A DITADURA DERROTADA
José Antonio Palhano (*)
A ditadura derrotada, de Elio Gaspari, 538 pp., terceiro volume da série "As ilusões armadas", Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2003; <www.companhiadaletras.com.br>
O terceiro volume da série em que Elio Gaspari faz a dissecação do regime militar nascido a 31 de março de 1964 ganhou as folhas na quarta-feira, 5/11. A despeito de algumas chamadas de capa, a obra foi quase unanimemente remetida aos segundos cadernos. A princípio, nada que lhe esvaziasse os méritos e as importâncias. A ressaltar, no entanto, que tal destinação editorial pressupõe, ou sugere, que bem faz por merecer o carimbo ? definitivo ? de material histórico.
A Folha de S.Paulo, por exemplo, espetou-a em Ilustrada. Já o Estado de S.Paulo foi mais explícito: sapecou-lhe o subtítulo de "História". Cabe a pergunta: o livro é historiográfico ou jornalístico? Esta última uma acepção que o faria circunstancial? Mais que sintoma de dispensáveis pruridos acadêmicos, tal dúvida remete exatamente à revelação da saga de Gaspari que mais repercutiu: o artífice da abertura lenta, gradual e segura, o mesmo general-presidente Ernesto Geisel que implodiu seu ministro do Exército Silvio Frota e demais simpatizantes da prática do extermínio nos porões, consentia também em mortes matadas. E seguimos todos horrorizados, como convém.
Tudo bem. A ditadura acabou, entre outros motivos pela tal lenta, gradual e segura abertura, tocada a pulso firme (ou a ferro e fogo, vá lá) pelo mesmíssimo "Alemão" ? codinome do presidente cantado em prosa e verso, inclusive por muita gente boa que sofreu o pão que o diabo amassou em seu mandato, como um patriota desenvolvimentista e descolado da tietagem tupiniquim para cima de Washington.
E o extermínio? Ou, de maneira mais amena como recomendam as cartilhas democráticas, e as mortes matadas? Estas, como bem sabemos todos horrorizados que estamos com Geisel, seguem em escala industrial. Apenas ? e isto faz uma diferença danada no modo como nós, jornalistas, abordamos a coisa ? despidas do caráter político que tanto contribuiu para a indignação que um dia cresceu o suficiente para sepultar os ditos anos de chumbo.
Sofrimentos e aflições
Será mesmo? As mortes matadas de hoje em dia, no pleno e soberano exercício da democracia, são realmente apolíticas? Alberto Dines, no Jornal do Brasil (sábado, 8/11), escreve:
"O diálogo de um presidente-quase-empossado (Geisel) com o seu futuro ministro do Exército (Dale Coutinho) sobre a eliminação dos dissidentes é arrepiante. Mesmo considerando que vivíamos numa ditadura no auge da Guerra Fria. Descrito por um ficcionista seria inacreditável, transcrito das gravações ipsis verbis é arrasador: derruba o mito do brasileiro cordial, flagra a violência embutida nas vísceras da nossa sociedade, escancara a insensibilidade que engrossa a alma daqueles que se abancam no poder".
Marcelo Beraba, na Folha de S.Paulo (7/11), fecha seu "Tortura e tortura", no qual também se ocupa do livro de Gaspari, com uma reflexão assaz incômoda:
"É curioso, também, que o livro de Gaspari, uma luz nos porões onde se praticava rotineiramente a violência contra prisioneiros, coincida com a demissão punitiva, no Rio, do secretário estadual de Direitos Humanos, João Luiz Pinaud, que se notabilizou por denunciar a tortura nos presídios fluminenses. Outros tempos, os mesmos costumes".
Tanto um como outro exemplo são ensurdecedoramente explícitos: algo de muito ruim, que emana justo dos tempos que tanto desejamos esquecer, está a dizer que continua vivo, firme e forte. Perdoado o trocadilho nefasto, matando uma barbaridade. Dissecação, portanto, expressão acima utilizada, não seria exatamente feliz para reflexões sobre A ditadura derrotada. Talvez vivissecção seja mais apropriada, por mais doloroso que seja reconhecer a contemporaneidade da violência embutida nas vísceras da nossa sociedade, conforme assinalou Dines.
No caso do Rio de Janeiro, Marcelo Beraba deu-se a excessos de delicadeza ao considerar "curioso" o paralelo que faz entre as revelações de Gaspari e a atualidade fluminense, crônica inesgotável de matanças e torturas. O episódio que culminou com a morte de um chinês naturalizado nas entranhas dos porões democráticos da Cidade Maravilhosa é somente a ilustração mais fresca de uma política de Estado escandalosamente conivente com práticas de extermínio.
O fato de Anthony Garotinho estar no comando, ressalte-se, referenda tal doutrina não apenas em razão de assinar a falsificação vigente no Palácio Guanabara, encarnada em sua esposa, assim desidratando definitivamente de qualquer legitimidade o governo fluminense (só nós todos é que insistimos em não ver). O ataque, frontal e desabrido, que ora promove ao laicismo é sinal inequívoco de que suas pretensões vão muito além do que supõe nossa cavalar ingenuidade. Atribuir fundamentos religiosos à lambança que promove com tanto entusiasmo no Rio é tudo que o crime organizado precisa para, em definitivo, fazer o sistema de segurança pública à sua imagem e semelhança.
Não é à toa que os presídios cariocas andam há muito infestados de pastores e picaretas salvadores das almas dos seus hóspedes. Garotinho, e de novo só nós todos é que não queremos ver, é esperto. Enxergou a coisa antes de todo mundo e capitaliza a crendice em votos. Dessa forma, atenua a revolta da população inoculando-a com a reza segundo a qual seus sofrimentos e aflições são apenas purgações necessárias à salvação eterna, mesmo que venham travestidas de bandidos cruéis e sanguinários ? apenas ovelhas desgarradas que também haverão de merecer o reino de Deus.
Graduar a matança
É o próprio Elio Gaspari que volta e meia, feito um Quixote, cutuca a presença de um peão dos porões da ditadura na cúpula da segurança pública paulista. O atual governador de São Paulo tem dois tesouros em atributos capazes de lhe aguçar a sensibilidade: é médico e discípulo de Mário Covas. Nem por isto se dá por achado. E aí, como ficamos? Trata-se de mera coincidência ou é um caso típico de metástase tardia de um tempo em que se matava e se torturava em nome do regime, do qual tanto juramos distância?
Nós, jornalistas, tão tradicionalmente afeitos à separação de crimes políticos dos demais ? plebeus, por assim dizer ? já vimos este filme antes. De onde vem a política de segurança sanguinária de Paulo Maluf? Do Império, da era Vargas ou da ditadura militar? E os esquadrões da morte?
O sociólogo Carlos Lopes, no texto "Soberania nacional e execuções sumárias" (Folha de S.Paulo, 6/11), escreve:
"Segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil é o campeão mundial absoluto em número de homicídios, com uma pessoa morta a cada 12 minutos, ou um total de 45 mil por ano. Com 3% da população mundial, o Brasil responde por 13% dos assassinatos. Em 20 anos, a taxa de homicídios cresceu 230% em São Paulo e no Rio de Janeiro. O número de adolescentes detidos por crimes contra a vida aumentou 85,5%".
E aí? Vamos mesmo nos dar ao luxo, ou ao delírio, de considerar A ditadura derrotada material essencialmente historiográfico, apenas na intenção de turbinar nossa sempiterna hipocrisia, pela qual o importante é viver na democracia e o resto é conversa fiada? Tipo os milhões de jovens assassinados, muitos deles pela polícia e, portanto, pelo governo?
O jeito é assumir a politização das nossas mortes matadas. Por mais que doa, não vai fazer rebrotar a ditadura. Ou então providenciar um horripilômetro, pelo qual seguiremos graduando a matança segundo critérios que de tão ultrapassados cheiram a soberba. Só não vale chorar quando ressurgirem passeatas implorando pelos fuzis. Ou a frouxidão de Goulart era maior que a anomia vigente?
(*) Jornalista e médico