Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S. PAULO

"Insufilme na mídia", copyright Folha de S. Paulo, 2/11/03

"Quando se trata de escarafunchar a crise da aviação civil, das empresas de energia elétrica, de telecomunicações ou de qualquer outro setor econômico em dificuldade, a mídia é implacável.

Diariamente, os jornais competem entre si para ver qual consegue noticiar antes e com mais detalhes como andam as dívidas, as negociações, as movimentações acionárias, as fusões, análises de especialistas, os planos de empréstimos ou financiamentos, demissões, as fraudes em balanços.

Algo diferente ocorre, porém, quando ela própria -mídia- é notícia. Reinam, então, a superficialidade, as afirmações genéricas ou, simplesmente, a omissão total. Como se o setor sentisse necessidade de ocultar da sociedade, o público, a sua própria situação.

No dia 30 de setembro, as entidades representativas dos jornais, das revistas e de rádio/TV divulgaram nota segundo a qual uma consultoria começara a preparar um estudo sobre o setor a fim de formular uma proposta de financiamento específico, por parte do BNDES (uma instituição do governo), para as empresas de comunicação. Alguns veículos -dentre eles, a Folha- registraram, discreta e suscintamente, a informação.

Um mês depois, na última terça-feira (28/10), representantes da mídia participaram de uma reunião, em Brasília, com a direção do BNDES, ocasião em que apresentaram ?estudos? sobre o setor com a sugestão de que ele ?possa também dispor de acesso, por exemplo, a programas para o equacionamento financeiro das empresas e a programas usuais de financiamento de investimentos?.

O encontro foi noticiado, dentre os jornais do dia seguinte, apenas pela Folha, ?Valor? e ?O Globo?. Mesmo nesses veículos que deram a notícia, no entanto, a transparência foi parcial, e com diferenças curiosas.

Princípios

A Folha, depois de dizer que a reunião foi entre dirigentes das três entidades empresariais e o banco, passou, apenas, a reproduzir a íntegra do comunicado oficial das associações.

O ?Globo? não deixou claro quem participou da reunião, mas também estruturou sua reportagem com base no mesmo comunicado.

Já o ?Valor? iniciou o texto dizendo que da reunião participaram ?donos de jornais, TVs e revistas e representantes das associações da mídia brasileira em geral?, numa comitiva de ?cerca de? 12 pessoas.

Mencionou, nominalmente, a presença de um representante das Organizações Globo, um da Folha e um da TV Bandeirantes.

O comunicado das entidades a que todos se referem é bastante genérico. Registra a importância do setor em termos sociais, políticos, educacionais e econômicos; sugere a formulação de uma política de ajuda; e reitera os ?princípios de autonomia de opinião e de independência que norteiam uma imprensa compromissada exclusivamente com a verdade, a liberdade de expressão, o direito de informar e o respeito ao direito do cidadão de ser informado?.

Omissão

Que a mídia recorra ao BNDES para sobreviver e/ou avançar, é uma questão evidentemente polêmica, relativa à real capacidade de um devedor de se manter sempre e verdadeiramente crítico e independente em relação ao seu próprio credor. As divergências, aí, são naturais, especulativas, e só a prática, no fundo, será capaz de resolvê-las.

Mas a coisa se complica, desde já, concretamente, quanto ao último ponto, citado entre aspas, do tal comunicado.

Quais são os números apresentados nos ?estudos? entregues ao BNDES? Qual é o tamanho da crise do setor? Como se chegou a ela? A quantas andam suas dívidas? Quais tipos de dívidas são? Que modalidades de financianmento são sugeridas? Qual foi a reação inicial do BNDES?

O comunicado e as reportagens -sem falar na omissão total de outros veículos- não respondem a nenhuma dessas interrogações, elementares no noticiário sobre a crise de qualquer outro grupo de empresas relevante da economia.

O único dado concreto mencionado é o de que o setor responde por mais de 280 mil empregos diretos e indiretos. Só.

Como fica, então, o ?respeito ao direito do cidadão de ser informado?, no momento em que a própria mídia omite de seu público informações básicas sobre ela mesma?

A Folha marcou um ponto ao divulgar o encontro. Mas fez menos do que o mínimo: nada revelou além do genérico comunicado e, pior, omitiu que um representante dela participou da reunião em Brasília.

Tal comportamento, de uma transparência pela metade, na base do insufilme, chama ainda mais a atenção, negativamente, por ocorrer poucos dias após a divulgação de uma entrevista no site ?AOL Notícias? (24/10) na qual o publisher da Folha, Octavio Frias de Oliveira, defendendo a independência total da mídia, mostrou-se crítico em relação a todo auxílio oficial e teceu argumentos contrários a uma política específica de ajuda para o setor de comunicações.

Nessas circunstâncias, além de estar mal-informado, o leitor do jornal tem todo o direito de se sentir, no mínimo, confuso."

***

"Relato frio do caos", copyright Folha de S. Paulo, 2/11/03

"Florianópolis é a capital com melhor qualidade de vida, onde os cidadãos passam mais anos na escola, com a menor taxa de mortalidade infantil do Brasil. Pessoas de alto poder aquisitivo de várias partes têm-se mudado para lá. Os vôos ficam lotados segundas e sextas de gente que trabalha em SP mas mora na capital catarinense por opção.

Tudo isso a Folha sabe, porque publicou, há menos de um mês (3/10), caderno especial com todos esses dados.

Mas o que fez o jornal quando essa cidade, tida como paraíso turístico, foi atingida por um histórico blecaute desde a tarde de quarta-feira? Bem menos que o exigido para algo desse porte.

Chama a atenção, de início, a falta de imagens capazes de expressar o caos que tomou conta da cidade. A edição nacional publicou apenas fotos de vista do alto, de operários reparando cabos e uma outra, com jeitão de arquivo, de duas pontes ligando ilha e continente. Na edição SP, só a primeira e a última.

O caos se instalara desde as primeiras horas. Postos de gasolina fecharam; afetou-se o transporte coletivo; escolas dispensaram os alunos; congestionamentos se espalharam; o maior shopping teve todas as lojas fechadas. Faltou água. Vacinas foram recolhidas nos postos de saúde. Os telefones celulares só falhavam. Nas casas, as geladeiras tiveram de ser esvaziadas. Em hotéis, lotados -há dois grandes eventos, um esportivo e outro de negócios, no fim de semana-, houve gente presa nos elevadores.

A Folha reservou à notícia, no primeiro dia (quinta), menos de meia página, com um texto apenas descritivo, quase relatorial. No segundo dia (sexta), houve mais espaço, relatos e depoimentos sobre casos concretos; um quadro ilustrava como teria sido o acidente que provocou a situação traumática.

Mesmo assim, além da ausência de fotos, nada se falou sobre aspectos relevantes e úteis para os leitores (inclusive de outros Estados), como, por exemplo, a situação do aeroporto ou dos turistas de passagem ali.

Talvez, no primeiro dia, o jornal se tenha deixado levar pelas (sempre duvidosas) declarações oficiais de que tudo voltaria ao normal em poucas horas -e não deu, equivocadamente, a devida atenção ao tema.

Na sexta, é provável que o espaço se tenha comprimido pelo caso da ação da Polícia Federal contra juízes, advogados, policiais e empresários na Operação Anaconda. Isso não justifica, porém, a ausência de ao menos uma foto expressiva da situação dramática nem as lacunas de texto que apontei acima.

Seria exagero dizer que o jornal menosprezou o caos de Florianópolis -o qual persistia até o fechamento desta coluna. Mas ele, no mínimo, perdeu a chance de criar uma cobertura à altura de um evento inédito para uma capital cuja imagem, a partir de agora, jamais será a mesma."