Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O mestre do jornalismo e sua escola de vida

ENTREVISTA / EWALDO DANTAS FERREIRA

Leticia Nunes

Ewaldo Dantas Ferreira tem 77 anos e muita história para contar. O paulista de Catanduva é dono de uma carreira memorável como repórter. Começou nos Diários Associados, em São Paulo, dirigiu o telejornalismo da Rede Bandeirantes, trabalhou na Folha de São Paulo, no Jornal do Brasil e em uma diversidade de outros importantes veículos jornalísticos. Foi repórter internacional e esteve presente em acontecimentos decisivos da história mundial. Liderou a grande greve da imprensa brasileira, em 1961, quando foi conquistado o piso salarial para a categoria. Ou seja, teve uma carreira ? e uma vida ? nada monótona.

Ewaldo foi homenageado por sua carreira em 20 de novembro na Câmara de São Paulo, em uma iniciativa do vereador Carlos Giannazi (PT-SP). E, como acredita que jornalista não deve virar notícia, aproveitou a ocasião para relançar o livro O Depoimento do SS Barbie = Altmann. Editado pela Editora Rio, o livro é uma coletânea de reportagens de Ewaldo publicadas originalmente em 1973 no Estado de São Paulo e no Jornal da Tarde, com repercussão na imprensa internacional. As reportagens têm seu grande valor histórico por conterem o primeiro depoimento do militar nazista Klaus Barbie Altmann, conhecido como o “Carrasco de Lyon”. Altmann ficou assim conhecido por ter matado e comandado a morte de inúmeros franceses que lutavam, durante a 2? Guerra Mundial, contra a ocupação nazista na França. Ewaldo descobriu o paradeiro de Altmann e o encontrou na Bolívia, onde conseguiu entrevistá-lo. Neste depoimento ao Observatório, Ewaldo falou sobre o livro e sobre sua fascinante carreira.

Quantos anos de carreira jornalística?

Ewaldo Dantas Ferreira – Tenho muitos, acho pouco e quero mais. Nasci em 1926. Talvez não dê mais tempo, mas acho que no meu epitáfio vou poder plagiar M. de La Palisse: “Quinze minutos antes de morrer ainda estava vivo.”

Como começou sua carreira?

EDF: Saí de uma Casa de Formação Jesuíta, o Colégio Anchieta, de Friburgo, com uma formação privilegiada, mas sem registros no Ministério da Educação. Latim e Grego não ajudavam muito para a sobrevivência. Servem para arrumar um emprego de revisor num velho jornal. Foi o que fiz. Logo depois o Dutra abriu a primeira escola de jornalismo, na Universidade do Brasil, ainda no Rio. Na funda&ccedilccedil;ão a porta foi franqueada a jornalista na ativa, mesmo sem diploma e sem vestibular. Foi fácil. Comecei a carreira já sabendo o que era um lead.

O senhor cobriu a guerra de Suez, a queda de Perón, o lançamento da Apolo-11 e muitos outros acontecimentos relevantes. De qual mais se orgulha? Por quê?

EDF: Guerras, conflitos? Em quatro continentes. No Oriente Médio, acho que em todos os países. Na África quase toda. Na parte meridional, peguei bem o comecinho nas colônias portuguesas, depois da Revolução dos Cravos. Posso incluir também algumas áreas civilizadas como Irlanda e Estados Unidos. No auge da crise racial, me internei no Harlem, sob a proteção dos Panteras Negras. Foi uma matéria muito bonita que abrange o surgimento da fase Black is Beautiful. Nunca fui correspondente de guerra. Apenas ia ao local e fazia uma grande tentativa de explicar o que estava acontecendo. Existe uma coisa mais difícil de entender do que católicos e protestantes se matando num dos países de cultura mais tradicional no mundo como a Irlanda? Ainda mais que lá religiões não tinham nada a ver com o pato. E o que dizer de uma guerra declarada pelo Império Britânico a uma pequena e linda Ilha do Caribe, chamada Anguila, protegida por um canhão abandonado lá pelos descobridores da América, no século XVI. A Inglaterra anunciou: “Não garantimos o sobrevôo desta região”, o que quer dizer: “Não entre lá que leva chumbo”. Entrei, por pura sorte. Saí cinco dias depois, no regresso do primeiro avião que conseguiu pousar lá, fretado só para levar os repórteres do Times de Londres. Escrevi em Miami minha matéria, que foi rebatida pelas as agências. Fora com este negócio de orgulho. Que coisa fora de propósito. A tarimba bem vivida tritura qualquer vaidade, qualquer modéstia. A pauta do serviço é de engolir sapo, pisar em brasa, deglutir adrenalina, fremir de gosto quando a gente consegue entrevistar o Belzebu ou São Jerônimo. Quando se vê fascinado pelo seu Diferente. O serviço dá gosto. Orgulho é outra coisa. O serviço é a informação que faculta aos cidadãos fazer o seu próprio julgamento e tomar a sua própria posição, a sua própria decisão. Jornalista que, em vez de informar, julga, faz uma violência à liberdade de imprensa. Liberdade de imprensa é engendrada para garantir o direito que todos têm de saber tudo.

O senhor tem algum arrependimento em relação a sua carreira?

EDF: Meu tempo de vida teve de tudo. Todo o bem e todo o mal do mundo andou por aqui nesta passagem de milênio. Minha carreira me deu sempre a sensação de participante do meu tempo e da minha gente: um tropel de emoções. O saldo é uma vida que vocês não imaginam.

Poderia contar como foi a greve de 1961?

EDF: A greve de 1961 fixou o mínimo para os jornalistas. Foi a primeira a fixá-lo para qualquer profissão e acabou abrindo caminho para o piso de todas. Mudou a lei trabalhista e lançou a infra-estrutura da profissão. E o bonito é que foi a única greve plenamente vitoriosa na imprensa brasileira até hoje. Quer dizer: primeiro, paralisação inequivocamente cem por cento; segundo, nem uma demissão. Conquista de tudo o que foi reivindicado. Festejo internacional com whisky, champagne e vodka. Nunca tive vida sindical; entrei no Sindicato por equívoco, quarenta dias depois de ser convidado para uma reunião da diretoria vacante que havia se dividido na hora da eleição. Saí antes de terminar o mandato pedindo demissão no meio de uma assembléia geral.

Como foi a entrevista com o nazista Klaus Barbie Altmann?

EDF: Um exercício provocante de técnica e ética. Dividiu violentamente opiniões no mundo inteiro, jamais recebeu um único desmentido. Correndo todas as rotas do altiplano boliviano dentro de um fusquinha dirigido por um homem que estava sendo caçado para ser assassinado; parando para dormir nas aldeias, tomando sopas que as índias quechuas e aymaras serviam em latas de querosene; trabalhando à noite, fugindo de madrugada e ouvindo revelações que o mundo esperava.

Como o senhor o descobriu e conseguiu entrevistá-lo?

EDF: Esta, para responder, vou ter que esperar respeitosamente o êxito letal de alguns velhinhos.

Agora, o livro com as reportagens feitas em 1973 sobre a entrevista foi lançado. Como surgiu a idéia de fazer uma nova edição das reportagens trinta anos depois?

EDF: Uma filósofa virou jornalista e propôs à The New Yorker fazer a cobertura do julgamento de Eichmann em Jerusalém. Publicou depois uma obra prima de Direito, Jornalismo, Filosofia e sabedoria definindo a inquietação do nosso tempo. Cunhou a expressão Banalidade do Mal. Esta expressão vem inquietando o mundo nestes últimos tempos e deu a vigorosa atualização ao Depoimento do SS Altmann Barbie.

O senhor foi homenageado na Câmara Municipal de São Paulo no mês passado. Como foi a homenagem? E como o senhor se sente diante dela?

EDF: Não foi surpresa. A sessão da Câmara me foi anunciada com um respeitoso pedido de consentimento liderado pelo vereador Carlos Giannazi, presidente da Comissão e Educação, hoje inequivocamente envolvido no respeito de seus pares e da população. Jornalista virar notícia, para mim, é um vivo desconforto. Profissionalmente considero um procedimento desastroso, no rigor da moda. Mas não faço confusão: a homenagem da Câmara foi de um milhão de amigos, incluindo mitos que eu só conhecia de velha admiração. Agradeci sinceramente a todos. Tentei antes diluir as tintas de uma homenagem, somando o lançamento do livro e um painel sobre a Imprensa em Questão, apresentado por personalidades respeitadas da imprensa e da sociedade civil. Tudo isso além do projeto de um livro com a transcrição do painel.

Como está sua vida hoje?

EDF: Estou engajado numa grande universidade ? trabalho na Seses, empresa mantenedora da Estácio de Sá. Estou vivendo com muita intensidade a entrada no milênio dessa entidade que a civilização concebeu na Idade Média e que está buscando o seu caminho na História.

O senhor pode definir, com base em suas muitas experiências ao longo desses anos, o que é ser repórter?

EDF: O repórter é um agente especial do fluxo da informação. Da informação depende a organização da sociedade. Os homens dependem dela para decidirem e tomarem posição. Todos os seres humanos atuam no fluxo, determinando cada um o seu próprio interesse. O lógico é que o jornalista é um agente especial. A sociedade espera que ele entre no fluxo sem outro interesse que o do seu serviço de informação. É só por isso que dele se espera confiabilidade. É só por isso que ele é coberto de privilégios. Mas, como diz a Bíblia, quando o sal não salga deve ser jogado fora. É um tema a ser mais esclarecido, mais estudado, mais explorado. Especialmente neste nosso tempo em que a mídia vive sua grande crise no mundo.