RÁDIOS COMUNITÁRIAS
Maria Eduarda Mattar (*)
[Publicado originalmente na Revista do Terceiro Setor <http://rets.rits.org.br>, em 10/10/03; intertítulos da redação do OI]
Rádio comunitária é aquela que não tem fins de lucro, é gerida coletivamente e veicula conteúdo plural, certo? Pode ser. Essa é certamente a definição convencionada em encontro na Associação Brasileira de Imprensa ? ABI, em 1995. Tal definição tem guiado o movimento de rádios comunitárias e os profissionais que atuam pela democratização da comunicação. Mas, assim como fluido foi o movimento de criação das rádios comunitárias, fluida é a consolidação delas, que se adaptam a diferentes realidades, gostos e demandas sociais. E, nesses processos de afirmação das emissoras, os caminhos que elas podem tomar sem se descaracterizarem são objeto constante de reflexão.
Há pouco mais de dez anos, o movimento de rádios comunitárias começou a ganhar força. As emissoras de caráter comunitário, como todo movimento que nasce da sociedade, tinham formas flexíveis de atuar, espontâneas, intuitivas. Tinham, entretanto, um ponto em comum: eram de e para a comunidade em que se inseriam e, sempre, tinham o viés de promover a cidadania nas suas localidades de origem. Confundiam-se com as rádios livres, bastante fortes na década de 80, mas que, ao contrário das rádios comunitárias, não se baseavam na luta pela promoção da cidadania nas comunidades, e, sim, pregavam uma anarquia no rádio, uma democratização extrema e sem limites da comunicação radiofônica.
Assim, as rádios comunitárias, por representarem um serviço às comunidades e por estarem balizadas em modos e objetivos que valorizam a cultura local, permaneceram e ganharam força. Por significarem a possibilidade de as pessoas se verem representadas, terem muitas de suas demandas ecoadas e muitas de suas carências (de informação direcionada) atendidas, as rádios comunitárias conseguiram a força da legitimidade popular. Assim, cresceram, ganharam legislação específica ? a Lei de Radiodifusão Comunitária, de n? 9612/98 (disponível para download, ao lado) ? e começaram a conquistar cada vez mais adeptos. E da mesma forma, por "roubarem" audiência e apresentarem alternativas na comunicação nas ondas do rádio, arrebanharam também inimigos (principalmente entre as rádios comerciais), críticos e repressão pesada por parte dos órgãos governamentais de regulação.
Atualmente, ainda enfrentam muita repressão e poucas conseguem ser regularizadas. De um universo de 16 mil rádios comunitárias estimadas, apenas aproximadamente 1.800 estão legais, apesar de a grande maioria já ter entrado com pedido para outorga de habilitação. Segundo Luiz Carlos Vergara, da Rede Brasil de Comunicação Cidadã (RBC), isso se dá principalmente pela "morosidade do governo, ocasionada pela burocracia tradicional de muitos dos processos governamentais".
Interesse fundamental
Nesse contexto de luta continuada pela regularização, elas próprias se repensam, encontrando novas maneiras de chegar às pessoas, de produzirem conteúdo atraente e de, também, garantirem sua permanência. Assim, o crescimento, a expansão ? normalmente tão pretendidos em qualquer empreendimento ? são pontos a serem pensados. Se acontecerem sem ponderação sobre as conseqüências nas próprias atividades da rádio, podem ser traiçoeiros: ao crescerem demais e tentarem abranger cada vez mais pessoas (o que já é restrito pela legislação em vigor), podem correr o risco de perder a característica comunitária, local.
O que, para Marcus Aurélio de Carvalho, coordenador geral da ONG União e Inclusão em Redes de Rádio (UNIRR), é relativo. "Mesmo que os conteúdos fiquem abrangentes demais ? para conseguirem atingir cada vez mais gente ?, eles não deixam de ser comunitários, se levarmos em conta o critério de comunitário como não-geográfico. As comunidades se formam em torno de interesses em comum, de aspectos que as unem", explica ele, que foi vice-presidente para América Latina e Caribe da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc). Para Marcus Aurélio, nada mais salutar que existam rádios comunitárias tanto de baixa quanto de média e alta freqüências. "Como as public radios (rádios públicas) da Inglaterra", explica, "que procuram incluir na programação todos os segmentos que a rádio atinge".
A veiculação de conteúdos pouco identificados com a comunidade é outro aspecto a se levar em conta. Recentemente, a Rádio Viva Favela, depois de estabelecer parcerias com a Rede Globo de Televisão e com a Rádio Voz da América, que pertence ao governo norte-americano, sofreu críticas quanto à legitimidade dessas parcerias em um contexto de produção radiofônica comunitária. A parceria com a Globo é para a disponibilização de alguns dos programas de maior audiência da emissora (como os humorísticos) nos formatos streaming e MP3, que podem ser baixados e transmitidos por qualquer rádio comunitária cadastrada na Rede Viva Favela. A com a Voz da América é para a veiculação de cursos de ensino de inglês. A maioria das críticas se deveu ao fato de uma rede de caráter comunitário ter se associado a uma rede que produz programas de mídia de massa, no caso da Globo, e a uma rádio estrangeira, de um governo identificado com o imperialismo, no caso da Voz da América.
Tião Santos, coordenador geral da Viva Favela, explica que muitas das críticas foram expressas sem se fazer uma real análise. "É muito comum recebermos críticas de pessoas que falam em democracia, mas pensam que democracia é só o que elas pensam. A rádio comunitária tem que acolher todas as expressões da comunidade, sejam ela quais forem. Muitos dos que criticaram omitiram que fizemos parceria também com a Rádio Enciclopédia de Cuba [uma emissora cultural cubana], por exemplo". Ele lembra ainda que nenhuma rádio associada à Rede Viva Favela é obrigada a baixar os programas e reproduzi-los; é apenas mais uma possibilidade.
Episódios como esse servem para esquentar o debate sobre o que pode e o que não pode ser feito nas rádios comunitárias, para que não percam de vista tal condição. A única coisa certa até agora é que esse julgamento é sempre subjetivo, tendo as rádios comunitárias que refletir continuamente e com cuidado sobre o seu trabalho. Se para Marcus Aurélio é importante ter em vista que comunitário não significa ser geograficamente próximo, para Luiz Carlos Vergara é essencial que as rádios comunitárias tenham uma "programação voltada para uma pauta de luta, seja no campo popular, por cidadania etc.". Ele acredita também que a pluralidade de conteúdos é outro pilar de uma rádio comunitária. Tião Santos, concorda e acrescenta que "se não for plural, não é rádio comunitária". Essa pluralidade se traduz também na forma de gestão da rádio. Ou, como afirmou Marcus Aurélio, "tanto no microfone quanto no conselho gestor". A gestão coletiva da emissora, além de ser um dos critérios acordados no encontro da ABI, em 1995, é também uma das formas de garantir que os diversos interesses e grupos de uma comunidade sejam considerados no seu planejamento.
Porém a pluralidade nos conteúdos, se exacerbada, pode comprometer a atuação da rádio? A maioria dos entrevistados acredita que, com o devido cuidado, não. Mas é preciso ter muito cuidado. Joacir Marques, comunicador de Suruacá, interior do Pará, comanda sozinho a rádio comunitária da localidade, uma rádio-poste chamada Japiú. Para ele, se sua rádio se expandisse, seria ótimo. Porém sempre com a atenção para veicular conteúdos para a comunidade. "Nós veiculamos tudo o que for para a comunidade, tudo aquilo com que ela se identifica. E a participação das pessoas é fundamental. Com freqüência alguém me pede para abordar algum assunto. O importante é colocar as coisas diárias que acontecem na comunidade", diz ele, também conhecido como Repórter JM, em função de sua atuação na rádio.
Interesses e gostos
Além da preocupação com uma pauta de luta por cidadania, com a pluralidade e com o cuidado nos conteúdos, completam a receita para que uma rádio comunitária continue podendo ostentar este título a qualidade da programação e, obviamente, que ela dialogue com a comunidade, que expresse e tenha uma relação de interatividade com o público. Com relação à qualidade, o Repórter JM endossa com a propriedade de quem aprendeu fazendo no interior paraense: "Tem que ter criatividade e qualidade para abordar os assuntos na rádio". Já quanto à interação com o público, é condição sine qua non. Aliás, está na base do fato de ela ser comunitária. E esse "atendimento" ao público, à comunidade, deve ser exercitado com muito cuidado, com sensibilidade, para não impor ao público o que se acha que ele deve ouvir, mas com a mesma sensibilidade para saber identificar e veicular aquilo que pode auxiliar as pessoas a exercerem melhor sua cidadania.
Tião, com a experiência de quem milita na área há anos ? sendo membro, atualmente, também da Federação das Associações de Rádio Comunitária (FARC) e da RBC ? enumera uma série de aspectos que as rádios comunitárias devem ter: "poder de aglutinação das forças sociais, resgate da cultura local, geração de emprego e renda, promoção do desenvolvimento local etc." Porém ressalta que, se as emissoras das comunidades não souberem ouvir e dar "voz às pessoas que não têm espaço na grande mídia", não estarão cumprindo sua função. "Elas têm que ser capazes de incluir os excluídos da grande mídia", diz. Isso seria dialogar com a comunidade e escutar o que ela demanda. "Não podemos só veicular aquilo que achamos que é bom e que as comunidades precisariam ouvir para se desenvolverem localmente. Precisamos veicular isso, sim, mas também aquilo que elas demandam ouvir".
Marcus Aurélio concorda e traduz isto em uma palavra: equilíbrio. Relembrando o que defendia o ex-coordenador da Amarc para a América Latina e Caribe (cargo que ocupou durante dez anos) Jose Ignácio Vigil, "uma rádio comunitária é como uma ave ou um avião, que, para voarem, precisam de duas asas, de dois lados". Ele usa este exemplo para defender que é preciso tanto veicular o que está no gosto popular quanto aquilo que acredita-se que pode promover o desenvolvimento e o exercício da cidadania das pessoas da comunidade. Em outras palavras, é preciso tocar tanto as músicas que estão fazendo sucesso, como aquelas com letras de luta e militância. "Precisamos equilibrar os interesses populares e os gostos populares", define. Ele acredita que dar esse tipo de opção para as pessoas é uma das formas de fortalecer as comunidades: "Quando não se aposta na inteligência das pessoas, elas não tomam gosto pela cidadania", conclui.
(*) Da redação da RETS ? Revista do Terceiro Setor