Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As tragédias não contabilizadas

Perdida no noticiário da semana passada, quando toda a imprensa contabilizava os mortos do acidente no aeroporto de Barajas, em Madri (quarta, 20/8), uma notícia do site globo.com dava conta de que a dengue já havia matado, desde janeiro até o dia da tragédia aérea, 162 pessoas no Rio. Silenciosamente, longe das manchetes que retratavam o drama das famílias das vítimas e os relatos emocionados dos sobreviventes do vôo da Spanair, podia-se constatar que haveria mais famílias enlutadas pela ação do mosquito do que pela falha nas complexas operações do avião.

Foram 159 os mortos em Madri, ou seja, três a menos do que as vítimas da dengue no Rio desde janeiro. E certamente muitas pessoas ainda se perguntam por que motivo a imprensa sempre dá mais importância aos fatos concentrados em um só evento do que àqueles que formam grandes números ao longo do tempo, mesmo quando esses números são mais expressivos do que os que compõem aquilo que chamamos normalmente de tragédia.

Emoções pequenas

Numa abordagem simplista, fica até fácil imaginar porque jornalistas – e o público em geral – são mais sensíveis aos golpes imediatos que carregam grandes números ou envolvem personalidades, do que aos acontecimentos que se desenrolam sob nossos narizes, na rotina dos quase anônimos. É que esses números ou personagens especiais compõem histórias mais interessantes.

No entanto, é o caso de se perguntar se a imprensa deve, exclusivamente, correr atrás de histórias interessantes ou de temas que tenham maior potencial para mobilizar os corações e mentes da sociedade; ou se deveria perseguir outras motivações, como, por exemplo, a utopia da melhoria contínua dos sistemas.

Afirmar a primeira hipótese é o mesmo que dizer que a imprensa deve ir onde o público está, ou que deve dar aquilo que dela espera seu cliente. Como nas novelas ou minisséries da TV, basta mais do mesmo, ou seja, notícias com grandes cargas emocionais.

No entanto, em se tratando de atividade da qual se espera algo mais do que o crescimento da audiência ou o aumento da circulação, parece claro que a imprensa deveria se preocupar com muito mais do que a adesão ou a eventual aprovação de seu público. Até porque não se sabe a quantas subiria essa aprovação se, além de proporcionar as pequenas emoções de cada dia, a mídia oferecesse também a possibilidade de sua audiência compreender melhor o estado do mundo e se habilitar a melhorá-lo.

Tragédia sistêmica

Se jornais, revistas, emissoras e sites jornalísticos querem ver reconhecido seu papel social – cuja complexidade pode ir da defesa dos direitos inerentes à sociedade democrática à função de consolidar a educação para a cidadania –, também devem oferecer, como contrapartida ao respeito que isso proporciona, algo mais do que a emoção do dia, produzida pelos fatos mais chocantes, pelos dramas mais densos.

Muitos dos dramas que compõem o noticiário se desenrolam sob o manto das carências gerais ou das perversidades sistêmicas, mas são descritos quase sempre isolados de seus contextos. Assim, o ato de violência que choca pode revelar um estado latente de conflitos sociais; um acidente é o dado que forma as grandes estatísticas e que poderia revelar a necessidade de ações corretivas do poder público; o protagonismo negativo pode indicar carências de educação; o escândalo sobre corrupção denuncia a fragilidade das instituições; o crime organizado revela a inoperância do sistema da Justiça – e por aí se vai.

Os mortos da dengue foram se acumulando no dia-a-dia e a imprensa se esqueceu deles. Quantos mortos são necessários a cada edição para que uma tragédia sistêmica seja reconhecida como notícia relevante?

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Jornalista