CULTURA MEXICANA
Wladir Dupont,
da Cidade do México (*)
“Deixem os livros livres!” esbravejava neste fim de semana o escritor
Germán Dehesa, um dos colunistas de maior prestígio
da imprensa mexicana, no caderno Cidades do prestigioso jornal Reforma.
“Agora só falta vender as pirâmides de Teohutiacán
e o Castelo de Chapultepec!”, a ele fazia coro um deputado da oposição,
Jorge Kahwagi.
Dehesa e Kahwagi se referiam à ameaça do governo
mexicano, cada vez mais inquietante, de não só taxar
livros, jornais e revistas com um imposto de 10%, como fundir, vender
ou privatizar instituições públicas com função
cultural ? uma rede de 60 livrarias (Educal), a Fonart (o equivalente
mexicano da Funarte), a Notimex, (a agência oficial de notícias)
e até mesmo os históricos estúdios cinematográficos
Churubusco Azteca, neles incluídos uma escola de cinema,
o Centro de Formação Cinematográfica e o Instituto
Mexicano de Cinematografia (algo como o Ancine, no Brasil).
A idéia, nesta segunda parte do pacote, bolada pelos burocratas
do ministério da Fazenda e sujeita ainda a aprovação
do Congresso (no bojo da votação do orçamento
federal proposto para 2004), é que, se não dá
lucro e nem cabe às autoridades sustentar, então fecha
ou vende. Em regime de poupança e austeridade, diz o presidente
Vicente Fox, o governo precisa livrar-se de ativos do Estado para
financiar obras urgentes de natureza social e reforçar a
ainda precária infra-estrutura do país.
Argumento que desta vez não comove a classe intelectual
e artística do país, normalmente empenhada na defesa
das chamadas causas sociais. Com o apoio da imprensa cultural da
Cidade do México, escritores, editores, pessoal de cinema
e teatro, artistas plásticos, artesãos e jornalistas
têm se mobilizado nas ruas para protestar e manifestar seu
repúdio contra o que consideram uma postura indiferente e
discriminatória do governo Fox diante da cultura, num país
com enorme tradição e respeito nesse campo.
Investimento produtivo
De fato, desde que assumiu a presidência da República,
há três anos, Fox e sua equipe não têm
mostrado particular interesse em revitalizar programas antigos ou
financiar novas atividades no campo cultural e artístico.
Segundo os cálculos fornecidos a imprensa pelos interessados,
a parcela no orçamento federal destinada à cultura
representa 0,067% do PIB ? inferior ao 1% recomendado pela ONU.
No caso dos livros o problema é muito sério, pois
o hábito da leitura no México não é
dos mais cultivados: cada cidadão mexicano lê apenas
1,5 livros por ano ? e mal ?, dando preferência aos esotéricos
e de auto-ajuda. Além do analfabetismo, em torno de 10% de
uma população de 100 milhões de pessoas, alega-se
que o livro, produzido por 120 editoras e vendido em 400 livrarias
no país, é caro ? um exemplar custa em média
entre 10 e 15 dólares. Pouco lidos também são
os quinze jornais diários (e seis revistas semanais tipo
Veja) da Cidade do México, cuja circulação,
na melhor das hipóteses, entre os quatro grandes, gira em
torno de 100 mil e 150 mil exemplares diários.
Se aprovado o tal imposto de 10%, os livros ficariam 30% mais caros,
o que dificultaria ainda mais sua comercialização.
O governo, porém, considera os objetos culturais ? o livro,
principalmente ? como um gasto igual a qualquer outro supérfluo,
e que portanto deve ser taxado.
No ano passado, a tchurma de Fox no ministério da Fazenda
tentou tascar imposto de renda em cima dos escritores, mas na última
hora recuou constrangida, tão visceral foi a reação
do setor. Um dos escritores e poetas mais importantes do país,
José Emílio Pacheco, vivendo do ofício de escrever
há 40 anos, disse na ocasião: “Se eu ainda tiver que
pagar imposto de renda, vou a falência”. Teria começado
ali a desilusão da categoria com as promessas não
cumpridas de mudanças e sua conseqüente e aberta ojeriza
em relação a Fox e seus ministros.
A irritação se faz maior ainda porque, ao explicar
seus motivos, cinicamente os burocratas dão a entender que
o imposto de 10% não afetaria os leitores mais dedicados,
pois afinal muito pouca gente lê no México.
Mas, no fundo ? respondem os escritores ?, feitas as contas, a
arrecadação com esse novo imposto seria reduzida,
o governo não levaria grande vantagem fiscal e nem poderia
implementar de forma mais rápida e eficaz seus ditos projetos
sociais. Ou seja, essa idéia de considerar a cultura um gasto
comum, e não um investimento produtivo e fator de desenvolvimento
social e econ&ococirc;mico, é, além de nefasta, burra
? repetem os escritores.
Calle de Atletas, Churubusco
Por suas frondosas e ainda bucólicas alamedas ao redor de
oito palcos de filmagem, cada um com 8.480 metros quadrados, passearam
e descansaram figuras célebres do cinema mexicano ? Cantinflas,
María Félix, Pedro Infante, Pedro Armendáriz,
Dolores del Rio, Jorge Negrete, Emílio “El Indio” Fernández,
Luís Buñuel, Gabriel Figueroa.
Viviam todos, como estrelas de Hollywood, a chamada época
de ouro da indústria, entre 1935 e 1955, quando daquela fábrica
de sonhos, os estúdios Churubusco Azteca S.A., construída
numa área ainda remota ao sul da Cidade do México,
saíam 100 filmes por ano, distribuídos pela também
histórica Pelmex para todo o continente, o Brasil incluído.
Hoje, enterrados os ídolos gloriosos e mudadas de forma
dramática as condições de se fazer cinema,
em meio a crises periódicas ? fecha, não fecha; vende,
não vende ?, os estúdios continuam na mesma área,
no bairro de Churubusco, com entrada principal ainda pela Calle
de Atletas, só que cortados e cercados por vias expressas
e linhas de metrô. E agora ameaçados pelo fechamento
por meio de venda ao capital estrangeiro, que poderia transformá-los
num gigantesco shopping center ou loteamento para milionário
? ou, caso de Steven Spielberg, um dos supostos interessados no
negócio, numa filial mexicana de seu próprio estúdio
em Los Angeles.
Inaugurado em 1945 com capital dos estúdios da RKO, então
em boa fase, e dinheiro de um sócio local, o empresário
radiofônico Emilio Azcárraga Vidauretta, os estúdios
Churubusco-Azteca passaram ao controle do Estado em 1950, quando
deslancharam para a fama mundial, sendo, ainda hoje, os maiores
e mais bem equipados de todo o continente. Ali, numa mistura então
harmoniosa de dinheiro estatal e da iniciativa privada, foram produzidos,
em 58 anos, 3 mil filmes ? entre eles, clássicos do cinema
mexicano como La Perla, Aventurera, Maclovia,
Allá en el Rancho Grande, vários filmes de
Cantinflas e O Fugitivo, de John Ford.
O desaparecimento dos estúdios, que contam com um laboratório
moderno (revelação e copiagem), duas salas de som
digital THX, sala de projeção, camarins, escritórios
e restaurante representaria o fim definitivo da indústria
cinematográfica e audiovisual mexicanas, lamentam, alarmados,
cineastas, produtores, técnicos e artistas.
Pois apesar dos altos e baixos do setor, nos últimos nos
cinco anos foram rodados no Churubusco-Azteca 95% dos filmes mexicanos,
numa média de 30 por ano. Em seus sets também
são feitas telenovelas, vídeos e comerciais publicitários,
além do freqüente aproveitamento das instalações
por estúdios de Hollywood (nos últimos tempos, para
A Marca do Zorro e Frida).
Do Estado mexicano, os estúdios recebem um subsídio
anual de 40% para seu funcionamento, o que equivale dizer que, com
os serviços prestados a terceiros, cobrem 60% dos gastos.
Podem não ser altamente rentável, reconhece a classe
cinematográfica, mas não são deficitários
e, além do mais, trata-se de um imenso patrimônio histórico-artístico
que não pode, em hipótese alguma, ser posto a venda
para outras finalidades.
E mais importante ainda, observam, em termos de custos de produção
rodar um filme nos Churubusco-Azteca representa uma economia de
30% para os produtores, mexicanos ou estrangeiros, contando com
todos os recursos e qualidades técnicas dos grandes estúdios
americanos.
(*) Jornalista e escritor brasileiro radicado no México