O POVO
"A celebração do erro", copyright O Povo, 26/10/03
"O Povo estampou no último fim de semana um anúncio de página inteira festejando um erro. As peças mostravam parte da capa do dia 10, sexta-feira, destacando um ?furo nacional?. Segundo um trecho, O Povo dera mostra de ?Jornalismo investigativo, responsabilidade social, opinião, agilidade na informação e senso de oportunidade? com a manchete ?Comprovada fraude na Constituição?. O anúncio ainda apontava a menção do jornal na revista ?Época? da semana passada como reconhecimento do ?furo?. Embora só exibisse a ?Época? e no fac-símile destacasse minguadas cinco linhas referentes ao O Povo, dizia que ?toda a mídia nacional? havia sido pautada por aquela informação ? flagrante exagero. Também era essa a essência da coluna Política de domingo, assinada pelo jornalista Fábio Campos, autor da manchete sobre a Constituição.
Depurado o tom provinciano que o anúncio e o texto da coluna transmitiam ? expresso na celebração por um veículo do Sudeste ter notado o que O Povo publicou ?, o que por si reduz e empana voluntariamente a importância da imprensa regional, vê-se ali a tentativa de se convalidar uma matéria eivada de falhas de apuração. Seria mais proveitosa uma autocrítica, o que o jornal rejeitou. As falhas, comprovei sobejamente em comentários à Redação e na minha coluna passada. Aliás, o fato de o anúncio ter sido publicado no mesmo dia da minha coluna mais sugere uma ação preventiva, diante do tema que eu obviamente trataria, do que propaganda. Para quem não acompanhou o caso, sintetizo:
1) o jornal informou que as medidas provisórias foram inseridas na Constituição Federal de 1988 fraudulentamente, por meio do artigo 59, que trata do processo legislativo. Segundo O Povo, as MPs não existiam no texto final votado pelo Congresso Constituinte, mas foram incluídas no texto promulgado. Uma edição impressa pioneiramente pelo Banco do Nordeste seria a prova disso;
2) a matéria publicada ignorava o artigo 62. Este sim, já previa as MPs e está presente na Constituição impressa pelo BNB;
3) o jornal não ouviu no primeiro momento juristas ou ex-constituintes para conferir se a edição do BNB provava uma fraude. Segundo o jurista e professor José de Albuquerque Rocha, a quem consultei na sexta-feira (18), a comprovação só será possível com a análise dos documentos da Constituinte.
Minha avaliação se prende unicamente ao procedimento jornalístico que se chama apuração de informações. É um método obrigatório, no qual se conferem dados obtidos com diferentes fontes. Garante-se por ele, no mínimo, o direito do leitor a um conteúdo fiel. À exatidão, enfim. Isso, definitivamente, não foi feito pelo O Povo. Sequer se observou o mais elementar: que as medidas provisórias existiam na edição do BNB, no artigo 62. Há outras falhas, que não citei na coluna passada. Em um trecho do dia 10 escreveu-se que ?Desde a promulgação do texto talhado ao sabor das circunstâncias de Bernardo Cabral, já entraram em vigor nada mais, nada menos que 131 Medidas Provisórias(grifo meu). Como todos sabemos, é através desse instrumento ?constitucional? de conotação claramente autoritária que os sucessivos presidentes da República pós-Constituição de 1988 (…) vêm governando o País?. O correto é que Sarney editou 125 e reeditou 22 (ao todo, 147); Collor, em dois anos de mandato, editou 87 e reeditou 73 (total de 160); Itamar Franco, em mais dois anos, editou 141 e reeditou 364 (soma de 505); e FHC editou 319 e reeditou 5.035, perfazendo 5.354 medidas em duas gestões. Entre estas está a do Plano Real, depois tornada lei. Lula, só em seus primeiros cem dias, editou 16. Resumo: não foram 131 MPs, mas, pelo menos, 6.132 ? 688 edições e 5.444 reedições.
Mais: o que se classificou como ?instrumento ?constitucional? de conotação claramente autoritária? tem correspondentes até nas democracias mais avançadas do mundo, como a da Suíça. Com as MPs, que têm força legal, o chefe da Nação pode adotar ações em casos de relevância ou urgência sem a necessidade de aprovação prévia do Legislativo. Só após serem baixadas é que o parlamento as analisa, podendo rejeitá-las ou convertê-las em lei. Não sendo incorporadas às normas que regem o País em prazos estabelecidos (no Brasil, em 30 dias), perdem a eficácia. Aqui, pode-se reeditá-las. Se são usadas abusivamente, a discussão é outra. Repito: meu interesse é a qualidade da informação levada ao leitor.
Quarta-feira, conversei com o professor Paulo Bonavides, um dos mais respeitados constitucionalistas do Brasil e do mundo. Em 1988, ele foi convidado a compor a Comissão de Notáveis que auxiliaria o Congresso na feitura da Constituição ? convite que declinou. Se Bonavides tivesse sido ouvido antes pelo jornal, do qual é Conselheiro Editorial, o leitor saberia que sua avaliação de expert é a de que ?do ponto de vista jurídico, vale a Constituição promulgada?, que são ?irrelevantes? as teses de fraude e, ainda, que considera uma ?conspiração articulada contra a Constituição a revelação tardia? de que houve acréscimos. O professor me disse que foi entrevistado na última semana pelo O Povo. Até sábado a matéria, que merece leitura atenta, n&atilatilde;o havia sido publicada.
Ao publicar anúncio inspirado na refração da autocrítica e no auto-elogio, O Povo cometeu um deslize ético contra o leitor e o erro de tentar suplantar a crítica do ombudsman. Outro ponto grave não foi só a veiculação de informações erradas ou mal apuradas, mas a vã tentativa de sustentá-las com a simples menção do jornal em uma revista nacional. Aliás, observe-se: a ?Folha de S. Paulo? publicou matéria domingo, 19, com o seguinte título: ?NE teve versão da Constituição sem mudança?. Apesar de não citar O Povo, usa informações semelhantes sobre o artigo 59. Em nenhum momento o jornal paulista se precipitou, não considerando aquilo como prova material de fraude. E, mais atento do que O Povo, fez referência à existência do artigo 62."