O POVO
"O erro na manchete", copyright O Povo, 19/10/03
"A manchete do O Povo do último dia 10, sexta-feira, foi publicada com erro: ?Comprovada fraude na Constituição?. A notícia até subsidiou matéria da revista Época da semana passada, intitulada ?A prova dos abusos?. O jornal, na coluna Política assinada pelo jornalista Fábio Campos, informava que a Carta Constitucional de 1988 foi alterada após a promulgação e antes da publicação da versão final. Em edição lançada pioneiramente pelo Banco do Nordeste do Brasil, o artigo 59 não citava medidas provisórias ? sucessoras dos decretos leis dos governos militares ? como parte do processo legislativo. As demais edições as incluíam. Isso seria uma prova absoluta de fraude. No fim da chamada da capa, uma observação: ?Na comparação dos dois textos, existe adulteração clara em relação às medidas provisórias, que não estavam incluídas na versão original?. Errado: a edição trazia as MPs sim, no artigo 62. O jornal não notou.
Na coluna, as seguintes conclusões, todas desconhecendo o artigo 62 ? os grifos são meus: 1) ?As Medidas Provisórias não são previstas na Constituição impressa pelo BNB. Isso porque essa versão publicada no bairro do Passaré é fiel ao que foi aprovado ao longo de todo o processo constituinte. E o texto promulgado não o é?; 2) ?(…) o texto impresso pelo BNB possuía uma diferença fundamental em relação ao texto que estava em vigor. Eram as Medidas Provisórias?; 3) ?(…) já entraram em vigor nada mais, nada menos que 131 Medidas Provisórias. Como todos sabemos, é através desse instrumento constitucional? de conotação claramente autoritária que os sucessivos presidentes da República pós-Constituição de 1988 (…) vêm governando o País. Ao caráter autoritário das Medidas Provisórias, podemos agora agregar a condição de espúria. Um item que jamais foi votado por deputados e senadores, e que entrou na Constituição da mesma forma que mercadorias contrabandeadas ultrapassam nossas fronteiras, rege a vida dos brasileiros há exatos 15 anos?.
Mesmo com a importância do tema para a sociedade e especificamente para o jornal, já que era a manchete, a coluna não ouviu nenhum jurista e nenhum constituinte de 1988. Do contrário, seria possível evitar o erro de escrever que as MPs não eram previstas na Constituição. Só na edição de sábado, 11, os ex-deputados federais Firmo de Castro e Ubiratan Aguiar e o ex-senador, hoje deputado federal, Mauro Benevides se manifestaram sobre o artigo 62. A coluna Política também o fez. Cabe aqui um registro: na avaliação da edição do dia 10, considerei a manchete uma boa escolha ? eu ignorava a existência das medidas no artigo 62 e creditei à falta de espaço a ausência da opinião de quem conhece o assunto. Após explicação de Firmo de Castro e de outros leitores, revi minha análise.
A Chefia da Redação e o autor da coluna discordam dos fatos que expus. Por e-mail, na semana passada, o diretor-executivo da Redação Arlen Medina posicionou-se assim: ?Faço minhas as palavras do colunista: houve fraude no artigo 59 (não votado pelos constituintes de 1988 da forma como hoje está em vigor). Não importa que elas estivessem previstas três artigos adiante ? texto legal tem que ser preciso, sem rasuras e nem emendas?. Na noite de sexta-feira, fui comunicado pelo também diretor-executivo Carlos Ely que aquela era a postura formal de toda a Chefia.
Ainda na sexta, consultei um dos mais respeitados constitucionalistas do Ceará, o juiz aposentado e professor José de Albuquerque Rocha, que também foi ouvido pelo O Povo no dia 11. Perguntei se os elementos apontados na edição do dia 10 seriam conclusivos para provar a fraude na Constituição. Ele disse que não. ?A comprovação de fraude depende de uma investigação empírica dos documentos da Constituinte. Pode-se sustentar a hipótese de fraude, avançar em uma idéia provisória do que teria havido fraude. Mas fraude é um fato, por conseguinte exige comprovação, que só se terá analisando a documentação. Fraude não é idéia, não é opinião, não é juízo de valor?. É o bastante. Além de errar na informação, o jornal se precipitou.
Apuramos mal
O Guia de Redação e Estilo do O Povo é um dos melhores exemplos de normatização de procedimentos da imprensa brasileira, Organizado pelo ex-ombudsman Gibson Antunes, está agora na terceira edição, chancelada pela Fundação Demócrito Rocha. Entre as recomendações que faz, destaco a que diz respeito a notícias plantadas. Eis um trecho: ?Informação dada para atingir certos objetivos com sua divulgação em veículo de comunicação. Cada jornalista deve estar atento às informações que lhes chegam para que não sejam utilizadas em nome de privilégios de pessoas, empresas ou instituições?.
Atentemos agora para as seguintes notas, a primeira publicada na coluna Vertical (sábado, 11), e a segunda na coluna Sonia Pinheiro (sexta, 10).
?Desabafo ? Do leitor Ozires Silva Pena, de Brasília, sobre a vinda da CPI da Prostituição Infantil ao Ceará, noticiada ontem pela Coluna: Isso tudo não passa de holofote para político aparecer. Essas CPIs não dão em nada e só servem para inocentar políticos inescrupulosos envolvidos com desvios até de merenda?.
?Interrogação ? Via e-mail, Oziris da Silva Pena, from RJ, dispara seu missilzinho: Bom dia, Sônia. Responda-me, por favor, o que faz um ?Secretário de Esportes de Sobral??? Com a palavra, Cid Gomes?.
O remetente é o mesmo, embora com o nome grafado de formas diferentes e os locais de origem diversos ? sobre esse detalhe, o editor da Vertical explicou ter errado: em vez de Rio de Janeiro, escreveu Brasília. Também há outra coincidência, não tão explícita: o foco em ações do Partido Popular Socialista (PPS), que tem como nomes mais destacados no Ceará o prefeito de Sobral, Cid Gomes, a senadora Patrícia Saboya, presidente da CPI Mista da Prostituição Infantil, e o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, irmão de Cid.
São óbvias as funções de um secretário de Esportes, questionadas na primeira nota, não importando o tamanho da cidade. Também são incontestáveis o relevo social da CPI da Prostituição Infantil e os avanços obtidos pelas investigações no País. Compará-la à CPI da Merenda Escolar na Assembléia Legislativa do Estado, que inocentou o principal acusado, o deputado Sérgio Benevides (PMDB), mesmo com provas contundentes, é má-fé. Apesar do despropósito da ?interrogação? e do ?desabafo? de Oziris da Silva Pena ou de Ozires Silva Pena, as duas notas foram levadas aos leitores do O Povo. Não foram apurados os objetivos do remetente, não foi ponderado risco de formarem opiniões distorcidas, não se estranhou a agressividade contra ações do setor público relativas a um partido. Só o leitor perdeu."