TELEVISÃO ESPANHOLA
Flavio de Mattos, de Barcelona (*)
Os espectadores da rede pública Televisão Espanhola, a TVE, assistiram na quinta-feira (16/10) ao diretor de Jornalismo da emissora, Alfredo Urdaci, ler diante das câmeras uma nota que, em última instância, significava admitir haver manipulado o noticiário sobre a greve geral ocorrida no dia 20 de junho de 2002. Ele obedecia a decisão inédita da Justiça espanhola, que deu ganho de causa à central sindical Comisiones Obreras (CCOO) no processo contra a cadeia de maior audiência em Espanha. A nota é apenas o anúncio de que TVE está condenada a emitir noticiário completo daquela greve, mas que recorrerá da sentença. Entretanto, é um sinal positivo de mudança neste país, em que se considera "normal" que o noticiário da emissora pública possa ser manipulado de acordo com os interesses do partido no poder ? neste momento o Partido Popular (PP), de José Maria Aznar.
Para demonstrar o grau de comprometimento do noticiário da emissora estatal, os sindicalistas encomendaram um estudo a uma organização especializada em análises da mídia. Os resultados, que deram sustentação à demanda, comprovavam que em 15 minutos e 35 segundos do principal noticiário da TVE na noite da greve, 84,7% estavam preenchidos por comentários e depoimentos contrários à mobilização e apenas 15,3% favoráveis. Foram 8 minutos e 40 segundos em que os representantes do governo e das organizações patronais falavam da inoportunidade e do fracasso do movimento. Nesse espaço foram apresentados ainda 21 depoimentos de transeuntes (povo fala), todos contrários à greve, e nenhum favorável. Os outros 4 minutos e 32 segundos negativos foram dedicados a responsabilizar os trabalhadores por enfrentamentos violentos em piquetes. Sobraram 2 minutos e 23 segundos para que os representantes sindicais e os políticos de oposição expressassem apoio à mobilização.
Os indícios de manipulação do noticiário identificados no estudo passam também pela divulgação de cifras maquiadas e dados omitidos. Televisão Espanhola afirmava em seu telejornal que a greve não havia sido geral, e que apenas 17% dos trabalhadores espanhóis haviam aderido ao movimento, enquanto o movimento sindical estimava em 84% o percentual de paralisação. O número de participantes da passeata convocada pelas centrais sindicais em Barcelona foi estimado por TVE em 15 mil, quando os dados dos organizadores estimavam em 300 mil. O noticiário ignorou completamente a passeata realizada na capital, Madri, como omitiu, também, a informação de que o consumo de energia elétrica naquele dia havia sido reduzido em 50% em relação a um dia normal de trabalho ? um claro indicador de redução da atividade econômica.
Atendendo ao pedido de Comisiones Obreras, a Justiça espanhola considerou que a cobertura da TVE durante a greve de 2002 não correspondeu à verdade dos fatos. Segundo os autos, o tratamento informativo dispensado por Televisão Espanhola ao movimento violou os direitos fundamentais de greve e de liberdade sindical. Passou-se já um ano e quatro meses para o reconhecimento da manipulação do noticiário. Mais alguns meses deverão se passar até que as outras instâncias de apelação sejam superadas e a emissora estatal seja obrigada a transmitir um noticiário verídico da paralisação. Contudo, apesar da distância no tempo, o reconhecimento da manipulação já representa um avanço no comportamento dos veículos públicos de comunicação em Espanha.
Situação inconcebível
Espera-se que essa decisão da Justiça tenha outras conseqüências, além do forçado mea-culpa do diretor de jornalismo de Televisão Espanhola. Líderes do principal partido de oposição, o Partido Socialista Obrero de España (PSOE), estão pedindo a demissão de Alfredo Urdaci. CCOO ainda considera que o jornalista não cumpriu a decisão como havia sido pactuada em acordo estabelecido na junta da Audiência Nacional. A nota deveria ser lida dentro do bloco destinado ao noticiário político, e foi apresentada depois, ao fim do jornal, após a despedida dos apresentadores.
O ridículo do episódio foi que Urdaci fez a leitura em velocidade de Fórmula 1, como se lidas depressa as palavras desapareceriam no ar mais rapidamente. E ainda omitiu a palavra "geral", na referência à greve, que fazia parte do texto aceito pelas duas partes. Comisiones Obreras voltará aos tribunais para pedir que este comportamento seja considerado desacato à Justiça.
"Parece normal, pero no lo es" é o título que dá à sua coluna a jornalista Solange Gallego-Díaz, publicada no jornal El País (sexta, 17/10), na qual comenta o episódio. Diz que uma parte importante dos cidadãos espanhóis considera natural que os noticiários dos meios de comunicação pública mintam e manipulem suas informações.
"Eso sucede casi exclusivamente en España y por más que nos hayamos convencido a nosotros mismos de que es algo normal, no lo es. Por algún extraño motivo, los españoles parecemos haber renunciado a exigir el respeto de las normas profesionales periodísticas a los responsables de los medios de comunicación pública".
"Que un tribunal condene al responsable de los servicios de informaciones de una televisión pública por manipular la información y vulnerar derechos fundamentales de los espectadores es una acusación realmente muy grave, que no puede archivarse sin más. Y lo inconcebible es que un periodista admita de público, obligado por los tribunales, que ha manipulado información en un medio que es propiedad del Estado (es decir de los ciudadanos) y que inmediatamente después no presente su dimisión", indigna-se a colunista. Gallego-Díaz ressalta que fatos como esse não acontecem na Alemanha, na França e muito menos na Inglaterra, países em que o sistema público de comunicação é dirigido com independência do governo.
Modelo alemão
O problema em Espanha começa pelo modelo adotado no controle dos meios públicos de comunicação. O Estado espanhol detém grande rede de veículos de comunicação, formada durante a ditadura franquista, composta pela maior agência de notícias do país, a Agência EFE, a maior cadeia de rádio, Rádio Nacional de Espanha (RNE), com cinco emissoras nacionais e distintas programações, e a maior cadeia de televisão, TVE, com duas emissoras, conhecidas como a Primeira e a Segunda. A Primeira é líder de audiência no país desde sempre, e seu telejornal é o mais visto entre todos, com média diária de 26,6%. Compete com duas outras redes privadas, Antena 3 e Telecinco, que têm menos de 20 anos de existência. A lei que permitiu a implantação de emissoras particulares de televisão nesse país é de 1988. Até essa data, a atividade era monopólio exclusivo do Estado.
Todo esse sistema estatal de comunicação está a cargo de diretores nomeados diretamente pelo gabinete da presidência de governo, que podem ser demitidos a qualquer momento, por simples decisão do Executivo. A legislação que regulamentou o funcionamento das emissoras estatais de comunicação não estabeleceu mecanismos que garantissem a independência desses organismos, como se passa com os outros países europeus. José Juan González Encinar, catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Alcalá de Henares, Madri, compara: na Inglaterra, o fato de que os diretores da BBC sejam nomeados pelo governo não impede que atuem com total independência. Ressalta que a secular cultura democrática inglesa repele qualquer possível ingerência política sobre a atuação da cadeia pública de comunicação.
"En España, ni los diferentes controles externos, incluido el control parlamentario, cuando existe, ni la forma de organización interna de las televisiones públicas, ofrecen un contrapeso suficiente, o significativo, al control que sobre las mismas ejerce el partido que ha ganado las últimas elecciones. Amparándose en las leyes, las televisiones públicas están organizadas y por consiguiente, funcionan, como televisiones gubernamentales, o de partido, es decir, inevitablemente, más como instrumentos de propaganda y manipulación de la opinión pública que como auténticos medios de información objetiva e imparcial".
As posições de González Encinar estão expostas no artigo "Modelos comparados de regulación de lo audivisual", publicado no livro El régimen jurídico del audiovisual (Marcial Pons, Madrid, 2000). Ele defende como melhor modelo a ser seguido o adotado na Alemanha, onde existe um Conselho de Rádio e Televisão integrado por uma pluralidade de representantes dos diversos sociais e culturais do país, além dos representes das forças políticas, sendo que estes, em minoria. O conselho é quem nomeia o diretor-geral da televisão pública e é ao conselho que ele tem que responder.
Parlamento enquadrado
Se nos aprofundamos na organização política do Estado espanhol podemos perceber que a subordinação política do sistema de comunicação é apenas uma ponta da concentração de poder que detém o chefe de governo espanhol. Espanha é uma monarquia com um parlamentarismo sui generis. Em nome de uma almejada estabilidade política, após 40 anos de ditadura, a primeira Constituição democrática do novo período estabeleceu um sistema em que ao partido mais votado são facilitadas determinadas condições para que detenha uma maioria absoluta no parlamento. Os eleitores votam nos partidos, que apresentam uma lista fechada de candidatos.
O presidente do governo vem a ser o parlamentar que encabeça a lista do partido mais votado. Como conseqüência desse sistema, o partido assume de uma vez o controle do Legislativo e do Executivo. Nenhuma medida proposta pelo presidente de governo é rejeitada pelo Congresso de Deputados, no qual seu partido tem sempre confortável maioria. À oposição não sobra mais do que espernear e trabalhar para ser situação na próxima legislação.
O reflexo dessa concentração de poder no sistema público de comunicação é que os veículos perdem sua condição de instituições públicas e se transformam em veículos do governo. E não vai ser o parlamento a instituição mais adequada para exercer o controle, no sentido de garantir a independência e a pluralidade de opinião, porque o próprio parlamento já está controlado pelo mesmo partido que se beneficia da ausência de outro tipo de controle.
Oposição acomodada
Há oito anos está no poder em Espanha o direitista Partido Popular (PP), que substituiu o Partido Socialista Obrero Español (PSOE), agremiação de centro-esquerda, hoje o maior partido de oposição. Comparando com o quadro partidário brasileiro, seria como se tivéssemos o PFL no poder e o PSDB na oposição, pois seus ideários correspondem completamente. Televisão Espanhola (TVE) funciona como máquina de propaganda do PP. No caso da greve de 20 de junho de 2002, o estudo encomendado por Comisiones Obreras mostra que no telejornal daquela noite foram apresentados os depoimentos de 11 políticos do PP, a começar pelo presidente de Governo, José Maria Aznar, que somaram 1.124 segundos. Todos, obviamente, contra a greve geral e minimizando seus efeitos e resultados. De outra parte, foram ouvidos quatro representes do PSOE, encabeçados pelo secretário-geral, Rodriguez Zapatero, com um total de 399 segundos de espaço na tela.
Ao representante do minoritário Izquierda Unida (IU), Gaspar Llamazares, foram dados 27 segundos. Ou seja, os integrantes do governo e do PP ocuparam 65,39% do tempo do jornal, enquanto aos representantes do PSOE lhes coube 23,21% e ao do IU, 2,85%. A desproporção é gritante.
O privilégio de que gozam os representantes do partido do governo na TVE podem ser identificados nos diversos programas da emissora. O Desayunos de Televisión Española, que corresponderia ao Bom Dia, Brasil, da TV Globo, dos cinco dias da semana, ao menos em quatro entrevista integrantes do governo ou políticos da situação, cabendo aos representantes da oposição, quando muito, um dia na semana. Apesar dessa flagrante diferença de tratamento dispensada pela televisão pública espanhola ao partido do governo e à oposição, o PSOE não costumava manifestar de público nenhuma estranheza. Mantinha-se alheio a qualquer discussão relativa a esse tema. Apenas agora, quando se iniciam as mobilizações para as eleições gerais que serão realizadas em março próximo, a oposição começa a questionar esse modelo.
Surpresa no café da manhã
O que se pode deduzir disso é que enquanto acreditava ter possibilidades de retomar o poder o PSOE agüentava firma o tranco, porque na volta ele é quem deteria as rédeas e poderia manipular os meios públicos de comunicação a seu favor, como fazia antes. O que acontece é que as pesquisas dão como mais provável que o poder permaneça sob o controle do PP por mais quatro anos. Com isso, as esperanças se desvanecem e a oposição começa a pensar em mudar as práticas reinantes.
Na mesma quinta-feira (16/10) Rodriguez Zapatero apresentou ao Congresso projeto de modificação da lei eleitoral para incluir a obrigatoriedade de realização de debate televisivo entre os candidatos à presidência de governo, com transmissão obrigatória da cadeia pública TVE. Já faz 10 anos que Espanha não assiste a debates entre candidatos a presidente de governo, porque o PP se recusa a participar. E esta lei não tem possibilidade de ser aprovada, porque o Partido Popular tem maioria absoluta no parlamento e sempre vota em bloco, sem defecções, com seu rolo compressor. (A ausência de defecções é outra questão que se insere na concentração de poderes do sistema político espanhol. O modelo de listas fechadas faz com que os deputados tenham sempre a espada de Dâmocles sobre suas cabeças, porque se votam contra a orientação do partido correm o risco de exclusão da lista das próximas eleições. Isso porque o presidente do governo é o secretário-geral do partido, e quem decide a composição final dessas listas).
No programa Desayunos de Televisión Española da sexta-feira, 17/10, a entrevistada era a porta-voz do PSOE, deputada Carme Chacón. Para surpresa do entrevistador, ela não só defendeu a proposta de realização do debate televisivo como, ainda, pediu, ao vivo, a demissão do diretor de jornalismo da rede pública, Alfredo Urdaci. O jornalista Luis Mariñas, desesperado, tentava de todas as maneiras interromper a entrevistada que, impassível, denunciava, na própria TVE, as manobras de manipulação de que a emissora era acusada. Absolutamente constrangido, Mariñas chamou a publicidade e encerrou bruscamente a entrevista.
Distorções a evitar
O caso da Televisão Espanhola é um exemplo típico de distorção em que a televisão pública termina por se tornar uma televisão governamental, e, pior, a televisão do partido do governo. A falta de instâncias e instrumentos independentes de controle da atividade de comunicação estatal faz com que a emissora pública, sustentada com recursos de impostos pagos por todos os cidadãos, seja utilizada para defender e promover a posição de um dos setores da sociedade. O sistema político espanhol facilita que o partido no poder detenha a máquina de comunicação do Estado e a utilize como veículo de propaganda de suas posições.
Televisão Espanhola tem ainda outros problemas relativos ao que seria a missão de uma televisão pública, no que se relaciona à promoção da educação e da cultura. Produz e emite os mesmos tipos de programas apelativos que fazem a audiência das emissoras privadas. E é também alvo de acusações de competição desleal, por parte das empresas privadas de televisão, em relação a seu duplo financiamento: recebe dinheiro dos cofres públicos e verbas de publicidade privada.
Mas isso é assunto para outro debate. O importante para nós é nos espelharmos nesses problemas e trabalharmos para a ampliação dos mecanismos de controle das emissoras públicas brasileiras para que não cheguemos a nos deparar com semelhantes distorções.
(*) Mestre em Comunicação Social pela Universidade de Brasília, doutorando em Jornalismo pela Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, Espanha; ex-diretor do Jornal do Senado e da Agência Senado
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