ENTREVISTA / CLAUDIO TOGNOLLI
“?O jabá nunca foi tão grande?”, copyright Tribuna do Planalto (Goiânia-GO), 2/11/03
“Aos 39 anos, Cláudio Júlio Tognolli é um dos melhores repórteres investigativos do País. Já simulou que era fumante de crack na Praça da Sé para ver como a polícia extorquia. Resolveu se infiltrar em torcidas organizadas durante oito meses para, no fim, descobrir que era a polícia que vendia armas, cocaína e proteção para as torcidas de São Paulo. Usando pesquisas que combinam pessoas investigadas a termos escolhidos aleatoriamente, descobriu que a queda do avião da TAM em 1997 havia sido provocada pela explosão de uma bomba caseira. Um de seus últimos alvos foi o senador Jorge Bornhausen. Tognolli foi o primeiro a noticiar, no sítio do Consultor Jurídico na internet, que o pefelista era investigado pela CPI do Banestado.
Todo esse trabalho, no entanto, tem um preço. Mesmo novo, Tognolli já tem quase 100 processos nas costas. Na e ntrevista a seguir, concedida via e-mail no domingo, 25, o repórter especial da Rádio Jovem Pan, do Consultor Jurídico e professor da USP e da UniFian conta detalhes de sua carreira, reavalia a ?máfia do dendê? cinco anos depois da entrevista concedida a Caros Amigos, prevê que em dez anos a biotecnologia vai comandar as bolsas de valores e, sem perder tempo, diz que prepara um livro sobre história secreta de Polícia Federal. Agora em novembro Tognolli lança seu quarto livro. Falácia Genética: a Ideologia do DNA na Mídia é baseado em sua tese de doutorado em biotecnologia, defendida na USP.
Quais são hoje os maiores lugares-comuns da imprensa brasileira, em termos de linguagem e em termos de notícia?
O maior lugar-comum hoje é dizer que foi encontrado o gene daquilo, o gene disto, que acharam o gene do homicídio, etc. Quando comecei a notar isso, iniciei o meu doutorado em biotecnologia, na USP. Foi defendido em 2002 e sai em livro agora em novembro, pela editora Escrituras, chamado Falácia Genética: a Ideologia do DNA na Mídia. Cada época cria a ideologia de que tem necessidade. Monsieur Carlos Avighi, meu orientador, gosta de lembrar que, após Kennedy, quando se necessitava da idéia da ?Grande Nação?, tudo o que era autoridade local, vilarejo, condado, começava a ser pintado, pelo atalho de Hollywood, com cores sombrias, com ares endemoniados. Ignácio Ramonet fala da febre hollywoodiana, após os escândalos contra o FBI nos anos 60, de trocar o herói policial federal pelo herói ?tira de minorias?. Esse mito foi expressado ad nauseam em seriados como Columbo, Kojak e o recentemente refilmado tira negro Shaft. Ou seja: democracias, mesmo a passadista republicana dos EUA, têm de expressar em seus mitos de autoridade as vontades representativas das minorias. Mesmo que farsescamente. Mesmo que a título de toma-lá-dá-cá. A bola da vez é mostrar que a resposta final está nos genes. Que o corpo humano é transparente. Que as situações são transparentes (reality shows). Que somos sistemas fechados, como computadores. E que nossos genes são como chips de computador.
Por que isso?
Porque em menos de dez anos as empresas que lidam com implementos de biotecnologia estarão movimentando algo como US$ 400 bilh ões por ano. Donc: cai bem, sobretudo ao bolso dessas empresas, a maioria norte-americanas, dizer que a transparência do corpo é a bola da vez. Nos EUA talvez a única voz que impreque contra essa nova ideologia, a da transparência dos genes, seja o geneticista de Harvard Richard Lewontin. Sem fazer a mínima concessão a essa nova febre, Lewontin dispara que ?o preço da metáfora é a eterna vigilância?. Ou seja: vamos pagar um preço, e em dólar, por acreditarmos que a genética é o novo Santo Graal. Bem, já vimos esse filme, com outros atores, em outras épocas. No final da Idade Média, quando o Mercantilismo ainda engatinhava, surgia a arte grotesca, e a noção de que o corpo belo, saudável, era aquele gordo e disforme: afinal, para ter engordado tanto, teve de consumir muito. Era a figura do consumo que surgia, com virulência, e se expressando sob a metáfora do corpo grotesco. O maior estudioso disso com base em Rabelais, o russo Mikhail Bakhtin, também gosta de contar que toda vez que as elites começam a derrocar, saindo de mansinho pela porta dos fundos da história, vão buscar conforto e explicações na biologia. ?É como se os homens dessas épocas desejassem fugir do clima da história, tornado incômodo e frio para eles, e exilar-se no aconchego do lado animal da vida.? Uma análise feita por este repórter em 14 anos de publicações nacionais e estrangeiras mostra que mais de 98% das notícias sobre biotecnologia dão conta de que a resposta final está nos genes. Felizmente, somos maiores do que isso: somos sistemas abertos, como a meteorologia e a economia, de resto imprevisíveis. Corpo não é sistema fechado como computador, nem gene é chip. Mas a bola da vez, a velha-nova ideologia biologista, quer o contrário. Mostra, seja nos reality shows, seja nas notícias de jornal, que nada escapa à transparência: em que tudo o que se pode saber sobre alguém está escrito nos genes. É tragicômico imaginar que, frente esse novo barato, Darwin esteja sapateando de alegria sobre a tumba de muito cientista. Esse é o mais novo chavão, que me incomoda muitíssimo.
Por falar em lugar-comum, vou fazer uma pergunta bem clichê, mas que não dá para não ser feita: como você analisa a atuação da imprensa no caso Tim Lopes?
Acho que não ficou claro se o Tim foi pressionado ou não para fazer aquela reportagem. Levei ano passado o José Louzeiro, um dos maiores escritores deste país, na redação da Caros Amigos. Ele acabara de sair do Instituto do Coração (Incor). Quando perguntado sobre Tim Lopes, polemizou da seguinte forma: por que a Globo pode botar seu sexo debaixo de edredons na TV a cabo, que é paga, e o pobre não pode transar no baile funk? Era a pergunta que ele fazia. A morte do Tim, polêmicas à parte, fez com que fundássemos a Abraji, Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, cujo endereço eletrônico é www.abraji.org.br. O presidente é o Marcelo Beraba, que foi amigo do Tim. Nossa função na Abraji é imensa. Por coincidência, a correlata da Abraji nos EU A, o IRE, (www.ire.org) foi fundada porque assassinaram o jornalista Don Bolles, em Phoenix, em 1975. Sabe em que dia? No dia em que mataram o Tim. Isso é uma sincronicidade dos diabos.
Você já falou aqui do livro sobre a história da ideologia nas ciências e a biotecnologia, cujo título é Falácia Genética: a Ideologia do DNA na Mídia. Explique como é o livro?
Este livro sai agora em novembro, pela editora Escrituras. Em abril sai meu quinto livro com a história secreta de Polícia Federal, pela editora Casa Amarela, que edita a revista Caros Amigos. A obra Falácia Genética: a Ideologia do DNA na imprensa surgiu da idéia de tentar mapear, através das notícias de jornal, qual seria o zeitgeist, o espírito de época, na ciência, mais novidadeiro de nossos dias: o biologismo. Escolhi o título porque uma Falácia Genética é uma linha de ?argumento? onde um defeito percebido na origem de uma reivindicação ou coisa é usado para ser evidência que desacredita a reivindicação ou coisa. Também é uma linha de argumento na qual a origem de uma reivindicação ou coisa é usada para ser evidência para a reivindicação ou coisa. Portanto: a resposta final está nos genes, como tanto tem postulado a mídia – e nisso constitui a falácia a que nos referimos. Acredito que esteja nesse particular o ineditismo a que me propus: tentar mostrar como o espírito de época, carregado pela seta da ciência, veio caminhando nos três últimos séculos até chegar no que chamo de febre biologista. Enfim: por que o cânon da busca da ?verdade do criador? deslocou-se agora para a biotecnologia? Por que falar em novo milênio subjaz a esperanças nos novos avanços da biotecnologia? Vamos tentar demonstrar que a demanda do biologismo é uma demanda, antes de qualquer coisa, do mercado de trabalho cada vez mais seletivo. Enfim: num mundo que se diz globalizado, nunca as causas foram tão particulares. Aumentam os sistemas de análise de produtividade individual. Os Isos medem tudo de perto: como nossas ações particulares podem influenciar os resultados da empresa -mas raramente o contrário. E a febre biologista segue o mesmo caminho: o problema das doenças está nos nossos genes, e não nas condições sociais e de trabalho que modificaram os nossos genes. Cria-se a idéia, sobretudo na mídia, de que mudando as peças dos genes teremos seres sãos e longevos. Seguimos a moda dos técnicos em computação: troca-se o chip, o computador fica bom. Ninguém comenta que somos sistemas abertos, como a meteorologia. Num mundo que cada vez mais necessita de um culpado, achamos um, com o estatuto da ciência chancelando tudo: o problema e a resposta estão no indivíduo, n a sua carga genética. Condições sociais não entram em discussão. O discurso é clivado. Analisando o espírito de época da Renascença, o russo Alexandre Koyré postula ?época em que tudo era possível? – o que significa uma curiosidade sem fronteiras no que chamo de mapeamento: desde o descobrimento da América, à circunavegação da África passando pelo mapeamento do corpo, que sai de De fabrica corporis humani, de Vesalio, às dissecações de Leonardo da Vinci. A ciência da Idade Média via tudo na natureza como algo indissolúvel. Pedaços não explicavam a parte, porque destruir o corpo era destruir sua essência. Notava o poeta Alexander Pope, notório por ter feito discurso aos pés do caixão de Isaac Newton, ?like following life through creatures you dissect/you lose it in the mome nt you detect.? Nada mais social: a ciência, imersa na sociedade, ainda não é capaz de detectar o indivíduo. Só mais à frente, em Darwin, e no capitalismo emergente, a sociedade passa a ser vista como conseqüência, e não causa, das propriedades individuais, nota Lewontin . Hoje a situação muda de figura: só enxergamos o indivíduo, é o que vamos tentar demonstrar. Genes são vendidos como sistemas fechados, como peças de computador. Postulo que, do mapeamento do mundo, passamos para a transformação dele como a undécima moda da seta do descobrimento. Nesse sentido Subirats aponta que a máquina desempenhou no início do século XX o mesmo papel que a natureza no século XVIII ou o gênio no período romântico: era o verdadeiro sujeito da história. Hoje, o gene é o sujeito da história. A imprensa coloca a resposta final dos geneticistas.
A propósito, como você avalia a cobertura dos transgênicos pela imprensa brasileira?
Vai vencer o lobby da Monsanto. Pelos mesmos motivos que expliquei acima: a biotecnologia é quem vai comandar as bolsas de valores em dez anos. O traficante Marcinho VP foi morto em julho, no presídio de Bangu 3, no Rio de Janeiro. A polícia do Rio levantou a hipótese de que o livro Abusado, de Caco Barcelos, teria revoltado a cúpula do Comando Vermelho e provocado o assassinato, até hoje não esclarecido.
Como você viu essa história?
Acho o Caco o melhor repórter do Brasil. Fiz para ele a pesquisa do banco de dados que gerou o Rota 66. Ele fez o prefácio do meu livro O Século do Crime, que ganhou o prêmio Jabuti 1997. Tenho aqui um troféu: o livro Abusado, e na dedicatória o Caco escreve ?Você é minha maior influência?. Isso eu vou mandar guardar num cristal, é a melhor coisa que ouvi na minha vida profissional. Acho que o livro do Caco tem uma parte de jornalismo, do melhor, e uma parte romanceada, no estilo que os franceses chamam de roman à clef, com nomes trocados. Por que matar alguém a partir de um livro que também tem um pouco de ficção? Só pode ter vindo de cabeça de bandido matar por causa disso.
Você disse uma vez que quem mandava na Veja era Antonio Carlos Magalhães, mas que ele deixou de mandar com a saída do jornalista José Roberto Guzzo da redação da revista. Mas, mesmo depois de Guzzo, ACM não continuou forte? Aquele episódio da briga Jader X ACM, que colocou a Veja contra a Istoé, não foi uma prova que esse poder ainda permaneceu?
Claro que continua forte lá na Veja. Quem ia saindo da direção passava o bastão do ACM pro próximo diretor da revista. O ACM voltou a reinar na Veja depois que a revista ficou pê da vida, alias como todo o resto da imprensa, pelo fato de o procurador Luiz Francisco de Souza ter dado a fita para a Istoé.
É verdade que, se precisar, você não preserva as fontes?
Deixo claro: adoro ficar amigo de fontes. Mas para manter a amizade você precisa deixar claro que quando a fonte amiga te fala algo de interesse público, você vai publicar. Porque a ética do jornalista deve ser como a do médico, uma ética conseqüencial: a conseqüência última do médico é salvar vidas e a do jornalista é prestar informações de interesse público. O maior perito deste País, o dr. Nelson Massini, o homem do caso Mengele, Chico Mendes, PC Farias, etc, é muito meu amigo. Em 1997 fomos jantar e ele me contou que a PF estava reabrindo o caso PC e que ele seria o novo perito. Contou num jantar, informalmente. Eu na hora saí da mesa, disse que ia ao banheiro e mandei a história na hora pro meu chefe, o então diretor de redação do Jornal da Tarde, o Leão Serva. Deu tempo de pôr na página. Foi um rombo. O Massini ficou muito bravo comigo. Somos muito amigos até hoje. Eu não guardo informação de interesse público. Qual grande reportagem falta ser feita hoje no Brasil? Tirar um aluno da faculdade. Infiltrá-lo por três anos no narcotráfico ou na Igreja Universal, até virar mafioso do morro ou pastor. E contar a história. ?Temos de lutar contra o politicamente correto? Pouco antes de morrer, o sociólogo francês Pierre Bourdieu dizia que muitos debates travados na mídia pouco contribuíam pois eram feitos com muito senso de urgência. Isso, segundo ele, inundava de idéias feitas um debate já pobre, o que prejudica o trabalho intelectual.
É uma crítica de intelectual que não entende o funcionamento do jornalismo ou ele tem razão?
Bourdieu tem razão. Na imprensa, na mídia, o agora é o clímax do tempo. Não se fala em futuro, não se pensa no passado. Necessariamente, o agora não precisa ser o clímax do tempo. O passado era o clímax do tempo para Proust, o futuro era o clímax do tempo para Orwell e Ray Bradburry. Mesmo assim, Bourdieu erra feio: porque o Alberto Dines pensa a mídia como ninguém e faz textos geniais around the clock, contra o relógio.
Você já disse que o politicamente correto é a praga da pós-modernidade, sendo o fim do humor e da ironia. Como parece uma tarefa inglória lutar contra o politicamente correto, é um processo sem volta?
Temos de lutar contra o politicamente correto. Como Millôr faz. O politicamente correto é o novo realismo socialista, é a nova teoria do arco reflexo de que tanto gostavam os marxistas mecanicistas. Mas não é um processo sem volta. Em 1997 o Jotabê Medeiros, do Estadão, o melhor repórter de artes e espetáculos deste país, me arrumou uma exclusiva com o Jim Davies, pai do Garfield, que fiz pro Jornal da Tarde. Perguntei pra ele o mesmo que você me pergunta. Ele disse que o humor nasce da diferença. Se fôssemos iguais, não haveria humor. Eis uma luta que vale ser levada à frente: acabar com o politicamente correto, que é uma espécie de mea-culpa dos norte-americanos, que são os reais criadores do termo fundamentalismo, e que usam o politicamente correto como uma forma de evicção de suas culpas.
Quando você trabalhou na Folha, ficou oito meses em uma torcida organizada. O que mais te assustou lá?
Na época, 1993, fiquei assustado com a polícia, que satanizava os torcedores para o povão, mas na prática, na época, vendia armas, cocaína e proteção para boa parte das torcidas de São Paulo.
Ter fumado crack na Praça da Sé só para ver como a polícia extorquia vale mais como lição de vida ou como jornalismo?
Eu não fumei. Botei a coisa na boca quando um malucão, que estava na Praça da Sé comigo, começou a ver coisas de tão louco que estava, e viu numa camiseta que eu usava um símbolo da polícia e começou a gritar pros outros malucos que deveriam todos me pegar porque eu era tira. Então botei aquilo na boca e falei ?Tira faz isso?? Aí ele se acalmou. Se tivesse gosto de morango, eu teria provado, dentro dos preceitos de se viver o que está em volta para se fazer o verdadeiro jornalismo Gonzo, fundado pelo Hunter S. Thompson, e cuja pagina é www.gonzo.org. Eu fui ali cumprir uma pauta que me pediram. Achei que valia a pena, porque era uma reportagem de denúncia. E fiz o que fiz.
Você pretende voltar para o mundo da música, como nos tempos de RPM?
Eu estudo muito música. Ainda com meu mestre Marcus Rampazzo, com quem tenho aulas há 25 anos. Sou muito amigo do Supla, fui eu quem o redescobriu numa reportagem na Folha de S.Paulo, em 1999, quando ele voltou de NY. Eventualmente converso com o Paulo Ricardo, como aconteceu semana passada. Eu estava jantando com meu amigão Rui Mendes, o maior fotógrafo de rock deste país, aí o Paulo ligou. Conversamos sobre loops e efeitos. Não me considero mais um guitarrista. Sou um looper, gosto agora de música trance, gosto de guitarras sintetizadas, e as coloco num efeito que custa uma fortuna, chamado Eventide Ultra Harmonizer, que tem mais de 600 tipos de loops diferentes. Eu adoraria ter tempo para ter uma banda que misturasse essas coisas com MPB, embora eu goste ainda muito do Steve Hackett, ex-guitarrista do Gênesis, a ponto de ter uma capa de disco dele tatuada nas minhas costas.
?Caetano e Gil são anjos?
Você já denunciou a máfia do Dendê, que seria feita por aqueles músicos que vivem elogiando Antonio Carlos Magalhães. Essa suposta máfia está se fortalecendo, enfraquecendo ou apenas se adaptando aos novos tempos?
Quando dei a entrevista à Caros Amigos, em março de 1998, a situação era essa que você menciona. Não tenho nada contra Caetano ou Gil. Acho os dois geniais, como músicos. Como diria o português de padaria, quem não tem competência não se estabelece, e é por isso que os dois brilham tanto: são fora-de-série como artistas. Mas temos de separar o homem da obra. Marx escreveu muito pouco sobre estética. Deixou as Cartas a Madame Harkness. Era uma senhora fã do advogado Lassalle, um neo-marxista famoso, e que acabou morrendo num duelo por uma mulher, se não me falha a memória. Marx odiou as peças do Lassalle, que ele viu como libelos marxistas, chatos de se ver. Marx falava que para produzir algo marxista você não precisava ser marxista. E escreveu para a Madame Harkness dizendo que ele adorava Balzac, que era um conservador, mas suas peças eram ?libertárias?. Eu lembro de alguns casos: Arthur Schopenhauer, de resto o filósofo predileto do Machado de Assis e do Einstein. Ele escreveu livros libertários. Mas chegou a emprestar uma luneta para um fiscal prussiano poder mirar sua arma na cabeça de um revolucionário. Fez isso enquanto escrevia sua obra máxima, O Mundo Como Vontade e Representação. Jorge Luis Borges, o bruxo da Calle Maipu, escreveu uma obra libertária mas era pessoalmente um lixo político: deixou-se encantar pelo militares argentinos e diz-se que não levou o Nobel por ter dito que a única contribuição da África para a cultura ocidental foi ? a escravidão e os ritmos lascivos?, frase aliás mal copiada pelo Paulo Francis, que falava que um compasso de qualquer sinfonia do Mozart dera mais para a cultura ocidental do que a história de toda a cultura da África. Meu ponto é o do Marx: devemos separar o homem da obra. O Caetano é um cara genial, mas politicamente é um ACM de saias. Quando dei aquela entrevista, eu tinha entalados na garganta alguns fatos: como ter, como repórter especial de um jornal (portanto um cargo de confiança), tido de fazer algumas reportagens encomendadas pelo Gil e pelo Caetano. Mas estavam atuando em legítimo lobby, que aliás não é crime. Mas, para um purista como eu, não caía bem ver eles posando de vestais, publicamente, e nos bastidores fazendo lobbies. A máfia do dendê me gerou problemas, depois daquela entrevista, bem indiretos, mas gerou, e estou falando de emprego. Mas também gerou bons frutos, como uma investigação intitulada No Rastro da Máfia do Dendê, feita por um aluno meu da USP, o Gustavo Martins, e que era um trabalho de conclusão de curso. A íntegra dessa investigação está no meu site: www.tognolli.com (sem o br mesmo). Hoje a máfia são várias máfias: o jabaculê nunca foi tão grande. Caetano e Gil são pouca coisa perto do que se faz hoje. Diria que são anjos.
E o Gilberto Gil agora no Ministério da Cultura? Como você vê isso?
Ótimo. Só de ter colocado na representação do Ministério da Cultura, no Rio, o genial Sergio Sá Leitão, já esta de parabéns.
Essa máfia ainda é forte nas redações de jornal?
Acho que não. Ela murchou à irrelevância face outras máfias, sobretudo de novas bandas e cantores, que fazem coisas que Caetano e Gil jamais fariam: desde mandar cocaína pra maus jornalistas, emprestar casas, mulheres, carros, fins de semana na praia, etc, para obter influencia nas críticas, e espaço dos editores. O engraçado é que muito crítico de artes e espetáculos, de 1998 para cá, foi virando também autor de livro, compositor, promoter. E montou um cordão sanitário de autoproteção copiado da máfia do dendê: há críticos hoje que foram repórteres de autores que antigamente foram seus editores. E retribuem os favores dos antigos chefes, hoje autores, com críticas elogiosas, sem contar pro leitor que são amigos. Estudei violão clássico, composição com o maestro Hans Joachim Koellreutter, o mestre do Tom Jobim. Morro de vontade de sair por aí tocando: mas prefiro morrer de vontade, jamais subirei num palco e pedirei genuflexamente, como se faz por aí, ?por favor olhem para mim, vejam eu tocando, escrevam bem de mim!!!? O Beethoven dizia ?cuidado com os poetas, que eles gostam de lantejoulas?: tô fora de querer ser artista. Gosto do heavy metal social: tenho quase cem processos e o último veio no dia 17 de outubro, que está sendo movido contra mim pelo presidente nacional do PFL, senador Jorge Bornhausen, por eu ter sido o primeiro a noticiar, no sítio do Consultor Jurídico, que ele era investigado pela CPI do Banestado, aquela da lavagem de US$ 35 bilhões.
Independente da qualidade, você não acha que houve excesso de espaço na imprensa para o novo livro de Chico Buarque e para o disco de estréia de Maria Rita?
Claro. No caso do Chico, uma pouca vergonha, e o único a escrever criticando isso foi o bravo Alberto Dines. Como pode? Duas páginas, no mesmo domingo, em todas as mídias. Duas páginas combinadas entre toda a mídia. O Chico é o máximo: e a mídia é o mínimo. Crítico de literatura não deve ir apenas coletar provas de livros de gente famosa nas portas das grandes editoras: deve ir torrar sola, ir buscar valores novos desconhecidos, deve mergulhar na periferia. Fiz uma única reportagem assim na minha vida, a qual me orgulho, em 1993, eu acho. Eu li a Guitar Player americana que dava, em cinco linhas, uma guitarrista brasileira como a guitarrista do mês. Liguei pro editor da revista, em São Francisco, o Jaz Obrecht, e pedi o fone dela. Fui o primeiro a descobri-la no Brasil, pusemos ela na capa da Ilustrada: é a violeira matogrossense Helena Meirelles. Aqui no Brasil gente que nasceu na contracultura, como o Chico, etc, fica velho e vira cultura oficial, da mesma forma que os Beatles fizeram. É dolorido permanecer a vida toda no ?off Broadway?, é uma prática reservada a santos, como era o meu finado orientador de mestrado, o dr. Timothy Leary, que deu a mim sua última entrevista, no leito de morte, em Los Angeles, onde morreu praticamente solitário. O Leary dizia para sua ex-mulher, a Bárbara, hoje casada com o marchand paulista Kim Esteve: ?Barbara, se eu tiver ganhando muito dinheiro me avisa porque aí será sinal que algo fiz de errado?.”