BRASIL NA 1? GUERRA
A imprensa brasileira e a Primeira Guerra Mundial, de Sidney Garambone, Mauad Editora, Rio de Janeiro, 2003; e-mail: <primeiraguerra@uol.com.br>
[do release da editora]
O Brasil foi à Primeira Guerra? Como os jornais cobriram o conflito? Numa época em que se discutem as relações, promíscuas ou não, submissas ou não, entre mídia e poder, um mergulho num passado ímpar é convite à reflexão. Não havia nem rádio, internet ou TV. Em 1914, a opinião pública era moldada pelos jornais. E só. Quase 90 anos depois, os dois conflitos no Iraque mostraram que o jornalismo de guerra mudou. Ou não?
O jornalista Sidney Garambone, mestre em Relações Internacionais pela PUC-RJ, espanou a poeira que cobria os arquivos dos jornais do começo do século passado e pesquisou como eles se comportaram diante de um dos fatos mais importantes da história da humanidade.
O resultado é A imprensa brasileira e a primeira guerra mundial, lançado pela Mauad Editora. Material atraente para jornalistas, historiadores e estudantes. O livro atrai um público muito maior do que este por causa da lista de curiosidades que cercam o assunto. Pouco se fala de Primeira Guerra, quase nada se fala sobre Brasil na Primeira Guerra e é raríssimo encontrar trabalhos sobre a imprensa brasileira na Primeira Guerra.
Com passagens pelo Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, IstoÉ e atualmente editor-chefe do Globo Esporte, da Rede Globo, Garambone traça paralelos inéditos e acende a lanterna sobre um tema esquecido e fascinante, capaz de explicar, por exemplo, por que tanta mágoa da atual diplomacia americana com a falta de apoio dos franceses. Em 1917, por exemplo, numa ofensiva contra os alemães, perto de Nancy, foram usados 416 mil soldados dos Estados Unidos. Sete mil morreram. Você sabia?
BRASIL NA 1? GUERRA
Ana Paula Padrão (*)
Apresentação de A imprensa brasileira e a Primeira Guerra Mundial, de Sidney Garambone, Mauad Editora, Rio de Janeiro, 2003; título e intertítulo da redação do OI
"Os sérvios não gostam de nós". A frase do nosso guia na fronteira da Macedônia com Kosovo era uma tentativa de explicar por que havíamos sido expulsos, a bala, quando tentávamos alcançar a primeira cidade albanesa ao sul da província.
Em 1999, durante a propalada limpeza étnica no território kosovar, promovida pelo ditador Slobodan Milosevic, as imagens de legiões de albaneses miseráveis e aterrorizados povoavam a mídia mundial, alimentada pelas agências de notícias dos países membros da OTAN. Os desterrados se multiplicavam nos campos de refugiados da Macedônia, e seu sofrimento, de alguma forma, legitimava os ataques aliados à Iugoslávia.
Mas a agonia das famílias sérvias durante a guerra deu-se longe das câmeras de tv. Pouca gente viu.
Na nossa tentativa de cruzar a fronteira do noticiário sofremos dezenas de reveses na batalha diplomática por um visto que nos permitisse filmar em cidades como a capital iugoslava, Belgrado. Ultrapassar a fronteira física que dividia os campos de refugiados da Macedônia da guerra real, no território kosovar, também parecia impossível. Seguimos a pé uma das trilhas nas montanhas, protegidos pelas árvores, até alcançar um vale ? todo ele um campo minado onde incontáveis albaneses em fuga perderam a vida. As marcas das explosões estavam lá, e podíamos ver, também, ao longe, uma cidade albanesa abandonada e a movimentação de alguns soldados sérvios. Protegido pela distância, nosso cinegrafista tentou filmá-los. Foi quando ouvimos tiros ? o sinal concreto de que não éramos nada bem-vindos. Naquele mesmo dia, horas mais tarde, uma equipe da agência de notícias britânica Sky foi detida pelas forças sérvias na região e perdeu todo o equipamento de filmagem. O que só não aconteceu conosco porque corremos. Corremos muito. Nosso guia, arfando, comentou que os sérvios não gostavam de nós. Nós quem? Nós, os jornalistas.
Na guerra contra a Iugoslávia ou mais tarde, no conflito entre os Talibãs e a Aliança do Norte, no Afeganistão, e ainda mais recentemente, na cobertura das ações antiterroristas promovidas pelos Estados Unidos, encontrei colegas de profissão que se debatiam entre a segurança de optar por um lado do campo de batalha e os riscos de tentar entender a complexidade dos motivos nos dois lados. Jornalistas que deixam escapar a regra da isenção, tão impregnados estão de suas convicções pessoais. Ou profissionais e organismos de imprensa que justificam sua narrativa com base em argumentos políticos e/ou econômicos defendidos por este ou aquele governo. Estaremos todos sempre de um lado, mesmo quando deveríamos pairar sobre as diferentes facetas de uma guerra e apenas observar suas causas? Será impossível a imparcialidade diante das paixões que motivam os conflitos armados? Serão maiores que as normas do bom jornalismo os interesses econômicos que movem o mundo?
Poderosa, mas limitada
O distanciamento pode ser a resposta a dúvidas recorrentes e saudáveis no dia-a-dia da imprensa. A história responde, o tempo julga. Por isso este livro é uma grande viagem. A volta a uma guerra que nossa geração não viveu nos faz avaliar, com a devida distância, nosso papel, nossa força e nossa responsabilidade no trabalho que desenvolvemos hoje. O registro impresso da história, lido não nos livros oficiais mas nas intrincadas linhas dos jornais da época, nos remete a uma observação interior ? a observação do semelhante e suas falhas, a observação da verdade, se é que ela existe em tempos de guerra.
Na leitura da detalhada pesquisa realizada por Sidney Garambone, temos a chance de enxergar os vícios da imprensa brasileira na cobertura da Primeira Guerra Mundial e nossa participação no conflito, assim como a de aprender um pouco mais sobre as poderosas máquinas que, nos bastidores, empurraram o planeta ao conflito. Um conflito que não se deu entre o bem e o mal, distorção maniqueísta que continua a nos contaminar na visão das guerras contemporâneas. Quem se debruça sobre os distintos pontos de vista dos grandes conglomerados de mídia na cobertura de uma guerra, aprende, sobre aquele conflito, mais do que qualquer relato isolado poderia acrescentar. Ver a história acontecer é um privilégio. Mas entendê-la, talvez seja tarefa que só o tempo pode cumprir com rigor.
Por isso me preocupa a ausência da imprensa na cobertura das chamadas guerras esquecidas, como as do continente africano. A do Sudão, que já dura dezenove anos e vai aniquilando a riquíssima cultura local, ou a do Congo, que se arrasta ditador após ditador, esgarçando os conceitos de ética e moral de gerações inteiras no país. O relato jornalístico, por mais eivado que esteja das distorções que perseguem o ofício, oferece os contrastes necessários à análise e ao entendimento.
Ler sobre este mundo e nossa participação nele, ver que o quarto poder ? o da mídia ? utiliza armas poderosas, mas limitadas, é a melhor maneira de pensar em outros mundos possíveis e sonhados. Boa leitura, e boa viagem pra você.
(*) Jornalista