HISTÓRIAS DO DIA-A-DIA
Humberto Werneck (*)
Prefácio de Allegro ? tragicomédias,
delírios, realismo, ambigüidade, 416 pp, Editora Terceiro
Nome, São Paulo, 2003; <www.terceironome.com.br>;
tel/fax (11) 5044-5540; e-mail <editora@terceironome.com.br>
Este é um desses livros que a gente lê, se delicia e, se bobear, fica achando que saberia fazer igual. Um pouco como as crônicas de Rubem Braga, ou as melhores histórias curtas de Fernando Sabino, que parecem ter sido escritas de um jato, sem sofrimento, como se o trabalho do autor tivesse se limitado a batucar no teclado do computador o texto que vai lendo num teleprompter. Mas vá tentar…
Num oceano de ficcionistas que empetecam o estilo, que vestem fardões espirituais na hora de criar, Fernando Portela é uma rara e bem-vinda exceção. É craque nisso que Hélio Pellegrino chamou de "a difícil arte de escrever fácil". Sem cair no outro extremo, no telegráfico, no desidratado, ele não enfeita o texto. Atento à recomendação de João Cabral de Melo Neto, como ele pernambucano, Portela resiste à tentação beletrista, tão brasileira, de perfumar a flor. Não precisa disso: em seus contos (como em suas reportagens, aliás, pois trata-se também de um afiado jornalista, com vários livros publicados), cada palavra é capaz de justificar presença. Nem excesso, nem escassez, tudo na medida exata. No arsenal literário de Fernando Portela deve haver um exército de cupins benignos, encarregados de roer, no texto, a madeira ruim daquilo que esteja sobrando.
Ele já parte da grande vantagem de ter o que dizer ? ao contrário de tanto escritor que, não tendo, mesmo assim diz. A leitura de duas, três histórias suas já põe à mostra uma imaginação de primeira ordem. Imaginação copiosa. Basta lembrar como foi que nasceu este livro.
Autor de contos para público juvenil, fazia tempo que Fernando Portela não servia ficção para adultos. Seu livro de estréia, Leonora premiada, é de 1974, e Querido senhor assassino, de 1979. Os leitores que se encantaram com aqueles contos já estavam conformados com um jejum que parecia ser definitivo. Dois anos atrás, porém, até ele se deu conta do absurdo que era ser tão visceralmente escritor e não escrever. E como além de imaginação não lhe falta determinação, Portela decidiu: durante alguns meses, houvesse o que houvesse, ele abriria uma brecha em suas exigentes tarefas profissionais para fazer histórias. Uma por dia. Para reforçar o compromisso, se impôs também a obrigação de abastecer, com essa produção, um site que abriu na internet, renovado a cada três dias.
Se fosse apenas um atleta do texto, que escrevesse com a obstinação de quem puxa ferros numa academia de ginástica, Fernando Portela teria cumprido a meta e suado, dia após dia, histórias imediatamente esquecíveis. Mas não. Como se trata de um escritor genuíno, o fruto dessa disciplinada malhação literária são contos que param em pé. Fascinam. Comovem. Sobretudo divertem, empapados que são pelo humor especialíssimo de Fernando Portela.
Por vezes não são histórias, no sentido de algo com princípio, meio e fim, e sim recortes de vida feitos com preciso bisturi de artista. Uma cena, um flagrante, uma situação que uma luz iluminasse por breve instante, a conta de deixar ver, antes de apagar-se. Muitos contos parecem delírios, assim como delirantes soam vários nomes de personagens. Na mão de Portela, no entanto, o que poderia ser inverossímil bizarria soa como normalidade. Matéria desentranhada da realidade, o que ele escreve é bizarro e é normal. Como em Nelson Rodrigues, inútil tentar distinguir uma coisa da outra. Inútil tentar ver fronteiras claras entre, por exemplo, malignidade e compaixão. Mais vale entregar-se, deixar-se levar pela imprevisível imaginação do autor.
Os 91 contos aqui reunidos não esgotam a produção daqueles meses de furiosa escreveção. Há muitos mais à espera de livro. Que venham logo, Fernando Portela!
(*) Jornalista