TV DIGITAL
Nelson Hoineff (*)
A DirecTV anunciou na segunda-feira (3/11) o lançamento de seu PVR (Personal Vídeo Recorder), que permite ao assinante programar gravações de programas em seu aparelho de videocassete. Não se trata ainda do PVR verdadeiro, mas de uma contrafação, como o Near Video on Demand antecedia ao Vídeo on Demand. Mas é um passo importante no sentido da colocação no mercado do que representa uma das principais ferramentas da primeira fase de implantação da televisão digital. Isso empresta a esse anúncio uma importância que de outra forma ele não teria. O público ainda não sabe de que se trata a TV digital, por isso não dá tanta importância a ela. Nada de extraordinário, considerando que o mesmo ainda acontece, em grande medida, com o ministério encarregado da implantação dessas plataformas.
O PVR pode ser lançado pela DirecTV (ou pela Sky) porque as operadoras satelitais (em banda Ku) já transmitem há muito tempo em digital. Utilizam o padrão europeu ? caso o leitor tenha curiosidade de saber ? estando portanto a guerra pela definição do padrão (em curso neste momento) restrita às transmissões terrestres, em particular às transmissões abertas, o que aliás é quase tudo.
Mas as operadoras satelitais (DTH, como são mais conhecidas) têm uma boa oportunidade de ensinar ao consumidor as possibilidades da futura TV digital e pouco a pouco estão fazendo com que isso aconteça. Já oferecem há algum tempo um cardápio de fragmentação de sinais em transmissões esportivas. O assinante pode escolher o ângulo em que prefere ver uma jogada durante uma partida de futebol. Acostuma-se, assim, com uma ferramenta que mais tarde irá utilizar também na ficção e, de uma forma bem mais ampla, nas futuras transmissões esportivas.
Novas gerações
O que está para ser disponibilizado com os PVRs é um gravador de características muito semelhantes aos de um VCR comum, mas que na verdade é capaz de gravar e reproduzir instantaneamente o que o espectador está assistindo. O objetivo é dar a esse espectador a sensação de que ele pode "parar" o tempo durante um rápido intervalo em que terá que se ausentar do recinto ? para abrir uma cerveja, atender o telefone ou ir ao banheiro. Na volta, a programação seguirá de onde estava. É como se o Faustão parasse um pouco para esperar por você.
A reprodução imediata de imagens e sons gravadas em chips, e não em fitas, já faz parte do nosso cotidiano, até mesmo em secretárias eletrônicas. Sua aplicação à televisão tem a particularidade de "domar o tempo", por assim dizer ? atributo que as plataformas digitais irão se encarregar de desenvolver mais tarde, quando será o espectador, e não as emissoras, que decidirá em qual dia e hora ele quer assistir cada programa.
Com as imagens múltiplas e o PVR já em fase de implantação ? para não falar do cardápio digital oferecido pela família dos reality shows comandado pelo Big Brother ?, o espectador tem uma pequena cartilha, e até mesmo um curso razoavelmente barato, sobre como a TV digital poderá atuar sobre os seus hábitos de consumo televisivo.
Formas interativas mais sofisticadas, inclusive com a criação de formatos específicos, virão mais tarde. Também o comércio eletrônico digital, onde cada programa de ficção será também um showcase de vendas.
Aprender não apenas a interpretar as linguagens que virão daí, mas também o funcionamento do instrumental que atenderá ao diálogo do espectador com a tecnologia que lhe é ofertada, é um grande desafio dessa geração. Para as crianças que nascem agora e que estarão no comando dos aparelhos de TV de seus pais dentro de cinco ou seis anos, isso não é um grande problema. Para elas, a TV sempre terá sido digital e ninguém vai convencê-las de que um dia a programação era organizada em redes. Nem que cada programa estava ligado não apenas à sua temática, mas também ao dia e horário em que era exibido, que é um fator externo sem qualquer vínculo com a produção.
Construção de imagem
O que tudo isso representa é que estamos no limiar do nascimento de uma nova mídia ? bastante semelhante à televisão tal como conhecemos, mas diferente dela sobretudo pela natureza do conteúdo. No médio prazo, o conteúdo construído para a televisão digital terá tanto a ver com a televisão analógica quanto tem, por exemplo, o software de um videogame, que no entanto utiliza a mesma tela em que se vê a novela das 8 e, em larga escala, a mesma tecnologia.
Muitos catetos chegam ao mesmo vértice. Por um lado, não estamos nem próximos da idéia do que representa, para o negócio da televisão, a migração para o digital. Por outro, as operadoras satelitais que colocam em órbita "500 canais e nada para ver", como no famoso jargão dos anos 90, ainda não entenderam por que o seu negócio é deficitário. Talvez entendessem se dessem uma olhada no que estão distribuindo. A maior loja da Barnes & Noble dificilmente sobreviveria se não tivesse pelo menos uma prateleira de livros decentes. Pois as plataformas digitais não multiplicam, simplesmente, a quantidade de opções; elas transferem ao espectador a responsabilidade por montar a sua própria programação, por ir buscar os livros disponíveis, onde quer que eles estejam, e empilhá-los na sua prateleira.
Ao fazer isso, o consumidor está também deletando o que não faz parte do cardápio que escolheu, está se dando conta de que ele é capaz de domar o tempo. Pode não ser uma nova mídia que surge ? mas é uma nova oportunidade de negócios.
Rupert Murdoch, ao participar de um evento da Fox, não vem ao Brasil para tomar caldo de cana na Avenida São João. Vem porque há uma massa de mais de 90 milhões de pessoas desatendidas no negócio da TV por assinatura; porque há 110 milhões de telespectadores cativos esperando que seja despejada sobre eles a monstruosa oferta de conteúdo viabilizada pela TV digital. Vem porque sabe que a rejeição à TV digital nos EUA não é rejeição à tecnologia, mas rejeição à multiplicação da mediocridade.
Estamos assistindo a tudo isso com a mesma passividade com que assistimos à sedimentação da hegemonia de conteúdo estrangeiro sobre a televisão brasileira, muito particularmente sobre a distribuição de sinais de TV por assinatura. E, no entanto, este é o momento que os produtores de conteúdo têm para agir, criando modelos específicos para as possibilidades das plataformas digitais, como a interatividade. Há um grande universo, esperando por ser descoberto e explorado.
O que a televisão digital vai vender ao consumidor é escolha, mas também renovação. Quem for capaz de fornecer escolha e renovação ao consumidor vai ganhar uma batalha bilionária, onde estará em jogo a formação de hábitos para as próximas décadas e também o reconhecimento da própria identidade numa época em que a globalização colabora para esfacelá-la.
A construção de imagens está entre os players principais de uma nova ordem cujos manuais de instruções estamos começando a receber. Com a capacidade de processar os sinais, podemos ficar com a impressão que o Faustão esperou que fôssemos até a cozinha para continuar o show. Mas devemos perceber que o controle que neste momento temos em mãos vai bem mais longe do que isso.
(*) Jornalista e diretor de TV