Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A isen&ccedilccedil;ão sob fogo de barragem

REFLEXÕES SOBRE A GUERRA

Heródoto Barbeiro (*)


Apresentação de A guerra ao vivo, de Carlos Fino, 296 pp., Editora Verbo, São Paulo, 2003; nas livrarias em 17/11; título da redação do OI


Entre tantos jargões jornalísticos há um que diz que a primeira vítima de uma guerra é a verdade. Há inúmeros exemplos na história recente da humanidade, e um deles foi a batalha da Inglaterra disputada nos céus de Londres, em junho de 1940. A Luftwaffe, a força aérea alemã, foi incumbida pelo ditador Adolf Hitler de dar o início a Operação Leão Marinho, cujo objetivo final seria a invasão da Grã Bretanha pelas tropas nazistas. Hermann Goering, comandante da Luftwaffe, organizou um ataque com mil aviões bombardeiros. Os ingleses puseram no ar os caças Spitfire da RAF para frear a investida alemã, e a cada piloto foi dito que lutassem o mais que pudessem, pois se um bombardeiro passasse ele poderia jogar bombas que poderiam atingir a sua casa e sua família. A batalha durou aproximadamente 40 dias, e a vitória foi comemorada por Churchill homenageando os pilotos da RAF com a frase "nunca tantos deveram tanto a tão poucos".

Após o primeiro dia de guerra aérea os britânicos anunciaram que tinham abatido mais de 120 aviões alemães e perdido uma dúzia. Os alemães divulgaram o contrário: abateram dezenas e perderam algumas unidades. A partir daí a informação tornou-se uma arma de guerra como outra qualquer. Ela perdeu totalmente a credibilidade. Ninguém mais podia confiar nas informações colhidas nas forças armadas. Para comprovar que era tudo mentira bastava somar as pseudovitórias conquistadas, de um lado ou de outro, e o bom senso se incumbiria de atirá-las no lixo. Acabou a isenção, se é que ela existe em algum momento de uma guerra.

O presidente americano George W. Bush e o primeiro-ministro britânico Tony Blair incumbiram-se de arquitetar a crônica de uma guerra anunciada. O argumento para por em movimento a maior, mais cara e mais poderosa máquina de guerra de todos os tempos, braço armado da nova época da unilateralidade, consumidora de bilhões de dólares, amparada pelo complexo industrial armamentista apoiador do Partido Republicano, precisava ser eficiente. Sem opinião pública, nada feito. Foi assim no passado. Foram os jornais que conseguiram o apoio da opinião pública para guerras anteriores, como a de 1898, contra Cuba, quando um navio americano explodiu no porto de Havana. Essa mesma imprensa foi mais eficiente ao conseguir que os Estados Unidos entrassem na guerra em 1.917 contra a Alemanha do Kaiser Guilherme II, divulgando a ação dos submarinos alemães no Atlântico, e as mortes de americanos a bordo de navios britânicos. Roosevelt não precisou esforçar-se. O ataque de Pearl Harbour se encarregou de alavancar a opinião pública contra o Japão e depois contra todo o Eixo.

A conjuntura que levou os Estados Unidos e a Grã Bretanha a invadirem o Iraque foi urdida nas transformações mundiais pós-guerra fria e sob as estruturas da nova economia, ou do capitalismo informacional. A busca de um vilão que substituísse os comunistas de qualquer matiz, parou no ditador sanguinário do Iraque, Saddam Hussein, o mesmo que desencadeara a Guerra do Golfo em 1992 ao invadir o Kwait. A opinião pública americana cobrava do governo a captura dos responsáveis pelo atentado de 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center, que matou quase três mil pessoas e destruiu o símbolo da mais importante economia do mundo e atingiu o Pentágono, o símbolo do poder militar. Sem disparar um único tiro. O atentado veio de dentro e arrasou a auto-estima americana. Muito mais grave do que Pearl Harbour na avaliação de um senador, com uma diferença, o ataque a Honolulu todo mundo sabia o autor. Os ataques a Nova York e Washington não. O satânico Doutor Nô era o saudita Osama Bin Ladin, baseado no Afeganistão. A pressão da opinião pública ficou insustentável para o governo.

Era preciso sair a caça do terrorista onde quer que ele estivesse, mas a situação era nova para os Estados Unidos, acostumados a combater nações, e não um líder terrorista. Por isso invadiram o Afeganistão e depuseram a milícia Talebã que propugnava a volta dos costumes à Idade Média islâmica. Praticamente não houve combate, Osama e o mulá Omar desapareceram na areia, muito pouco para satisfazer o cidadão médio americano. Era preciso prosseguir a cruzada contra o terrorismo, mas para isso era necessário encontrar um alvo adequado. Renascia a luta do Bem contra o Mal, tão a gosto dos que engendram a geopolítica americana.

Onde estaria Belzebu?

Saddam Hussein era uma pedra no sapato da política americana no Oriente Médio. Fustigava constantemente os Estados Unidos e era o maior crítico, superando até mesmo inimigos históricos como Fidel Castro e Muamar Khadaffi. Tinha a agravante de não esconder nem que tinha pretensões de liderar o mundo islâmico, nem de ajudar os grupos palestinos que lutavam contra Israel. Insistia em ter uma política externa independente e não poupava bravatas sobre armamentos e liderança regional. O ditador iraquiano tinha o manequim certo para satisfazer a sede de revanche pelos atentados. Este era o alvo. Bush e Blair saíram a cata de informações que ligassem Saddam ao atentado de 11 de setembro. Faltavam provas conclusivas, mas os serviços secretos cuidaram de exagerar e os indícios viraram provas incontestáveis nas mãos dos dois.

De nada valeu o esforço da ONU em manter inspetores para procurar armas de destruição em massa no Iraque, comandados pelo sueco Hans Blix. Este divulgava diariamente informações que nada havia sido encontrado. Os anglo-americanos deram um ultimato a Saddam para que entregasse as armas químicas, biológicas e atômicas que garantiam saber existir. Blix repetia que nada tinha encontrado.

A unilateralidade veio a tona. Desde o fim da Guerra Fria a bipolarização foi substituída pela hegemonia de uma só potência. E contra ela não havia argumento, era se submeter ou se submeter ao poder mundial. E Blix dizia que nada tinha sido encontrado.

Americanos e ingleses tentaram aprovar no Conselho de Segurança da ONU um aval para a ação, sem êxito. Poucos países apoiaram a iniciativa americana de uma intervenção no Iraque. Hans Blix insistia em dizer que nada tinha sido encontrado. E de fato ele tinha razão, o Daily Telegraph publicou posteriormente uma reportagem que mostrava 20 mentiras sobre a guerra, entre elas a compra de material radioativo africano para o programa nuclear iraquiano, uma outra que haviam armas de destruição em massa… E Hans Blix… O final do prazo fez mais uma vítima: a Organização das Nações Unidas. A entidade internacional sofreu um duro golpe em que pesem os esforços de Kofi Annan, o secretário-geral, para impedir o conflito e a desmoralização da ONU. Alguns analistas diziam que a derrota das Nações Unidas só era comparável à da Sociedade das Nações, que não conseguiu impedir a II Guerra Mundial e por isso desapareceu. Pairou sobre a ONU um destino semelhante. Assim como sua antecessora as potências desconheceram as resoluções da comunidade internacional e resolveram agir por conta própria.

Desta vez a imprensa não precisava mobilizar a opinião pública americana. Pesquisas mostravam que de cada 4 americanos 3 eram simpáticos a uma ação do Tio Sam. Estava decidido: saiam de Bagdá porque vamos atacar. Última entrevista de Hans Blix na sede da ONU em Nova York, dava conta que nada tinha sido encontrado. Bush e Blair partiram para o ataque. Porém esta, mais do que a operação de 1992, seria a guerra da imagem, da televisão. A CNN, que na guerra anterior havia se tornado mundialmente conhecida, tinha entrado para a história com o repórter Peter Arnett narrando no escuro o ataque americano a Bagdá.

Desta vez a Fox News entrava na parada pela conquista da audiência e os jargões "nossos soldados, nossas forças militares, etc." A parafernália tecnológica garantiria muito mais e fantásticas imagens capazes de eletrizar os telespectadores. Outras redes, como a BBC, também entravam na batalha pela audiência mundial. A internet de banda larga, a miniaturização dos equipamentos, o vídeo fone, o celular eram o equipamento da reportagem, principalmente dos "embedded". Se quiser, pode traduzir por "embutidos". Eles receberam autorização para acompanharem de perto as tropas. Com toda a traquitana a sua disposição podiam transmitir os tanques correndo nos desertos, os soldados avançando. Detalhes que deixaram as imagens aéreas de destruição de alvos para trás. Como em todas as outras guerras onde jornalistas atuaram, nesta também estavam sob censura, sob pretexto de não divulgar informações militares para o inimigo. Ia ser um show. Desta vez grupos de jornalistas foram admitidos em Bagdá e se estabeleceram no Hotel Palestina.

A tevê árabe Al Jazyra, sediada no Katar, conhecida como a CNN árabe, já tinha se notabilizado no mundo ao divulgar imagens e mensagens de Osama Bin Ladin. Seus repórteres também estavam lá com um estúdio completo montado às margens do Tigre.

Saddam aprendeu depressa as lições de marketing de guerra. Ia ser uma guerra de audiência, de versões, de imagens e de prestígio jornalístico.

A presença da imprensa brasileira estava garantida com o trabalho dos jornalistas Sérgio d’Ávila e Juca Varela da Folha de S. Paulo. Contudo, quando os anglo-americanos comunicaram um ultimato final e passaram a bombardear sistematicamente Bagdá, eles deixaram o Iraque, uma vez que corriam risco de vida. Não havia jornalistas brasileiros em Bagdá, mas havia um único jornalista que falava português. O jornalista Marcos Uchoa, da tevê Globo chegou na cidade no final do conflito. A RTP, Rádio e Televisão Portuguesa, também tinha se preparado para cobrir a guerra e uma equipe permaneceu no Hotel Palestina, o jornalista Carlos Fino e o cinegrafista Nuno Patrício. A TV Cultura de São Paulo tinha um acordo com a RTP para o aproveitamento das reportagens no Jornal da Cultura. Eram os mesmos VTs usados no noticiário que, pela diferença de fuso horário, eram apresentados antes em Portugal.

Foi o repórter Carlos Fino que deu o furo do início da guerra. A RTP também foi a única a registrar no ar os preparativos de Bush antes de uma entrevista na televisão americana, se penteando, ajeitando e ensaiando em voz alta o que ia dizer.

Dois gols portugueses

As reportagens da RTP chamavam a atenção pelo cuidado do repórter em retratar fatos que não eram divulgados em outras redes. Carlos Fino e o seu companheiro transmitiam isenção, equilíbrio e idoneidade nas reportagens. Ainda que estivessem confinados em Bagdá, imersos no mundo de Saddam Hussein, era perceptível o tom crítico de suas matérias.

Com o início da guerra sugeri que se pedisse ao Carlos Fino uma entrada ao vivo no Jornal da Cultura que ia ao ar às nove da noite. Um áudio tape, gravado com antecedência? Não, ao vivo mesmo, por celular e o áudio coberto por imagens da própria RTP ou da Reuters, que transmitia ao vivo. Não era possível, o Jornal da Cultura vai ao ar às nove da noite, três da manhã em Bagdá. Quem se dispunha a fazer tal sacrifício?

Carlos Fino. Ele entrou pela primeira vez ao vivo e se converteu no nosso correspondente de guerra de todas as noites.

Se o repórter da RTP se superava e acordava às três da manhã, não seria tão estafante pedir-lhe que repetisse a dose a uma da tarde. Pedi ao Carlos Fino que atualizasse o noticiário no Jornal da CBN, sete da manhã no horário de Brasília. Enquanto durou a guerra ele se tornou familiar aos brasileiros, participando diariamente de uma rede de tevê e outra de rádio.

Logo outros veículos o descobriram e o incansável Carlos Fino reportou os bombardeios, as bravatas do ministro de comunicação iraquiano, o bombardeio de prédios civis, as agruras da população, a chegada dos americanos no aeroporto de Bagdá, e o tiro de canhão de um tanque americano contra o Palestina, que matou vários jornalistas e por pouco não atinge a equipe portuguesa.

Essas e outras reportagens estão contadas neste livro.

(*) Jornalista

 

"Passamos os primeiros dois dias de guerra praticamente sem ir à cama, assegurando intervenções ? por vezes mais do que uma ? em todos os serviços noticiosos da RTP (Rádio e Televisão Portuguesa). E de madrugada ? por volta das três da manhã, ainda atendíamos o Brasil, de onde começaram a chover telefonemas das mais diversas rádios e televisões de todos os pontos daquele imenso país ? de Porto Alegre a Fortaleza, de S.Paulo e do Rio a Brasília.

A TV Cultura estava fazendo com a RTP o que a RTP costumava fazer com a CNN ? usar as nossas transmissões. Isso lhe deu a possibilidade de transmitir as primeiras imagens da guerra, à frente de todas as outras estações. Como nessa altura os jornalistas brasileiros não tinham ninguém em Bagdá, as atenções viraram-se para a RTP Internacional e para o trabalho que estávamos realizando. Daí a outras rádios e televisões começarem a telefonar para terem relatos nossos nas suas próprias estações, foi um passo. Nunca mais tive sossego naquelas madrugadas de Bagdá, sacrificando muitas horas de descanso. Mas era um imperativo fazê-lo. Sentia que tinha essa obrigação enquanto português, falando para um país de língua portuguesa. E a título pessoal como agradecimento pelo fato de ter sido do Brasil que veio a chamada de atenção para ?o furo mundial? que havíamos conseguido ao transmitir as primeiras imagens da guerra.

Foi, aliás, também do Brasil que chegaram as primeiras manifestações de apreço pelo trabalho que eu e o Nuno estávamos realizando e ainda as primeiras expressões de preocupação solidária.

Nunca mais poderei esquecer aquelas vozes amigas que do outro lado do mundo, em português, naquele tom gostoso e doce do Brasil, me perguntavam, carregando nos rrs ??Carlos, ah Carlos, você tá bem??"