ENTREVISTA / JOSÉ MARQUES DE MELO
Paulo Lima (*)
História do pensamento comunicacional, de José Marques de Melo, 373 pp., Editora Paulus, São Paulo, 2003 <http://www.paulus.com.br/>; R$ 32,20
Um dos lançamentos mais recentes do mercado editorial na área de comunicação em língua portuguesa, História do pensamento comunicacional (Paulus Editora, 2003), de José Marques de Melo, traz a assinatura de um dos decanos do jornalismo e da comunicação no Brasil. José Marques de Melo começou a exercer o jornalismo em 1959, aos 15 anos de idade, no seu estado natal, Alagoas. Mudou-se ainda jovem para São Paulo, fugindo das limitações do ambiente restritivo da impressa local, na qual atuava. Décadas depois Marques de Melo já era nome consagrado nos estudos dos fenômenos da comunicação no país.
Em 1973, obteve o título de doutor em Comunicação na Escola de Comunicação da Universidade de São Paulo, da qual foi professor emérito e diretor por longos anos ? o primeiro estudioso a obter esse doutorado na América Latina. Autor de obras fundamentais sobre jornalismo e comunicação, o professor Marques de Melo atualmente leciona na Universidade Metodista de São Paulo, cuja cátedra de Comunicação ajudou a criar, em 1996. É diretor da Faculdade de Comunicação do UniFiamFaaM, de São Paulo, e assina a coluna "Campus" na revista Imprensa.
O livro ora lançado reúne artigos e conferências do autor e traça amplo panorama do desenvolvimento da comunicação da Antigüidade até os dias atuais, com especial ênfase na comunicação na América Latina e no Brasil. Nesta entrevista, José Marques de Melo fala de sua trajetória, dos fenômenos midiáticos contemporâneos e das perspectivas da comunicação e do jornalismo para o século 21.
O que determinou o seu interesse pelo estudo da comunicação?
José Marques de Melo ? Comecei a exercer o jornalismo aos 15 anos de idade. Mas logo constatei que o amadorismo e o voluntarismo não seriam suficientes. Decidi então fazer vestibular para o curso superior de Jornalismo e assimilar o conhecimento teórico que me ajudaria a elucidar enigmas da minha prática profissional.
Quais foram as suas primeiras influências intelectuais?
J.M.M. ? O primeiro texto que me causou impacto foi a conferência escrita por Rui Barbosa em 1920 sobre "A imprensa e o dever da verdade". Depois travei contato com a obra clássica de Luiz Beltrão ? Iniciação à filosofia do jornalismo (1960). Elas balizaram minha sede de conhecimento jornalístico que se intensificou durante o período da formação universitária.
O senhor deixou o seu estado natal, Alagoas, para trabalhar no Sudeste, fugindo de uma situação de restrição à liberdade de imprensa, ao provincianismo da mídia regional. Como o avalia a questão da liberdade de imprensa hoje no Brasil?
J.M.M. ? Vivemos hoje no país um período formidável no tocante à liberdade de imprensa. Ainda que persistam restrições localizadas, decorrentes de decisões judiciais ou da truculência de caciques suburbanos, temos um clima de respeito à ordem constitucional. Desde a vigência da Constituição de 1988 temos um ambiente de liberdade irrestrita, nunca vivido em território nacional.
Com relação à televisão, existem os apocalípticos e os integrados, para usar uma divisão sugerida por Umberto Eco. Há os que a aceitam e os que a demonizam. Mas há também aqueles que postulam uma visão mais conciliadora ao afirmarem que a televisão educa, dependendo do ângulo que se observa. Qual a sua opinião a esse respeito?
J.M.M. ? Num país em que os maiores contingentes da população foram expulsos precocemente da escola (fenômeno da evasão) ou a ela sequer tiveram acesso (fenômeno da exclusão) é inevitável que a televisão funcione como uma espécie de escola paralela. Por isso mesmo, o nível cultural da nossa televisão corresponde ao medíocre coeficiente cognitivo da nossa população. Pretender elevar esse nível sem que as novas gerações sejam melhor educadas ou sem que os contingentes deseducados tenham chance de elevar sua formação intelectual é pura fantasia. Nada impede que as emissoras difundam programas de melhor qualidade, mas isto não significa que eles devam ser pautados pelas demandas das camadas eruditas. Reivindico uma programação mais elaborada, em sintonia com as demandas da cultura popular.
O senhor acredita que o caso Gugu Liberato, envolvendo uma entrevista com falsos membros do PCC, foi tratado adequadamente pela Justiça?
J.M.M. ? A decisão judicial de suspender o programa subseqüente do Gugu àquele em que foi difundida a falsa entrevista foi um ato de censura prévia. Trata-se de ato sem amparo constitucional. Gugu, sua equipe e a emissora devem ser processados pela difusão de informação falsificada, grosseiramente travestida de jornalismo. Devem naturalmente ter direito de defesa, antes de condenados, como manda o ritual da justiça ordinária.
Em sua opinião, a adoção de um conselho de ética para a TV contribuiria para melhorar a qualidade das nossas programações?
J.M.M. ? A melhoria da televisão somente será obtida com a elevação do nível cultural da nossa população. Há mais de 50 anos esse debate volta à cena, sem solução. Não sou contrário aos comitês de ética no âmbito das emissoras, mas entendo fundamental a vigilância crítica da própria sociedade. Também creio na melhoria da situação quando tivermos uma geração de produtores audiovisuais melhor qualificada intelectualmente. E isso compete às universidades.
Que razões sociológicas e culturais, em sua opinião, explicariam fenômenos midiáticos contemporâneos como os programas do tipo reality show?
J.M.M. ? Os estudos científicos realizados em várias partes do mundo ainda não são conclusivos em relação a este e outros aspectos do consumo midiático. Ele contudo parece estar associado a uma emergência dos cidadãos comuns como protagonistas da história cotidiana. Exauridos pela dose excessiva de fantasia que predomina nos meios audiovisuais, os sujeitos da sociedade dita pós-moderna querem ver-se no espelho midiático. Pretendem reproduzir a "vida como ela é" (Nelson Rodrigues) em contraposição ao imaginário construído pelos ficcionistas.
Como o senhor avalia a abertura da mídia nacional para o capital estrangeiro?
J.M.M. ? Acho inevitável essa abertura, até mesmo porque as fronteiras nacionais estão sendo transpostas cotidianamente pelas redes midiáticas beneficiadas pelos satélites artificiais. Defendo, contudo, a vigência de políticas públicas destinadas a fortalecer as produções nacionais/regionais, inclusive como bens simbólicos a serem exportados.
Com relação ao endividamento colossal dos nossos conglomerados de comunicação, a saída é mesmo via mão do estado? Isso não resultaria em uma injunção perigosa sobre as nossas empresas jornalísticas?
J.M.M. ? O Estado não pode eximir-se da situação, tendo em vista que as indústrias midiáticas constituem patrimônio coletivo a ser preservado. Não estou seguro que a liberação, pura e simples, de recursos públicos, a fundo perdido, venha sanar as dificuldades das empresas. Não é a primeira vez que operação dessa natureza emerge no cenário nacional. A questão é complexa, exigindo solução compatível com a preservação da independência editorial dessas empresas. Tenho receio de que essa fragilidade das nossas empresas midiáticas possa ser alavancada pelo governo para respaldar um processo hegemônico que inevitavelmente desembocaria numa ressurreição do autoritarismo político.
De que forma as modernas confluências midiáticas (com a internet atuando no centro de irradiação das novas tecnologias) poderão criar ou não um novo jornalista?
J.M.M. ? Esse novo jornalista, ou seja, o agente multimidiático, teve o seu perfil dimensionado na metade do século passado, com o desenvolvimento da televisão e o aperfeiçoamento do rádio. Lamentavelmente as nossas escolas de Jornalismo mantiveram padrões pedagógicos sintonizados com a natureza do jornalismo gutenbergiano. Quando falo de jornalismo gutenbergiano refiro-me à hegemonia do jornalismo impresso no pensamento jornalístico brasileiro. A maioria dos livros-texto ou das teses acadêmicas sobre jornalismo contempla o universo dos jornais e revistas. A reflexão sobre o jornalismo radiofônico ou televisivo é absolutamente minoritária. Esse quadro só começou a mudar recentemente com o interesse despertado pelo jornalismo digital. Superar esse dilema constitui o imperativo universitário neste início do século 21.
E como seria esse novo jornalista?
J.M.M. ? Esse novo jornalista necessita dominar todas as linguagens midiáticas, argumentando com segurança verbal, mas sendo capaz de expressar-se oralmente e visualmente com a mesma desenvoltura da escrita. Mas isso não é suficiente. Precisa também assumir atitude empreendedora, deixando de ser um funcionário típico das empresas industriais para se converter num prestador de serviço, ágil e reflexivo a um só tempo.
A facilidade de obter informações em ferramentas de busca da internet, o uso ostensivo do telefone para fazer apurações, a releasemania. Esses são recursos utilizados ostensivamente pelo jornalismo contemporâneo. Hoje o repórter quase não sai da redação para apurar uma matéria. O que sobrou do velho jornalismo?
J.M.M. ? Sair do gueto redacional constitui um imperativo a ser encarado pelas novas gerações de jornalistas. Os fatos devem ser apurados de maneira testemunhal, pessoalmente pelos repórteres ou através da mediação de observadores dotados de credibilidade. Os bancos de dados e as fontes bem-informadas continuam a ser fundamentais para checar os dados coletados e prever o desenrolar dos acontecimentos.
Em muitos países (Estados Unidos, por exemplo), o diploma de jornalista não é exigido para o exercício da profissão. Requer-se do jornalista graduação numa área qualquer, mas não necessariamente em Jornalismo. Por que, no Brasil, a discussão ganhou essa dimensão sobre a obrigatoriedade ou não do diploma?
J.M.M. ? O que se exige mundialmente dos jornalistas é a competência profissional. Ela pode ser adquirida a curto prazo na universidade, freqüentando um curso de Jornalismo, ou através do aprendizado lento numa redação. Nenhuma empresa moderna pode se dar ao luxo de treinar focas para esse exercício profissional. Há sempre exceções. Mas a regra, mesmo em países que não possuem legislação restritiva como o Brasil, é a contratação preferencial de jovens que possuem formação universitária específica, ou seja, que adquiriram competência profissional nos laboratórios da universidade, complementados por estágios supervisionados.
O senhor costuma apontar como entrave para o desenvolvimento da imprensa no Brasil o atraso cultural das nossas primeiras populações, a ausência de um mercado consumidor etc. Esse fenômeno se repete mesmo no Brasil contemporâneo?
J.M.M. ? O panorama brasileiro vem mudando lentamente. A exclusão comunicacional, especialmente no âmbito da imprensa, reflete a persistência daqueles fatores sócio-culturais que identifiquei em minha tese de doutorado, 30 anos atrás. Eles se projetam em bolsões regionais ou mesmo nas grandes metrópoles, onde se aglomeram contingentes populacionais marginalizados do mercado consumidor. As políticas de inclusão social dos últimos governos pretendem reverter a situação, mas seus resultados ainda não são alentadores.
O senhor dedicou a vida ao estudo da comunicação e seus fenômenos. Olhando agora para trás, que lições extrairia dessa longa trajetória?
J.M.M. ? Preservo um sentimento de otimismo em relação ao futuro, embora me entristeça a lenta mudança da sociedade brasileira. Como acadêmico tenho me dedicado a realizar estudos dentro da linha do pragmatismo utópico. Gostaria de ampliar o contingente de pesquisadores solidários com essa postura na tentativa de fortalecer a fornada em direção a uma sociedade onde predominem os princípios de justiça, liberdade e bem-estar.
(*) Estudante de Jornalismo, editor do Balaio de Notícias <http://www.sergipe.com/balaiodenoticias>