção corporativos que lembram as guildas medievais.


Outra questão importante colocada nos autos: a regulamentação profissional fere a liberdade de expressão. O argumento é estapafúrdio, pois confunde liberdade de expressão com o exercício da profissão de jornalista. É tão absurdo quanto dizer que todas as pessoas que não escrevem nos jornais, ou não aparecem no vídeo apresentando notícias em telejornais, ou não tem voz nos programas jornalísticos do rádio, têm sua liberdade de expressão cassada. Se assim fosse, a única forma de garantir a liberdade de expressão para a sociedade seria que todos os cidadãos praticassem o jornalismo, o que até poderia ser muito saudável, observados os parâmetros deontológicos da profissão, mas é francamente impossível.


E, finalmente a questão da formação. É meritória a pesquisa rigorosa realizada por Tuffani, obviamente por servir aos seus argumentos da irrazoabilidade do diploma, termo este também usado pela juíza Carla Rister no seu despacho. Também aqui recorro à história dos jornalistas, conforme demonstrado na criação da ABI, pelo seu primeiro presidente Gustavo de Lacerda que colocava como prioritário a criação de uma escola de jornalismo.


Ganha a sociedade


Desde 1947, quando da fundação da Faculdade Cásper Libero, primeiro curso de jornalismo do país, até os dias de hoje, houve um significativo avanço nos estudos e conhecimento da área. E pelo fato de a informação jornalística ser um elemento estratégico das sociedades contemporâneas é que o Programa de Qualidade de Ensino da Fenaj tem sido debatido, aperfeiçoado e apoiado pelas principais entidades da área acadêmica (como Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação; Abecom – Associação Brasileira de escolas de Comunicação; Enecos – Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação; Compós – Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação; e Fórum de Professores de Jornalismo).


Entretanto, notei que um dos argumentos mais usados tem sido o número elevado de cursos de jornalismo e a análise generalista de que são de má qualidade. Com o grande número de cursos concordo, mas tornar senso comum que os cursos em geral não são bons, discordo frontalmente. Há exceções, como os cursos de formação de outras profissões, mas nem por isto se defende que deva haver uma completa desregulamentação das profissões ou o retrocesso de que parteiras retornem em condições de igualdade com médicos, rábulas como advogados e mestre-de-obras como engenheiros. O que nos compete, enquanto cidadãos, é a cobrança e a fiscalização do Estado para que tenhamos cursos de qualidade – e isto a Fenaj tem feito obstinadamente.


É verdade que o Brasil é um dos únicos países do mundo em que a regulamentação da profissão é baseada na exigência do diploma. Mas, o que se deve questionar é se essa exigência é boa ou ruim, uma vez que as sociedades não estruturam seus corpos legais e jurídicos simplesmente copiando o que há nos outros países.


O que sabemos é que em todo o mundo tem aumentado de forma significativa o número de jornalistas que passaram por uma formação em curso superior específico. Por outro lado, os donos dos veículos no Brasil formam um dos grupos mais poderosos, corporativos e privilegiados, com inúmeras ramificações no Parlamento e uma relação incestuosa com o Estado. Essa situação não se repete nos países mais desenvolvidos, onde há legislações rigorosas colocando limites aos poderes dos donos dos meios de comunicação, particularmente dos meios eletrônicos.


Tudo isso transforma a exigência do diploma em jornalismo no Brasil na forma de garantia da liberdade de expressão para a sociedade, universalizando o acesso à profissão e impedindo que os proprietários venham a ser, também, os donos das consciências dos profissionais que trabalham nas redações.


Nos EUA, mercado altamente desenvolvido, com forte disputa pelos postos de trabalho, alia-se à tradição (foi lá que surgiram os cursos superiores de jornalismo, no início do século 20, por iniciativa de um empresário da imprensa, Joseph Pulitzer) a Universidade de Columbia, que oferecia graduação e mestrado profissionalizante, para os formados em outras áreas.


Faço a defesa da regulamentação e do diploma, de forma apaixonada, mas também racional, e não vejo demérito em defender o que acreditamos com paixão. Também não enquadro aqueles que são contra como defensores dos interesses patronais, embora muitos o sejam. O importante é que façamos o debate dos conceitos, esgrimindo teorias ou não, embora sejamos, de forma simplista, acusados de corporativos. Mas o que há de pejorativo em ser corporativo? Os demais profissionais por acaso não o são? O que há de errado em cada um defender a sua categoria profissional? A menos que seja apenas uma acusação leviana para desqualificar o debate.


O importante e essencial é que a sociedade brasileira é que ganha com este debate.


 


Bibliografia


ABRAMO, Cláudio, A Regra do Jogo, Ed. Companhia das Letras, S.Paulo, 1988


BRANCO, Lucídio Castelo, Memórias de um Repórter; Ed. AGE, Porto alegre, 2002


DINES, Alberto, O papel do Jornal; Ed. Summus editorial; S.Paulo, 1988.


FERREIRA, Catarina de Oliveira; Ed.Nova Prova – Escola Superior de Direito Municipal, Porto Alegre, 2000.


GENRO, Adelmo Filho, O segredo da pirâmide; Ed. Ortiz, Porto alegre, 1997.


MARX, Karl; Liberdade de Imprensa; Ed. LPM; Porto Alegre, 1999.


Sá, Adísia, O Jornalista Brasileiro; Ed. Fundação Demórito Rocha, 1999. 11

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Jornalista, diretor da Fenaj