ENTREVISTA / ISABEL LUSTOSA
Letícia Nunes
No dia 22 de novembro completam-se 180 anos da primeira Lei de Imprensa do Brasil, de 1823. A historiadora Isabel Lustosa, que em junho deste ano lançou O nascimento da imprensa brasileira (Jorge Zahar Editor), estudou o turbulento período entre abril de 1821, quando D. João VI voltou a Lisboa, e novembro de 1823, quando D. Pedro I dissolveu a Assembléia Constituinte. A imprensa da Independência, importante ator nos acontecimentos, estava no centro das preocupações do Estado.
Nesta entrevista ao Observatório, a pesquisadora recupera o agitado ambiente político às vésperas do decreto que instituiu a Lei de Imprensa no Brasil, e observa: antes dela o país já vinha experimentando a liberdade de imprensa de fato. Por isso, a nova lei não representou "nem mesmo uma conquista".
Graduada em Ciências Sociais pela UFRJ, Isabel Lustosa fez mestrado e doutorado em Ciência Política no IUPERJ, ambos sob orientação de José Murilo de Carvalho. Atualmente é pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, tendo publicado seu primeiro livro em 1989, Histórias de Presidentes ? a República no Catete (Vozes/FCRB). Depois vieram Brasil pelo método confuso ? humor e boemia em Mendes Fradique (Bertrand, 1998), Nássara ? o perfeito fazedor de artes (Relume Dumará/RioArte, 1999) e Insultos impressos ? a guerra dos jornalistas na Independência (Companhia das Letras, 2001), além de Lapa do Desterro e do desvario ? uma antologia (Casa da Palavra, 2000) e da edição, com Alberto Dines, da coleção fac-similar do Correio Braziliense (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo). A seguir, sua entrevista.
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Como surgiu a primeira Lei de Imprensa no Brasil?
Isabel Lustosa ? Antes de falar da Lei de Imprensa é preciso recuperar a história das iniciativas legais que a antecederam e sobre as quais ela foi elaborada. Como se sabe, desde o dia 2 de março de 1821, um decreto de D. João VI ? às vésperas deste deixar o Brasil ? abolira a censura prévia e regulara a liberdade de imprensa. Este decreto não extinguia a prática da censura, mas atenuava a forma como esta era feita. Em 5 de junho de 1821, depois de juradas no Brasil as Bases da Constituição, que estavam sendo preparadas em Portugal, D. Pedro ? que, com a partida do pai para Lisboa, assumira a regência do Reino do Brasil ? não aguardou a lei que regulamentaria a liberdade de imprensa, colocando-a logo em vigor. Esta lei foi complementada em 28 de agosto de 1821, por aviso onde se dizia que, "pretendendo evitar que os autores ou editores encontrassem inesperados estorvos à publicação dos seus escritos, era o mesmo senhor [D. Pedro] servido mandar que se não embarace por pretexto algum a impressão que se quiser fazer de qualquer escrito, devendo unicamente servir de regra o que as mesmas Cortes têm determinado sobre este objeto".
Mas a Junta Diretora da Tipografia Nacional viu sua responsabilidade nos casos de abuso cometidos por autores anônimos muito aumentada. Por isso determinou que não fossem mais aceitos manuscritos sem que a assinatura dos autores estivesse reconhecida por tabelião. Isto foi aprovado pelo governo, com modificação, em aviso de 24 de setembro. As modificações consistiram em limitar a exigência de firma reconhecida aos autores desconhecidos do administrador da tipografia e em dispensar a declaração do tabelião de tê-los visto assinar os originais. A agitação que se verificou no país, no final de 1821, provocou uma proliferação de folhetos e periódicos, em geral anônimos. Em vista disso, o governo resolveu proibir de vez o anonimato, ao menos na tipografia oficial, ordenando à respectiva Junta que não imprimisse nada sem que o nome da pessoa responsável pelo seu conteúdo estivesse publicado no impresso.
Mas José Bonifácio de Andrada, assim que assumiu o cargo de ministro do Reino, em 17 de janeiro de 1822, apressou-se em promulgar logo outra portaria, na qual ordenava à Junta que não embaraçasse a impressão de escritos anônimos, pois "pelos abusos que contiverem deve responder o autor, ainda que o seu nome não tenha sido publicado e, na falta deste, o editor". O senado da Câmara solicitou ao príncipe, em 4 de fevereiro de 1822, que mandasse pôr em execução no Rio de Janeiro o decreto das Cortes portuguesas que determinava a criação do juízo de jurados. O assunto não foi então considerado, mas veio a ser resolvido pelo Conselho de Estado, pequena assembléia de procuradores das províncias e ministros instalada a 2 de junho e presidida por D. Pedro. Na sessão do dia 16 do mesmo mês, José Mariano propôs que se levasse a juízo João Soares Lisboa pelas criminosas doutrinas que veiculava em seu jornal, o Correio do Rio de Janeiro. Seguiu-se um debate, findo o qual ficou decidido que Joaquim Gonçalves Ledo preparasse um decreto para a imprensa.
O decreto, sob forma de portaria, foi aprovado na sessão de 18 de junho. Através dele, abandonavam-se as sanções relativas aos abusos contra a religião, os bons costumes e os indivíduos. Permaneciam apenas as relativas aos abusos contra o Estado. Embora Ledo tenha sido designado para redigir o decreto, acredita o historiador Carlos Rizzini que ele não foi o seu autor. Se o redigisse ? diz Rizzini, baseado na leitura das Atas das sessões existentes no Arquivo Público Nacional ? não teria protestado durante a discussão contra o julgamento de abusos da imprensa pelas antigas leis. Provavelmente, conclui, o decreto saiu da pena de José Bonifácio.
O que dizia o decreto?
I.L. ? O decreto determinava que, ao contrário do que tinha estabelecido o próprio José Bonifácio ao revogar a portaria do ex-ministro Vieira, todos os escritos deveriam ser assinados pelos seus autores. Os editores ou impressores que imprimissem ou publicassem papéis anônimos passavam a ser responsáveis por eles. Todas as tipografias ficavam obrigadas a mandar ao procurador da Coroa e da Fazenda um exemplar de todos os papéis que fossem impressos. O Decreto de 18 de junho de 1822 também preceituava a forma de julgamento dos crimes por abuso da liberdade de imprensa. Determinava que o corregedor do Crime da Corte ficava a partir de então nomeado juiz de direito nos casos de abuso da liberdade da imprensa, e que este nomearia, para os casos que se apresentassem e a requerimento do procurador, 24 cidadãos escolhidos entre os homens bons, honrados, inteligentes e patriotas, os quais seriam juízes de fato, para conhecerem da criminalidade dos escritos abusivos. Desses 24 jurados, o réu poderia recusar 16. Os oito restantes procederiam "ao exame, conhecimento e averiguação do fato". Determinada a existência de culpa, o juiz impunha a pena. E, concluía o decreto, "por quanto as leis antigas a este respeito são muito duras e impróprias das idéias liberais dos tempos em que vivemos, os juizes de direito regular-se-ão para esta imposição pelos artigos doze e treze do título segundo das Cortes de Lisboa de quatro de junho de 1821, que mando nesta cívica parte aplicar ao Brasil. Os réus só poderão apelar do julgado para a minha Real Clemência"
E o que a Lei de Imprensa de 1823 pregava?
I.L. ? A lei decretada em 22 de novembro de 1823 era a mesma que fora apresentada durante os trabalhos da Constituinte no anteprojeto redigido por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada. Depois da dissolução da Assembléia, o projeto foi aprovado sob a forma de decreto em 22 de novembro de 1823. A lei reproduzia muito do que já se declarava na legislação anterior: repudiava a censura e declarava livres a impressão, publicação, venda e compra de livros e escritos de toda a qualidade, com algumas exceções. Estas exceções, os chamados "abusos da liberdade de imprensa", seriam objeto de julgamento.
Nesta lei estava inserido o princípio de liberdade de imprensa. Naquela época, o que se entendia por liberdade de imprensa?
I.L. ? Mais ou menos o mesmo que diz o artigo 11 da Declaração dos Direitos do Homem": "A livre comunicação do pensamento é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode conseqüentemente, sem dependência de censura prévia, manifestar suas opiniões em qualquer matéria, contanto que haja de responder pelo abuso desta liberdade nos casos e na forma que a lei determinar".
Esta liberdade acontecia na prática?
I.L. ? Também já naquele tempo isto variava de acordo com o maior ou menor poder do soberano e com o seu maior ou menor compromisso com o sistema liberal. Pois, como vimos, o mesmo imperador que baixou esse decreto, em 22 de novembro, havia acabado de dissolver a Assembléia Constituinte, justamente por conta da ação de dois jornais publicados por pessoas que faziam oposição ao governo na Assembléia.
Até quando esta lei permaneceu em vigor?
I.L. ? Pode-se dizer que, com pequenas modificações, ela vigeu durante todo o Império, só sendo substituída na República.
Qual foi sua importância para a história da imprensa e para a história do Brasil?
I.L. ? É difícil dizer. Creio que, mesmo tendo surgido sob o reinado de um imperador que dava justamente vazão aos seus pendores despóticos quando a decretou, ela foi, durante o governo do segundo imperador, de personalidade mais conciliadora, uma garantia da liberdade de imprensa que de fato havia durante o reinado de D. Pedro II.
E por que ela não é lembrada?
I.L. ? Creio que é porque ela não teve muito significado quando apareceu, pois foi uma lei decretada pelo imperador 10 dias depois de dissolvida a nossa primeira Assembléia Constituinte. E como antes dela o Brasil de fato já vinha experimentando a liberdade de imprensa, ela não representou nem mesmo uma conquista.