O fenômeno recente da expansão dos jornais populares no Brasil chegou a um momento significativo entre o final de 2006 e o início deste ano. Alavancada pelo crescimento da tiragem do Extra (RJ), Lance (RJ/ SP/ MG) e Diário Gaúcho (RS), a indústria da mídia impressa contabilizou o aumento da circulação de jornais em 6,5% no país. De acordo com o Instituto de Verificação da Circulação (IVC), as três publicações citadas foram as que tiveram mais expressivo acréscimo em vendas no ano, sendo também o segmento do qual fazem parte – os jornais populares – o que representou um incremento impressionante em novos títulos (com lançamentos em várias capitais brasileiras) e a ampliação do público-leitor nas classes C e D, habitualmente não consumidor de jornal.
Ainda mais simbólico nesse contexto é o fato do Extra, lançado em 1998 pela Infoglobo, mesma empresa de O Globo, ter conquistado e mantido, desde novembro de 2006, o primeiro lugar entre os jornais de maior circulação do país, com uma média de 300 mil exemplares/ dia. Número superior ao da Folha de S.Paulo, Estado de S. Paulo e do próprio Globo, que tradicionalmente alternavam a liderança no ranking do IVC. O que nos interessa particularmente, neste artigo, é avaliar o tratamento dado à política no jornal de maior circulação do país, considerando ocupar o Extra, hoje, um lugar privilegiado de ressonância das representações institucionais e de formatação dos debates para uma parcela importante de leitores, que passa a integrar o público dos jornais impressos.
Postura inquisidora
Segundo o diretor de redação do Extra, Bruno Thys, seu leitor não está interessado na cobertura tradicional de política feita pelos jornais de referência: ‘Esse rame-rame do Congresso, com o repórter de frente para o político e de costas para a sociedade, não interessa ao nosso leitor. Ele quer saber no que vai influir aquela votação sobre o seu dia-a-dia, no que resultam as decisões políticas para o salário mínimo, para o supermercado, para o emprego.’ Em resumo, usando as palavras do chefe de reportagem do Extra, Giampaolo Braga, ‘o leitor está interessado em política pública, não em política partidária’. Para além, todavia, das considerações feitas pelos próprios produtores da notícia veiculada no Extra, é importante salientar alguns fatores balizadores na estruturação dessa temática no jornal.
Ao contrário do que ocorre tradicionalmente nos jornais do segmento de referência, mas a exemplo do que se reproduz nos populares, não existe editoria de Política no Extra. O assunto é disseminado pela edição em pautas situadas entre Geral, Cidade, O País e encontra um espaço específico de comentários curtos e bem-humorados, mas também freqüentemente irônicos, na coluna ‘Extra! Extra!’, de Berenice Seabra. As decisões dos poderes Executivo e Legislativo não têm destaque isoladamente no jornal, assim como o noticiário declaratório característico das coberturas políticas. À exceção do período eleitoral e das cerimônias de posse de governador e presidente da República, durante o período de um ano (maio/2006 a maio/2007) em que analisamos o jornal, as autoridades políticas são notícia muito ocasionalmente.
No tratamento dado às figuras políticas, particularmente, é possível perceber uma submissão da esfera pública à privada na forma de representação dos políticos: além de reforçar um estereótipo de ausência de credibilidade, mantendo a classe política na posição defensiva frente à postura inquisidora do jornal e/ou da comunidade ou leitor defendidos, o Extra comumente associa as autoridades políticas ao tratamento pejorativo ou invasivo característico do usado com as celebridades.
Suspeitas de manipulação
Dois exemplos significativos estão na cobertura da posse do presidente Lula e na cobertura da Cúpula do Mercosul. Na primeira ocasião, o jornal explorou os casos de idolatria ao presidente, registrando depoimentos de pessoas que queriam enxergar ou chegar perto de Lula (‘Eu disse para ele: Lula, te amo. E aí ele veio me perguntar se eu amava mesmo. Eu posso morrer agora. E morro realizada – derreteu-se a aposentada Eunice Cavalcante, de 77 anos, que foi do Rio de Janeiro para Brasília especialmente para a posse’ – 02/01/07).
No segundo caso, foram enfatizados as atividades de lazer dos presidentes latino-americanos e os momentos de tietagem pública e curiosidade generalizada, sem nenhuma referência aos assuntos discutidos no encontro (‘Morales corre, Chávez beija’ – Boliviano se exercita em Copacabana, venezuelano distribui afagos e carioca se diverte com autoridades no Rio – 20/01/07).
Ainda sobre manifestações coletivas de cunho político, é interessante resgatar a posse do governador Sergio Cabral, quando o jornal registra a mobilização de um grupo de pessoas em favor da ex-governadora Rosinha Matheus, que deixava o cargo. Extra questiona a idoneidade do grupo, lançando suspeitas sobre uma possível manipulação política em troca de um benefício instantâneo: transporte e alimentação (‘Com a promessa de um lanche na ida e outro na volta, moradores de Nova Iguaçu lotaram quatro ônibus rumo ao Palácio’– 02/01/07).
Novo público, velha responsabilidade
Ainda que seja latente a tentação de optar por conclusões que reforcem o caráter questionável das opções editoriais, é preciso alertar para o fato de que esse é um modelo que vem ganhando a preferência popular. Há algum tempo, Ricardo Setti questionou o porquê de tanto noticiário político no Brasil, concluindo que os resquícios da ditadura seriam um forte componente para o número de notícias relacionadas aos poderes constituídos, em geral ancoradas por um dialeto ‘politiquês’ muito distante da compreensão do leitor comum.
Se o leitor (ou o cidadão) comum chega às bancas de jornal e encontra motivos para lê-lo, como antes não o fazia, talvez tenha chegado o momento da classe jornalística despir-se também de preconceitos que relegavam a leitura de jornais a parcelas privilegiadas da população. Contudo, a ampliação da circulação, que está diretamente atrelada à popularização (no sentido de amplitude de abrangência), não significa submissão a uma lógica meramente mercadológica, insensível à noção de interferência da mídia na esfera pública. Essa responsabilidade é inerente à dicotomia que talvez seja a principal dificuldade da atividade jornalística: conciliar os objetivos de uma instituição privada, que visa ao lucro, com os compromissos de uma instituição de interesse público, pela capacidade de refletir identidades e gerir a pauta social.
A cobertura nos jornais populares
Quando assume como ofício a tarefa de informar, o jornalista assume também a responsabilidade pelas escolhas que fará na forma de ofertar ao leitor uma leitura da realidade. Considerando-se aqui o jornalista condicionado ao circuito integrado da produção da informação, que passa logicamente pela edição, é inevitável concluir que as diferenças na cobertura de política devem-se a decisões que consideram uma concepção específica do leitor-alvo.
Trata-se, portanto, não só da verificação de uma mudança no tratamento da política que vem caracterizando um novo modelo na mídia impressa, mas da necessidade de revisão do entendimento da cobertura desse setor. É possível falar em bem comum ou interesse coletivo, quando as lutas e as mobilizações públicas se orientam muito mais pela proteção às diferenças? Ou a própria marginalização dos conteúdos e significados locais, frente às grandes instâncias de decisão, coloca-nos sucessivamente distantes da possibilidade efetiva de participação política? A compreensão que os jornais populares têm da política passa pela consideração desse espaço para a discussão de temas que interferem na vida de todos, ou esse é um campo já esvaziado de credibilidade e sentido que dêem margem à mobilização social? E mais: o que garante que o tratamento oferecido à política pelos jornais populares é aquele esperado pelo leitor das classes a que imagina que se dirige? Novas pesquisas já apontam o crescimento dos populares também entre o público das classes A e B, tradicionalmente consumidoras de jornais de referência.
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Jornalista, mestranda em Comunicação no PPGCom da UFSM