O Liberal dedicou as três notas de abertura da coluna ‘Repórter 70’ de sábado (9/8) a um protesto do jornal contra o reajuste de 19,25% da tarifa de energia da Rede/Celpa, decretado pela Aneel, a agência federal reguladora do setor, e já em vigor. O Pará, dono ‘da maior hidrelétrica genuinamente nacional, auto-suficiente na produção de energia elétrica e fonte de energia para todo o País desde que os sistemas regionais tornaram-se interligados’, não podia ‘aceitar em silêncio’ um aumento que era ‘muito maior do que o do Espírito Santo, um estado que importa cerca de 80% da energia que consome, segundo o governo capixaba diz em seu site’.
Para a principal coluna da folha dos Maiorana, o contraste é brutal, já que o Espírito Santo é o 10º em desenvolvimento humano, enquanto o IDH do Pará é o 16º da federação, e tem o segundo maior consumo per capita de energia do Brasil, atrás apenas de São Paulo: ‘Melhores afortunados e abastecidos por Tucuruí, considerando-se o sistema nacional interligado, coube aos capixabas uma majoração de 6,9%’.
Arrematou com ironia o ‘Repórter 70’, finalmente endossando críticas feitas há tempos por outros personagens, que os capixabas não têm culpa ‘se o Pará ajuda a lhes sustentar o crescimento. A culpa está em Brasília. É também lá que dorme a reforma tributária. Hoje, o estado que compra a energia de Tucuruí é que fatura o ICMS. O Pará, assim, fica a ver o linhão. Uma das propostas da reforma, combatida pelos grandes consumidores, é que a tributação seja feita na origem, e não mais no destino’.
Justa e apropriada
A posição editorial de O Liberal não durou 24 horas. Na sua edição dominical, que começou a circular na tarde do mesmo sábado, o ‘Repórter 70’ voltou ao assunto, como se a manifestação da véspera não tivesse existido. Em duas notas, mudou radicalmente de discurso. Disse:
‘A extensão territorial do Pará, as grandes distâncias entre os municípios e as dificuldades de acesso a muitos deles fazem com que o investimento médio para atender a um consumidor de energia elétrica seja um dos mais altos do País, o que afeta diretamente na tarifa cobrada pela concessionária de energia elétrica do Estado – explica a Celpa.
‘Antes do último reajuste tarifário, a tarifa cobrada pela concessionária de energia elétrica do Espírito Santo era mais cara do que a tarifa no Pará, motivo pelo qual teve agora um reajuste de apenas 6,9%. A sorte é que os 51% dos consumidores de energia elétrica do Pará são beneficiados pela tarifa de baixa renda, um dos mais altos índices de consumidores beneficiados do País’.
Quem leu a coluna nos dois dias deve ter ficado perplexo. O ‘Repórter 70’ de sábado foi completamente desmentido pelo ‘Repórter 70’ de domingo. Em respeito ao leitor, a coluna devia ter admitido que os juízos de valor de um dia foram formados sobre base falsa, como mostrou a coluna no outro dia, e pedir desculpas a todos por sua injustificada revolta contra a Rede/Celpa. De exploradora do povo paraense, como o ‘R-70’ traçou seu perfil no sábado, ela passou a ser, na verdade, benfeitora dos paraenses, conforme a coluna demonstrou no domingo.
Conclui-se que o redator do ‘R-70’ é leviano porque manifesta opinião, devidamente editorializada no principal espaço da imprensa paraense, com todo destaque devido a assunto tão grave, sem fazer a mais elementar pesquisa sobre o assunto. Ignorou regra de ouro da profissão: a apuração das informações que lhe forem repassadas. Se foi esse o mesmo jornalista responsável pelas notas de retificação, ou ele não tem brio profissional ou a direção do jornal entregou o ‘Repórter 70’ nas mãos de um leviano. Não importa o que ele escreve, num momento levando os leitores a se indignar com a concessionária de energia elétrica do Estado e no outro os induzindo a se submeterem ao reajuste da tarifa, que passou a ser muito justa e apropriada.
Verticalismo de mando
Não é assim que se faz jornalismo, nem qualquer coisa que mereça respeito. O jornal não podia autorizar as críticas do sábado se elas não se amparavam realmente em fatos. Convencido, porém, no dia seguinte, de que errou, devia ter admitido o erro e pedido desculpas ao leitor e à Rede/Celpa. Com posições superpostas e justapostas em intervalo de menos de 24 horas, O Liberal criou confusão, desnorteou a opinião pública e contribuiu para a desinformação geral sobre uma das questões de maior importância para o Estado do Pará.
As duas notas do domingo, 10 de agosto, nada mais foram do que a reprodução das informações que a Rede/Celpa entregou ao jornal, verbalmente ou através de press-release. O Liberal, mais uma vez, não se deu ao trabalho de checar os dados. A pressa no fechamento da edição dominical pode ser usada como justificativa, embora o simples repasse da versão oficial, depois de críticas tão duras à concessionária de energia, deixe o travo amargo de uma prática viciada que se tornou contumaz na imprensa paraense: a voz do anunciante é a voz de Deus. A Rede/Celpa é um dos maiores anunciantes de O Liberal.
A crítica sabática foi um escorregão do ‘Repórter 70’, que escapou à fiscalização daquele que exerce na redação o mando em nome dos donos? Ou foi uma provocação para que a Rede/Celpa comparecesse ao jornal para se explicar, esse ‘explicar’ tomado em sentido ‘liberalmente’ amplo? Ou o rei da cocada preta sofreu algum dissabor pessoal, doméstico ou profissional, por conta de algum deslize da concessionária de energia, e mandou trovejar e relampear para advertir o infrator sobre o crime de lesa-majestade que cometeu?
Independentemente do esclarecimento sobre o móvel específico do enredo, há o relevante interesse público em causa. Ele foi esquecido e desprezado pelo jornal, que não voltou mais ao assunto, embora o assunto merecesse – e muito. A descontinuidade na abordagem das questões, abandonadas mal tinham sido formuladas (e formuladas de forma tão categórica quanto arbitrária), prejudica a formação da opinião pública e de uma cultura a serviço dos interesses coletivos. No caso específico da energia, considerações como as que o ‘Repórter 70’ fez, nesse insólito ziguezague editorial, podem até induzir posições, mas não lhes possibilita a demonstração. As pessoas ficam contra ou a favor sem saber dizer por que tomam essas posições. Correm o risco de seguir no rumo errado com a melhor das intenções. Ou de serem conduzidas como manadas por (maus) pastores, ou líderes inescrupulosos.
O Pará, com o maior potencial energético do país, tinha tudo para usar esse fator para acelerar o seu desenvolvimento. Quando a hidrelétrica de Tucuruí, hoje responsável por quase 10% da oferta brasileira de energia, começou a ser construída, na metade da década de 1970, todo esforço intelectual do Estado devia ter sido empregado (ou criado, em função de carências e insuficiências internas) para antecipar investimentos intensivos de energia capazes de agregar o máximo de valor ao produto que iriam gerar. Energia só é desenvolvimento para valer quando se desdobra na cadeia de produção até chegar aos bens de maior valor possível.
Esse objetivo requer um enorme esforço para antecipar a história, simulando processos econômicos e tecnológicos, fazendo ensaios e experimentos, agindo com competência para atrair interesses, combiná-los, correlacioná-los, induzi-los. Mas Tucuruí surgiu à sombra do mais rigoroso autoritarismo e vinculada à determinante inflexível de servir a um modelo de exportação in natura das riquezas do Pará. O professor Aloysio Chaves tentou quebrar esse verticalismo de mando federal, a serviço de interesses internacionais, quando criticou o monopólio em poder da União do planejamento que realmente decide, mas ficou na intenção. Logo foi obrigado a se enquadrar, sob pena de não assumir o governo, que exerceu exatamente quando o modelo (materializado no II PDA – Plano de Desenvolvimento da Amazônia – para o qüinqüênio 1975/79) funcionou a pleno vapor, plantando as sementes que germinam até hoje.
Desinformado e desorientado
Ao invés de avançar na cadeia produtiva, o Pará marcou passo no início do processo. O valor da produção cresceu como ninguém podia prever, tanto por conta do salto nos preços das commodities no mercado mundial, com a entrada em grande escala de países emergentes como a China e a Índia, quanto pelo incremento no volume de produção, em escala que também não esteve ao alcance dos melhores profetas. O Pará é um produtor de commodities de importância internacional. A energia se tornou uma dessas matérias primas, que só se transforma em insumo industrial quando deixa as fronteiras do Estado.
Ser o 3º maior exportador de energia bruta do Brasil é um título que avilta o Pará. Dos 4,2 milhões de quilowatts que a hidrelétrica de Tucuruí gera na sua potência máxima, engolindo mais de 12 milhões de litros de água do rio Tocantins a cada segundo, 55% são transferidos para outros Estados, 28% são absorvidos pela Albrás, a 8ª maior fábrica de alumínio do mundo (e a maior fornecedora individual de lingote do Japão), e apenas 17% são fornecidos à Rede/Celpa, que assim atende o Pará. A empresa não chega, porém, a 25% dos habitantes do Estado. São quase 1,8 milhão de cidadãos até hoje excluídos do benefício proporcionado pela quarta maior hidrelétrica do planeta e a maior inteiramente nacional, já que Itaipu é brasileiro-paraguaia.
Não há mais energia descomprometida no Pará? Aparentemente, não. A expansão da Albrás está sendo vinculada a uma usina térmica a carvão, que é mais cara e muito mais suja do que uma hidrelétrica. Se as usinas de fonte hidráulica estão interditadas, por serem consideradas nocivas ao meio ambiente e à população nativa, qual a alternativa para acrescentar mais energia e atrair novos investimentos para o Pará, além de viabilizar os que estão em fase de crescimento? Deve-se expandir a geração de energia ou é melhor deixá-la como está?
São algumas das perguntas que as angústias e impasses vividos atualmente pelo Pará impõem. As respostas jamais serão alcançadas à base de primarismos, superficialidades, irresponsabilidades ou caprichos de alguns poderosos. Sentenças finalistas, que são lavradas sem qualquer compromisso com sua fundamentação e demonstração, acabam criando um mundo de ilusão e fantasia. Pessoas que manifestam uma convicção tão firme como o redator do Repórter 70 e depois voltam atrás e dizem coisa completamente diferente, quando enfrentam argumento contrário, estão despreparadas ou então são movidas por má-fé ou leviandade.
O Pará tem pagado um preço muito alto pelo despreparo das suas elites. Às vezes elas assumem até discurso simpático e bonito, mas não resistem à contradita daqueles que são os que mandam de fato, nem sempre dando a impressão de que são mesmo os que contam nas decisões. Querem fazer demagogia barata, sem enfrentar as agruras de conhecer a realidade, ou apenas se servem do povo para tirar vantagem na relação conflituosa do Estado com as grandes empresas, pivôs desse modelo baseado na exaustão dos recursos naturais através de exportação maciça, com o mínimo de transformação econômica e de distribuição de renda. Na maioria dos confrontos, como o que O Liberal parecia que ia liderar (e, mais uma vez, frustrou), o povo continua desinformado e desorientado, enquanto os espertos (que raramente são expertos) tiram vantagens pessoais em nome do interesse coletivo.
Manipulação, embromação
Se o jornal dos Maiorana se satisfez com as duas notas, mais uma vez abandonando o tema, a opinião pública deve continuar a aprofundá-lo para tentar mudar as regras vigentes, que prejudicam ao invés de beneficiar o Pará. Para alertar os leitores sobre o tamanho da tarefa, não se deve esquecer que a atuação da Agência Nacional de Energia Elétrica se restringe ao âmbito da geradora e da concessionária de energia, sem chegar ao consumidor. Assim, o reajuste da tarifa não inclui o ICMS, o principal imposto estadual, que tem no Pará a maior alíquota nacional, de 30%.
Ao estabelecê-la, os tucanos foram buscar no bolso do povo a compensação pela perda tributária com a lei Kandir (que desonerou as exportações) e a cobrança no ponto de recebimento da energia e não na origem. Sem enfrentar a verdadeira causa do problema, o PSDB atacou seu reflexo, investindo sobre o lado mais fraco da contenda, o povo.
Lado fraco, aliás, por ser privado das informações que poderia usar como arma em sua defesa, caso dispusesse delas nos momentos certos e da forma adequada, e não fosse manipulado e embromado por lideranças como a de O Liberal. Ou se dispusesse de representantes mais identificados com o próprio povo e os seus interesses. Sem esses elementos, o Pará tem sido apenas o cenário da sua história, não o seu autor, como tinha que ser. E podia ser.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)