A DITADURA DERROTADA
Alberto Dines
Independente da excelência do trabalho desenvolvido pelo jornalista Elio Gaspari ao longo de 18 anos, duas questões não podem ficar engavetadas: as gravações das conversas de um presidente da República com o seu ministro-chefe da Casa Civil podem ser classificadas como propriedade particular?
O famoso "Arquivo do Golbery" e o diário de Heitor de Aquino (secretário do presidente Geisel) não deveriam ter sido encaminhados à guarda do Estado brasileiro?
Apesar das cuidadosas ressalvas no prefácio, de que se trata de um Arquivo Particular (enfatizado em caixa alta), aqueles são papéis de Estado ? as conversas envolveram basicamente duas altas autoridades, em local de propriedade do Estado e sobre questões de Estado. A generosidade e as esplêndidas intenções dos doadores não podem deixar de lado estas questões.
As 25 caixas de papéis com as 300 horas de gravações que mofavam na garagem do sítio de Golbery perto de Brasília são um bem público, deveriam ter sido entregues à guarda de uma entidade pública e seu conteúdo estatizado e democratizado, de modo a ficar disponível a todos os pesquisadores credenciados. Do que foi publicado no livro e reproduzido nos jornais, nada há que possa ser classificado na esfera privada.
Na excelente e alentada matéria do Globo (5/11, págs. 9-13) revela-se que os presidentes americanos em passado recente saíam da Casa Branca com baús abarrotados de documentos e gravações, logo encaminhados aos acervos das fundações que levavam os seus nomes e disponibilizados aos interessados.
Neste caso, os herdeiros do general Golbery do Couto e Silva arvoraram-se em detentores de um bem do Estado e o distribuíram de acordo com suas preferências pessoais.
Afortunadamente, este bem público caiu em mãos competentes, foi complementado com responsabilidade e diligência ? afinal, Deus é brasileiro. Mas o caminho correto e legal seria o encaminhamento a uma instituição pública e, em seguida, liberado o seu acesso.
A Fundação Getúlio Vargas é detentora de diversos acervos pessoais doados por grandes figuras da República (inclusive o presidente Geisel) e os trata como propriedade pública. O Arquivo Nacional está aparelhado técnica e legalmente para guardar qualquer tesouro documental para em seguida oferecê-lo à sociedade. Havia opções digamos cívicas, menos privatistas.
A discussão é importante, atualíssima, justamente quando a sociedade brasileira começa a perceber a imperiosa necessidade de distinguir os interesses privados dos públicos. Nada tem a ver com a inegável qualidade do trabalho nem com a esmerada edição. Mas tanto um como a outra serão beneficiados pela comercialização de algo que, ao menos teoricamente, não lhes pertence. [Em 7/11/03]
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