Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Maurício Stycer

GUERRA NA MÍDIA ESPORTIVA

“Anúncios X Notícias”, copyright Carta Capital, 10/11/03

“É mais, bem mais, que uma dança das cadeiras no mundo do jornalismo esportivo na televisão. A mudança ocorrida nos últimos dias no comando de três dos principais programas do gênero, em São Paulo, é um reflexo evidente do atual estado de coisas do futebol brasileiro. É uma história de troca de gentilezas em público, intrigas e ameaças nos camarins, boatos espalhados pela internet, dossiês para a imprensa e processos judiciais.

O barraco em curso no mundo das mesas-redondas não difere muito do que vem ocorrendo em outros ambientes e em outras esferas, sempre opondo os que sonham modernizar aos que se aferram em manter tudo como está no esporte nacional.

Observe, apenas para citar outros dois episódios recentes deste drama, a eleição para a presidência do Vasco, realizada na terça-feira 4, com a vitória, entre socos e pontapés, de Eurico Miranda sobre Roberto Dinamite, e a confusão em que se vê enredado o ministro dos Esportes, Agnelo Queiroz, com o Comitê Olímpico Brasileiro, de Carlos Arthur Nuzman.

Esconde-se, por trás do troca-troca nos programas esportivos da tevê, discussões que, no fundo, envolvem o próprio futuro do futebol brasileiro. O aspecto mais evidente da trama é o debate em torno do papel do jornalista e do jornalismo esportivo num ambiente que, notoriamente, está caduco, para não dizer apodrecido.

É possível praticar jornalismo independente, de qualidade, exercendo simultaneamente a função de garoto-propaganda? É possível entrevistar um cartola retrógrado e ao mesmo tempo tecer loas a uma lâmina de barbear, sem alterar o tom e a entonação da voz?

Como noticiar que um determinado empresário foi preso por estelionato se minutos antes o jornalista deu um testemunho, no ar, a respeito das qualidades dos produtos da empresa que pertence ao acusado? Dá para acreditar nas informações de jornalistas que elogiam sapatos, latas de tintas, planos de saúde e palhas de aço com a mesma desenvoltura com que comentam os lances polêmicos da rodada?

Depois de quatro anos, Juca Kfouri deixou o Bola na Rede, da RedeTV!, por continuar se recusando a fazer anúncios testemunhais e merchandising durante o seu programa. Foi imediatamente substituído por Roberto Avallone, recém-demitido da TV Gazeta, onde apresentava o programa Mesa Redonda. Avallone é famoso, entre outros, pelo desprendimento em falar de sapatos, amortecedores, pregos, parafusos e cerveja em meio aos gols da rodada.

Avallone será substituído no Mesa Redonda por Flavio Prado, que estava comandando o Cartão Verde, na TV Cultura. Prado, um jornalista conhecido pelo comedimento com que falava de produtos comerciais na televisão, agora se diz disposto a abraçar o merchandising por não ver outra opção no horizonte. Ele será substituído no Cartão Verde justamente por Kfouri, que prossegue com seu compromisso de não misturar informação com publicidade em hipótese alguma.

A franqueza com que Amilcare Dallevo Jr., presidente da RedeTV!, comunicou a Juca Kfouri a necessidade de rifá-lo do comando do Bola na Rede para, no lugar, colocar um apresentador disposto a ajudar a casa a faturar com merchandising e testemunhais espantou apenas os que não vêm acompanhando com atenção as movimentações nesse ambiente.

Disponível no mercado havia menos de um mês, Roberto Avallone acertou a sua entrada na RedeTV! e, em seguida, viajou, segundo informações em sua casa. Não esteve disponível, na primeira semana de novembro, para comentar a principal fofoca que envolve a sua negociação com o dono da emissora que sucedeu à falecida Rede Manchete.

O jornalista Milton Neves, apresentador de um programa esportivo na televisão, o Terceiro Tempo, na Rede Record, entre outras mil e uma atividades, apressou-se em escrever em seu site, na internet, a respeito dessa negociação, tornando público um assunto que até então circulava apenas entre jornalistas:

— E aí o telefone toca. Primeiro, era o Daniel Castro, da Folha, e, depois, Antero Greco, do Estadão. Além do Chico Lang e de meninas dos sites de fofoca. Parecia que acenderam um rastilho de pólvora. A pergunta era mais ou menos a mesma: ?Você comprou o espaço do Bola na Rede da RedeTV!, trocando os apresentadores e colocando o Roberto Avallone?

Ao que o próprio jornalista responde, na seqüência:

– Isso é chute, maldade ou tentativa de desvio do foco da questão envolvendo um assunto interno, funcional e estritamente particular de uma empresa independente.

Ao leitor não totalmente familiarizado, convém explicar que este é um ambiente de jogo pesado, mas dado a algumas sutilezas. Por exemplo, um determinado jornal que adota uma posição crítica em relação a determinada confederação esportiva raramente, para não dizer nunca, consegue anúncios dos patrocinadores dessa entidade.

Dito isso, é possível imaginar que o inverso também ocorre. Anunciantes podem migrar, ou afluir, para determinado veículo em função da promessa de simpatia ou generosidade com que os seus interesses serão tratados no ar, ou impressos.

Milton Neves é hoje, do ponto de vista comercial, o mais bem-sucedido jornalista esportivo brasileiro. Para descobrir qual é o erro da frase anterior, basta assistir ao Terceiro Tempo. A simples abertura do programa exibido no domingo 2 dá uma idéia do seu poder.

De cara, Neves estimula a platéia, que assiste ao programa, ao vivo, no estúdio, a gritar com ele o slogan de uma marca de cerveja. E, assim, cem pessoas gritam, atendendo ao apelo do apresentador: ?Experimenta, experimenta, experimenta!?

Na seqüência, o jornalista cita o nome de outros três patrocinadores do programa (um fabricante de palha de aço, um de lâminas de barbear e um de tintas), anda um pouco pelo palco e se detém diante de um jogador de futebol, sentado, com o rosto coberto de espuma de barba. ?Agora, vamos fazer a barba do povo?, anuncia. ?É assim que o Brasil faz a barba.? Um minuto depois, Milton Neves está oferecendo kits dos seus patrocinadores à platéia, que aplaude e grita animadamente.

O jornalista está no ar há sete minutos e convida o espectador, em casa, a responder a uma pergunta sobre as eleições no Vasco pelo telefone (R$ 0,27 a ligação). Em seguida, avisa: ?Alô torcedor, vou falar do seu carro…? E segue-se um testemunho de Milton Neves sobre a eficácia da assistência técnica de uma montadora. Aí, então, depois de dez minutos de programa, ocorre um intervalo (o break, como dizem) comercial.

Uma pessoa que, pela primeira vez na vida, tenha assistido ao Terceiro Tempo, e não conhecia Milton Neves, pelos dez minutos iniciais afirmaria, com certeza, que se trata de um programa de venda de produtos, tipo ShopTour ou ShopTime.

Neves também é contratado da Rádio Jovem Pan, escreve no jornal Agora, na revista Placar e apresenta um programa na TV Assembléia, em São Paulo. Além disso, é dono de uma agência de publicidade, chamada Terceiro Tempo.

Está processando, na Justiça, vários colegas ilustres, como José Trajano, da ESPN Brasil, e Jorge Kajuru, da TV Bandeirantes. Seu mais recente embate é com Juca Kfouri. Todas as brigas, de certa forma, estão relacionadas a críticas feitas a Neves pela mistura que faz de jornalismo com propaganda. ?Isso é uma coisa que eu defino como patrulha, além de maldade?, diz Milton Neves.

Este é um tema que não admite meios-tons. Além da defesa apaixonada que Neves faz de seu ofício, CartaCapital traz também os depoimentos, a favor do procedimento, de outros dois experientes jornalistas, Flavio Prado e Chico Lang. Notório adepto, Roberto Avallone, procurado, não foi localizado pela revista.

Outro testemunho muito favorável ao uso de merchandising em programas esportivos foi dado, no ar, pelo jornalista Edgard Soares, apresentador do programa Estação Futebol. Soares apresenta a atração, que estreou na segunda-feira 3, na Rede Vida, um canal católico, informando abertamente que terá espaço para merchandising, ?com dignidade?.

O apresentador, garantiu ele, não vai nem mudar o tom de voz ao anunciar produtos em meio aos debates esportivos. Estação Futebol conta com a participação de Juarez Soares, irmão de Edgard, Dalmo Pessoa, Orlando Duarte e Damião Garcia, este último proprietário da Kalunga, uma rede de papelarias.

Quem quiser conhecer melhor Edgard Soares deve acessar o site Futebol Interior (www.futebolinterior.com.br), no qual ele pontifica como colunista. Um de seus mais recentes artigos, sobre José Eduardo Farah, intitula-se: Farah deixa o futebol. Para entrar para a história. Pano rápido.

A confusão entre jornalismo e publicidade atingiu tal ponto nos programas esportivos que a MTV brasileira criou uma atração destinada a parodiar a situação. Rock & Gol, apresentado por Paulo Bonfá e Marco Bianchi, ri dos trejeitos dos ?apresentadores-camelôs? e da própria noção de merchandising. Explica Zico Góes, diretor de programação da MTV:

– Ao pensar numa paródia de um programa de futebol, era natural que aparecessem elementos característicos da mesa-redonda, e o merchandising é muito característico. Você se inspira no Avallone, que pára uma discussão sobre futebol para falar de um calçado.

Ao longo do programa, Bonfá e Bianchi comem e alardeiam as qualidades de um amendoim da marca ?joãoponês?, fictícia, e emendam na propaganda de uma batata frita real. A brincadeira deu tão certo que a emissora chegou a ser sondada por uma empresa sobre a possibilidade de trocar o ?joãoponês? por um amendoim de verdade. E aí, o pragmatismo falou mais alto, explica Góes:

– Não foi muito à frente, mas confesso que se tivesse uma empresa que falasse: ?Em vez de joãoponês vocês fazem com o meu?, e se a gente pudesse continuar tirando sarro, eu toparia.

A visão oposta a essa é a da defesa intransigente, sem meio-termo, sem exceções, da separação clara entre o que é jornalismo e o que é publicidade. É a posição que, além de Juca Kfouri, adotam publicamente figuras como Armando Nogueira, José Trajano e Jorge Kajuru, os três atuando, de formas diferentes, no jornalismo esportivo da televisão brasileira (todos entrevistados ao longo desta edição).

Também é a posição que defende uma figura especial nesse quadro, o ex-jogador, médico e hoje analista de futebol Tostão, colunista da Folha de S.Paulo. Ele lembra que um dos motivos que o levaram a desistir de comentar partidas de futebol na televisão foi o constrangimento diante das mensagens comerciais que seus colegas falavam durante as transmissões.

?É curioso que isso existe, e ninguém fala nada, também no rádio. É uma coisa a ser discutida?, observa Tostão. ?É demais. Cada frase, uma propaganda. Acho isso ruim. Não devia existir no rádio?, defende.

Heródoto Barbeiro, respeitado jornalista da Rádio CBN, dá a sua opinião:

– Há conflito de interesses quando o jornalista faz ou publicidade ou merchandising ou testemunhal. Jornalista não vende nada e publicitário não faz jornalismo. Tem que ficar bem claro dentro da empresa o muro que separa o departamento comercial do departamento editorial, sem o que não dá para fazer jornalismo isento.

Sem a pretensão de avançar por esse terreno, cumpre registrar que, no mundo do rádio, a confusão entre jornalismo e publicidade parece ainda maior do que na televisão. E não apenas no segmento do jornalismo esportivo. Jornalistas de outras áreas também fazem testemunhal, publicidade, falam o slogan do patrocinador no ar e recebem por isso.

Em grandes rádios de São Paulo, os repórteres anunciam o slogan dos patrocinadores dos programas ao final da notícia que narram. Jornalistas conhecidos, âncoras de programas, também. Há até casos em que os âncoras vendem publicidade e a manutenção do programa no ar depende da venda de anúncios para o horário.

Um caso peculiar nessa disputa é o da Rede Globo. A emissora tem adotado nos últimos anos posições ambivalentes nos grandes embates travados no âmbito da política esportiva – às vezes, dando a impressão de que aposta na renovação, às vezes, sugerindo estar ao lado do atraso.

Na questão do merchandising em programas jornalísticos ou praticado por jornalistas, a política é clara. ?É norma da casa. Não pode participar?, diz Luís Erlanger, diretor de Central Globo de Comunicação. Como lembra Armando Nogueira em entrevista, é uma norma que remonta ao tempo em que ele dirigia o departamento de jornalismo, mas que foi reforçada em 1995, quando Evandro Carlos de Andrade assumiu o cargo.

Na época, a emissora autorizava que alguns jornalistas e radialistas emprestassem a voz para mensagens publicitárias. Isso também acabou. ?Em alguns casos, na época, houve até uma composição salarial. Foram refeitos contratos. Achamos que eles são um patrimônio?, diz Erlanger.

É verdade que há exceções à regra. Galvão Bueno e Arnaldo Cezar Coelho já fizeram merchandising explícito para um restaurante, em São Paulo, durante o programa Bem Amigos, no canal pago SporTV, da Globo. Mas, de um modo geral, a regra é clara, diz Erlanger:

– Imagine um jornalista anunciando um produto que amanhã é objeto do jornalismo da casa. É inconcebível! Ele está anunciando um apartamento e amanhã a gente descobre que o financiamento é furado. É um conflito de interesses. É bom frisar que não era uma prática generalizada. Esse era um problema mais localizado em esportes e não foi uma coisa muito traumática. Não é que houvesse uma multidão de jornalistas que fizesse isso. Na maioria dos casos, o jornalista já achava que era incompatível.

Confrontado com a posição da Globo, Milton Neves reage à sua maneira:

– Parabéns para a Globo. A Rádio Joven Pan não pensa assim, a Rádio Bandeirantes não pensa assim, a TV Record não pensa assim…

José Trajano teme que os jornalistas que se posicionam contra o merchandising e contra a postura de Milton Neves e companhia estejam ficando em minoria. E faz um alerta com o qual se pretende encerrar esse capítulo da história:

– Eu tenho medo de que isso se alastre cada vez mais e que as novas gerações achem normal, já saiam da faculdade tendo como referência esse tipo de coisa.”