AVALIAÇÃO DE CURSOS
Victor Gentilli
? É, não dá para perguntar a um grupo de corintianos qual o melhor time do país!
Nenhum jornal registrou a frase infeliz do professor Dilvo Ristoff, diretor do Departamento de Avaliação e Estatísticas do Ensino Superior, a um grupo de cerca de 200 professores, todos especialistas e integrantes (ainda com mandato) das comissões de avaliação de cursos. O Inep convidou-os (já que co-responsáveis pelo Exame Nacional de Cursos, conhecido como Provão, e pela Avaliação das Condições de Ensino) para apresentar o novo Sinaes (Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior).
Se a percepção de desaprovação das novas propostas foi grande (maioria absoluta), muito maior foi o desconforto da totalidade dos especialistas em avaliação do MEC em só serem chamados agora, a uma semana da entrega do documento ao ministro. Não foram ouvidos; não foram consultados; foram solenemente ignorados. O governo montou uma comissão para preparar novo sistema de avaliação do ensino superior, coordenado pelo professor José Dias Sobrinho, da Unicamp. Essa comissão só entregou seu trabalho no mês passado. Fez diversas audiências públicas, mas em nenhuma delas os especialistas do MEC foram chamados para apresentar suas experiências, suas opiniões ou, pelo menos, o registro da memória de um grupo que trabalhou com avaliação do ensino superior por até seis anos consecutivos.
Nesta reunião de apresentação da proposta o desconforto ficou visível e ostensivo, levando o diretor do Daes a proferir a frase infeliz, que recebeu pronta resposta e veemente repúdio pela evidente descortesia, para dizer o mínimo.
A frase implicava, como o próprio professor Dilvo Ristoff afirmara outras vezes no mesmo dia, uma visão essencialmente política do novo governo sobre as questões de educação e avaliação da educação. Pois o que mais incomodou os especialistas foi isso: serem confundidos como profissionais vinculados ao governo anterior. Muitos deles, talvez a maioria, tinham muitas críticas ao Provão. Mas se aquele era o instrumento de avaliação que se tinha à época contribuir para o processo era um imperativo. Os professores compõem 26 comissões, responsáveis por diferentes cursos avaliados, mais de 200 professores universitários que se dispunham, sem nenhuma remuneração, a ajudar a equipe do Inep a formular as políticas de avaliação. Alguns trabalhavam desde 1996. A Comissão de Jornalismo foi criada em 1997 e, não obstante as diversas mudanças em sua composição, mantinham vários integrantes desde o início. Não havia qualquer vinculação com o governo. O que se percebia era que os professores exerciam funções ad hoc de Estado.
Nesta reunião da semana passada, a sensação foi de que estavam sendo chamados para legitimar um trabalho no qual não tiveram participação. Claro que recusaram, de forma enfática e incisiva. Diante da recusa, o professor Ristoff proferiu a frase infeliz.
Mas os problemas são diversos:
1) O novo governo fala em transparência e participação, mas em 2003, pela primeira vez nos últimos anos, os coordenadores de cursos não foram chamados para um seminário de avaliação de cursos, atividade anual regular de todos os cursos submetidos ao Provão. Para os que se preocupam, especificamente, com o ensino de Jornalismo, não custa recordar que foi num desses seminários que se conseguiu a audiência com o então ministro Paulo Renato Souza que veio a resultar numa retomada de uma velha licitação de 1996 que permitiu que neste ano de 2003 praticamente todos os cursos recebessem bela bolada em equipamentos de última geração.
2) O governo apresentou o Sinaes e manifestou claramente seu empenho em implantá-lo. Até aí, nenhum problema: governo novo, é claro, novos programas de governo. O problema é que o Provão foi aprovado como lei pelo Congresso Nacional e está em pleno vigor. As comissões, este ano, deixaram de cumprir várias etapas e vão encerrar seu mandato em 31 de outubro sem sequer prestar contas em relatório de atividades. Claro, enquanto o Sinaes não for aprovado não estão revogadas as disposições em contrário. De forma que o Provão continua existindo e precisa ser realizado. Caminhamos não para um vazio legal, mas para um governo que se move para aprovar uma lei deixando de cumprir a lei atualmente em vigor. Não se entra, aqui, no mérito do que isso significa em termos de dúvidas para as instituições de ensino, das quais o cumprimento da lei é sempre exigido.
3) O projeto do novo Sinaes ainda não foi sequer aprovado pelo ministro Cristovam Buarque. Somente depois de avalizado pelo ministro é que segue para a Casa Civil, que encaminha (no formato de um projeto de lei) ao Congresso Nacional. Os dirigentes do MEC (SESu e Inep) confiam que já em 2004 o Sinaes deverá ser implantado. Parece que eles desconhecem os trâmites e o tempo necessário para aprovação de um projeto de lei. Para recordar, vale lembrar que o ministro Paulo Renato apresentou primeiro a proposta de Provão como medida provisória, depois como projeto de lei. O deputado Lindberg Farias (PT-RJ), ex-presidente da UNE, usou o recurso regimental de obstrução da pauta, na época, e conseguiu atrasar a tramitação até conseguir que a nota do aluno não constasse do histórico escolar, como proposto.
A proposta do Sinaes
Se os jornais estivessem mesmo preocupados em oferecer informação a seus leitores teriam mostrado os temas mais polêmicos do Sinaes. Alguns destes problemas foram apresentados sucintamente nesta reunião dos especialistas com os dirigentes do MEC, mas em outras ocasiões, como na última reunião do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub), foram analisados detidamente.
1) Se a administração Fernando Henrique optou por priorizar a avaliação por cursos, a administração Lula prioriza a avaliação institucional. E mesmo as avaliações mais específicas serão feitas por área, e não por curso. O próprio representante do MEC lembrou que a OCDE tem um critério de área, a Capes, outro, e demais organismos critérios diferentes. Como o novo critério não foi divulgado, não se descarta nem mesmo a possibilidade de que seja criado um quinto critério de divisão por áreas. O fato é que cabe ao Estado (e não exatamente ao governo) verificar, regular e avaliar tanto instituições quanto cursos. Essas mudanças pendulares só criam maiores dificuldades a todos. Não se trata de avaliar cursos e deixar em segundo plano a avaliação institucional, nem de realizar prioritariamente avaliações institucionais e abandonar a avaliação por cursos. É preciso, até para efetivo cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, realizar as duas coisas.
2) O novo sistema cuida apenas de reconhecimento, renovação de reconhecimento de cursos e de credenciamento e recredenciamento de instituições. O que aqueles que faziam oposição à administração Paulo Renato sempre criticaram, cunhando a expressão “abertura indiscriminada de cursos”, continua como dantes, ou seja, no fim de 2001 as mudanças realizadas pelo governo Fernando Henrique tornaram tudo muito mais fácil para as novas autorizações de cursos. Agora, sem Provão e neste vácuo legal, o laissez-faire na permissividade para autorização de novos cursos consagra-se definitivamente.
A situação é verdadeiramente curiosa, porque mesmo onde o Sinaes atua amplia-se o liberalismo, embora no discurso oficial e nas propostas legais vigore um estatismo e um governismo exagerados.
Onde o liberalismo? Primeiro, no processo de avaliação institucional. Recuperando antigas idéias do velho Plano de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras (Paiub), de 1993, tudo começa com uma auto-avaliação. Em 1993, com um sistema que se baseava na adesão voluntária especialmente de universidades públicas, a auto-avaliação pode até ser contestada, mas não deixa de fazer sentido. Em 2003, uma auto-avaliação como primeiro passo para uma avaliação institucional não faz o menor sentido. A instituição criada no ano passado e que funciona ali na esquina do bairro vai se auto-avaliar? O senhor Di Gênio vai auto-avaliar sua Unip? O senhor Ronald Levinsohn vai auto-avaliar sua UniverCidade?
Não parece à toa que desta vez eles não estejam reclamando. Também não apóiam, para não dar na vista, mas quem desconhece o velho ditado que afirma que quem cala consente?
E onde estariam o governismo e o estatismo? No documento do Sinaes (acessível em arquivo .pdf no endereço do Inep <www.inep.gov.br>) há trechos extremamente preocupantes.
Na página 84, no item “Educação é um direito social e um dever do Estado”, é dito claramente que “este princípio é o fundamento da responsabilidade social das instituições educativas. As IES, mediante o poder de regulação e de direção política do Estado, têm a responsabilidade de um mandato público para proporcionar aos indivíduos um direito social. Dado seu caráter social, uma instituição educativa deve prestar contas à sociedade, mediada pelo Estado, do cumprimento de suas responsabilidades (…)”.
O controle estatal no processo aparece com uma nitidez impressionante. Mas o que, mesmo, quer dizer a expressão “mediada pelo Estado? O parágrafo seguinte é mais esclarecedor ainda:
“As instituições de educação superior devem solidariamente produzir os meios para o desenvolvimento sustentado do País e a formação dos cidadãos de uma dada sociedade, de acordo com as pautas valorativas hegemônicas nas relações de forças sociais e políticas de um determinado momento histórico.”
A interpretação corrente deste trecho entende que “vale a opinião das maiorias, desrespeitadas as minorias”. Ou seria possível alguma outra interpretação?
Mas a situação se agrava e o governismo se evidencia quando se refere ao controle geral dos processos de avaliação. O documento faz breves referências ao Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão que substitui o antigo Conselho Federal de Educação. Ninguém desconhece que é neste órgão que se encontram os lobbies e os representantes dos segmentos diversos interessados na educação.
Pelo documento do Sinaes, o CNE continua existindo, mas é criado um Conaes (Conselho Nacional de Avaliação da Educação Superior). Este conselho teria, entre suas atribuições, como descrito no item 3 do documento (pagina 98), “oferecer subsídios ao MEC para a formulação e execução de políticas de educação superior de médio e longo prazos”. Ora, no mínimo, dois órgãos com as mesmas atribuições.
E como seria montado este Conaes? Ele teria 12 integrantes: quatro seriam representantes, respectivamente, da SESu, do Inep, da Capes e da Semtec. Todos os 12 seriam nomeados pelo presidente da República, por indicação do ministro da Educação. É possível imaginar-se algo mais governista?
O ministro da Educação aprovaria isso? A Casa Civil do governo aprovaria isso? O Congresso Nacional aprovaria isso?
Enquanto não temos as respostas, as equipes da SESu e do Inep vão seguindo em direção a sua implementação, ignorando outras possibilidades. Enquanto isso, nem o governo cumpre a lei atualmente em vigor. E o laissez-faire continua.