Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um cronista do tempo

CENAS DE RUA

Sebastião Jorge (*)

O tempo passa sem nos darmos conta. Ninguém o vê. Ele nos atinge devagar e silencioso. Não é exagero defini-lo como mera abstração. A filosofia tem tentado decifrar o enigma, sem sucesso.

O que me fascina no tempo é o seu mistério. Implacável ninguém o segura, embora alguns se iludam poder dominá-lo. Como?

Por essa lógica o tempo é inalcançável. Tolice querer compartilhar com ele os segredos que o envolve. Há um modo, no entanto, de dominá-lo…

Resgatando certos momentos da vida, dando a possibilidade de tornar as lembranças presentes. Nada de eureka. Como não podemos desafiá-lo, sejamos apenas o seu cronista, registrando as dores e os prazeres, risos e desesperos, os sofrimentos e as esperanças, as aspirações e as frustrações, o esperar e o não receber, do mundo.

É esse papel na qualidade de jornalista que ao longo da vida pratiquei com disciplina. Na função de repórter zelei pela verdade na exploração da notícia. Jornalismo e história são coisas diferentes. Terminam, porém, se identificando quando a pesquisa busca nas folhas amarelecidas dos jornais, dados e informações à construção da própria história. Nesse aspecto a contribuição é inestimável.

Escrevendo reportagens, artigos e crônicas ao longo de décadas, percebi, que muitos daqueles textos, contém alguma coisa de útil, pelo registro de uma época diferente, e o evoluir dos costumes.

São Luís não é mais a mesma dos anos 50 e muito menos do começo dos anos 60, do último século. As cidades de um modo geral são assim. Tudo muda e muita muito. A Rua Grande (a nossa principal rua), um exemplo apenas, era um luxo, pelo requinte de um comércio forte e seletivo. Caminhava-se sem atropelar ninguém e à noite, as vitrines coloridas e cheias de novidades, substituíam o horário da Televisão. Hoje se transformou num caldeirão de secos e molhados.

As esquinas ocupadas por camelôs, e o número de lojas populares, cheias de artigos para consumo de massa, mostram o inverso do que foi aquela artéria. O comércio melhorado, que ali funcionava, não resistiu a tentação: do luxo virou um modelo acabado de popularidade.

Sei que as crônicas, de um modo geral, publicadas nos periódicos, num dia, no outro, se transformam em pacote de resto de comida ou coisa pior, na embalagem da limpeza de um canil. Antonio Candido acreditava que "o que quer salvar-se acaba por perder-se; e o que não teme perder acaba por se salvar".

Contrariando o ensaísta não deixei que os meus escritos se perdessem no tempo, os resgatei, e acabaram ressurgindo no livro que lancei há poucos dias, Cenas de rua. O evento fez parte das comemorações dos 37 anos de fundação da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

É um livro de crônicas, as quais podem ser chamados também de artigos, ou como definiu Saramago, o que quiserem que seja. Nesses escritos deixei correr solto a ironia e o humor, para colorir a crítica sobre temas sobre os quais discordei. Uma coisa é certa: não perdi a suavidade com a paisagem e a beleza que ainda existe em São Luís.

Procurei assim, penetrar na alma da cidade, em muitos dessas crônicas, com um olhar severo e prazeroso.

(*) Jornalista, professor universitário e advogado; e-mail <sbjorge@uol.com.br>