MÍDIA ESPORTIVA
José Carlos Aragão (*)
Mais uma daquelas perguntinhas simples que não querem calar: é papel da imprensa promover eventos esportivos para fazê-los virar notícia?
Não fiz nenhuma pesquisa histórica sobre as origens do problema, confesso. Fui só até o ponto que a memória pôde alcançar. E o ponto a que cheguei são os cartazes das grandes lutas de boxe, as grandes disputas pelos títulos mundiais.
Eles já existiam antes de Mohamed Ali, com certeza, mas a minha memória insiste em achar que os tais cartazes são apenas contemporâneos daquele que, ainda hoje, é considerado o maior de todos os tempos. Talvez porque Ali tenha sabido usar, com igual talento e competência, os punhos e a mídia. Seu perfil toscamente recortado e montado, rosnando para Frazier, Holmes ou Spinks, são imagens que nunca me saíram da cabeça.
Eram os anos 1970, faltava menos de um quarto de século para o ano 2000. Mas foi por aí que começaram a nascer as chamadas "lutas do século", como as batizavam os promotores e como repetia toda a imprensa. O fim do século cada vez mais perto e cada embate envolvendo grandes campeões ? Sugar Ray Leonard, Roberto "Mano de Piedra" Durán e, depois, Mike Tyson, Evander Hollyfield ? ganhou o rótulo consagrador.
Sem qualquer crítica a essa profusão de "lutas do século", a imprensa ? a brasileira, inclusive ? embarcou nos apelos publicitários dos promotores de eventos. E seguiu dando asas ao vôo de cada "desafio do século", "embate do século", "confronto do século", "revanche do século", que não tardaram a migrar para outras modalidades esportivas: "corrida do século", "regata do século", "torneio do século" e outros que tais.
Até o nosso Pelé (sem querer lhe tirar o mérito) tornou-se, bem antes que o século expirasse, o "Atleta do Século" ? sempre grafado em maiúsculas. Isso, antes de surgir Maradona que, se não fosse tão irresponsável consigo próprio e com seu talento, tinha tudo para ameaçar-lhe o título.
Assim, macaqueando os Dons Kings do show/sport/business americano, a imprensa esportiva nacional foi se colocando a reboque daqueles que descobriram como ganhar dinheiro com o esporte: promotores, empresários, agentes e ? pasmem! ? até atletas. Aos poucos os departamentos comerciais das empresas jornalísticas começaram a sugerir pautas às editorias de esportes, sob a alegação de que o esporte era um espetáculo e que, dessa forma, atrairia a atenção de leitores, ouvintes e telespectadores e ? por conseqüência ? anunciantes. E que, enfim, se era bom para os americanos, deveria ser bom para o Brasil. Daí para frente, não ficou pedra sobre pedra.
Editoriais indignados
Os estádios perderam público, mas ganharam mais repórteres e câmeras de TV. Jornais ganharam cadernos de esportes e ampliaram seu quadro de repórteres. Jornalistas esportivos tornaram-se empresários de atletas ou de eventos esportivos. Ex-atletas viraram comentaristas de TV e colunistas de jornais. Ex-árbitros tornaram-se comentaristas de arbitragem, que, hoje, parecem indispensáveis a qualquer transmissão de futebol ? mesmo a mais chulé delas.
Algumas conseqüências até foram boas; outras…
O vôlei deixou de ser volleyball, ganhou as praias, medalhas olímpicas e status de esporte popular. Num país de miseráveis, Guga virou ídolo praticando um esporte de gente nascida em berço esplêndido. Enquanto o Brasil lamentava a perda de Senna, a TV lamentava a perda de audiência. Nem todo o entusiasmo de proveta do Galvão Bueno foi capaz de transformar Zonta, Pedro Paulo, Massa, Pizonia ou Rubinho num novo Aírton. A pressão da Globo sobre o Rubinho foi tão grande que acabou por transformar uma carreira promissora em pilhéria nacional.
Esse recapitular fatos aleatórios é um grande e necessário nariz de cera para se voltar ao ponto: onde acaba a promoção e começa o jornalismo? É ético a TV passar a semana inteira acirrando rivalidades entre atletas de Cruzeiro e Atlético, Flamengo e Vasco, ou Bahia e Vitória para o clássico de domingo e se justificar dizendo que está apenas "ajudando a promover o espetáculo"? O papel da imprensa (nesse caso, esportiva ou não) é noticiar e analisar os fatos ou interferir para que eles ganhem dimensões que podem não lhes ser próprias ou naturais?
No caso específico do esporte (ainda) mais popular do país, o futebol, a imprensa tem sido cada vez mais profícua em criar factóides, especialmente nos dias que antecedem grandes clássicos e decisões. Quem nunca viu uma daquelas entrevistas visivelmente armadas, em que o artilheiro do time A promete comemorar com uma coreografia original os gols que pretende fazer na partida, enquanto o zagueiro do time B rebate dizendo que o adversário é quem vai dançar? O trocadilho, meticulosamente construído pelo repórter, tende a virar piada de uso contínuo entre torcedores, que a reproduzem durante a semana toda, no trabalho, no bar, no metrô, na internet ? esse é o objetivo, quase subliminar, se não fosse tão ridiculamente óbvio: "Promover o espetáculo".
Não raro, rivalidades entre torcidas, quando acirradas, descambam para tragédias. É o que se vê com relativa freqüência nos jornais de segunda-feira, quando algumas páginas dos cadernos de esportes parecem ter sido produzidos pela editoria de polícia.
E aí, parte daquela mesma imprensa que passou a semana toda acirrando ânimos solta indignados editoriais contra a violência nos estádios ou imagens da tragédia em slow motion, enquanto rolam, silentes, os créditos finais do programa.
Enquanto isso, tento explicar a meu filho que houve um tempo em que o jornalismo esportivo era mais pobre (não tinha replay, slow motion) e mais rico (tinha mais compromisso com a notícia, com a ética)…
(*) Jornalista, Belo Horizonte