DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"Jogo de sombras", copyright Diário de Notícias, 26/10/03
"A divulgação de escutas telefónicas, em segredo de justiça, tem levado alguns jornalistas a reflectir sobre o seu papel nesse processo. Entre as opiniões surgidas, algumas veiculam argumentos simplistas como ?o problema não é de quem divulga? ou os jornalistas limitam-se a divulgar o que ?cai em catadupa na redacção? (Sic-Notícias, 20/10). Afigura-se, contudo, redutor, limitar o papel dos jornalistas a meros veículos de informação, porque eles não se limitam a receber e divulgar informação. Consciente ou inconscientemente, dão-lhe sentido. Da interacção que estabelecem com as suas fontes emerge um determinado tipo de conhecimento que se torna predominante no seio da sociedade. Os jornalistas não são os guardiões do segredo de justiça nem é suposto que denunciem as fontes que lhes fornecem informação confidencial. Mas nem tudo o que ?cai? numa redacção é susceptível de ser publicado. Existem regras na selecção da informação, entre as quais, saber se o que ?cai na redacção? possui relevância e interesse público; se o jornalista conhece o contexto em que a informação é produzida; se a fonte é fiável e o anonimato justificável e se a proveniência da informação é legítima. São, sem dúvida, decisões difíceis. Mas, a mais difícil, é decidir se determinada informação confidencial possui interesse público para ser publicada. E mais difícil se torna se essa informação atinge o bom nome de um dirigente político ? já que a sua acção depende da avaliação que dele fazem os cidadãos com base, principalmente, na imagem que os media dele constroem. E, se a informação resulta de violação da lei, o jornalista não pode deixar de ponderar, também, esse elemento. Pode perguntar-se se as escutas telefónicas publicadas nas últimas semanas possuem interesse público. A avaliar pela ampla cobertura que mereceram, os jornalistas terão considerado que possuem. Ora, uma vez que um tribunal superior as considerou irrelevantes para o processo e que os políticos escutados não estão acusados nem são alvo de queixa, o interesse público das escutas residirá noutros aspectos que não os de natureza judiciária. Importará, então, ver quais. Do ponto de vista da justiça, uma vez que as escutas foram consideradas inócuas para o processo, a sua divulgação presta-se a várias interpretações, por exemplo, tratar-se de disputas internas no seio da justiça. É, contudo, legítimo, interpretá-las, também, como destinando-se a obter efeitos políticos, uma vez que os divulgadores não podiam ignorar que elas atingiriam a imagem pública dos escutados. Em qualquer das hipóteses, subsiste a questão de saber qual o objectivo da divulgação dessas escutas. Do ponto de vista jornalístico, a questão apresenta-se de maneira diferente. De facto, não sendo suposto que os jornalistas se sobreponham a decisões judiciais criando culpados que a justiça não aponta, o interesse público das escutas terá residido no facto de considerarem que essas escutas revelam aspectos de caracter dos políticos escutados, que devem ser conhecidos dos portugueses. Por outro lado, as circunstâncias em que as escutas foram realizadas ? uma conversa supostamente privada entre dirigentes partidários, ocorrida num momento difícil e crispado da sua vida política ? não terão constituído, para os jornalistas, uma questão a ponderar na decisão de as publicar. No que respeita ao DN, o editorial de 19/10 permite compreender o interesse do jornal na publicação das escutas. Entre os ?aspectos relevantes? do seu conteúdo, para além da ?pressão sobre o poder judicial?, o editorialista salienta o ?desprezo que o líder do principal partido da oposição confessa ter pelo segredo de justiça?, a seu ver, ?um factor a ter em conta quando os portugueses forem chamados a escolher um novo governo e um novo primeiro-ministro?. Dizer, pois, como tem sido dito, que as escutas e o processo Casa Pia pertencem ao exclusivo domínio do judiciário, constitui uma contradição. De facto, é a condição política dos escutados que motiva a divulgação das escutas. O carácter político dessa divulgação está implícito no reconhecimento, por parte de altos responsáveis do poder judicial, do poder político e de jornalistas, de que existem ?fugas estratégicas de informação?. Basta, aliás, acompanhar as notícias para verificar que existe uma luta surda entre as partes intervenientes no processo, que envolve magistraturas, advogados, políticos, jornalistas e até responsáveis pelo acompanhamento das crianças. Como aconteceu noutros processos, embora em menor escala, o jornalismo tem sido o terreno-chave desse jogo de sombras, baseado no artifício e no engano, em que as fontes usam o poder de esconder e de libertar informação. Esse jogo não seria possível sem o concurso dos jornalistas. As notícias que constroem, mesmo duvidosas, são cruciais para a construção de uma determinada visão dos acontecimentos. A ?verdade? resultante desse jogo é a ?verdade? que interessa a cada parte."