DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"A política como jogo", copyright Diário de Notícias, 23/11/03
"O leitor e membro do Partido Socialista, António Brotas, escreveu à provedora a propósito de um texto que enviou ao DN, com pedido de publicação, na sequência da ?carta aberta? do deputado do mesmo partido, Manuel Maria Carrilho, publicada pelo jornal em 23 de Outubro, na qual o deputado abordava a situação interna do PS e defendia um congresso antecipado.
António Brotas afirma que o jornal ?deixou passar o impacto da carta? sem publicar o seu texto, apesar de ele ser ?esclarecedor? e poder ?estimular o aparecimento de outros que contribuíssem para focar a atenção do público em problemas? (…) que não são só do PS mas respeitam ?ao funcionamento interno de todos os partidos portugueses? e são ?de importância fundamental para a ?nossa Democracia?. Para António Brotas, ?o DN tratou o conjunto dos socialistas portugueses e, em particular, os militantes do PS, como uma massa informe, apta para ler textos escolhidos pelo DN mas sem capacidade para emitir opiniões próprias?. Pede, pois, à provedora que ?diga se considera ter sido correcta esta actuação?.
O (então) director, Mário Resendes, afirma que o DN reservou ao texto de António Brotas o tratamento habitual conferido às cartas dos leitores ? publicação de excertos na secção ?Meu caro DN? ? devendo-se o atraso na publicação à existência de ?grande lista de espera?.
Vejamos: Em primeiro lugar, importa referir que a carta aberta de M. M. Carrilho, quer pelo alcance do seu conteúdo, quer pela notoriedade do seu autor, se revestia de indiscutível interesse público. Por outro lado, o facto de o documento ter sido cedido, em exclusivo, ao DN para publicação no próprio dia da realização de uma Comissão Nacional do PS considerada decisiva para o futuro da liderança do secretário geral, constituía uma ?mais valia? para o jornal e daí o destaque que lhe foi conferido ? a quase totalidade da primeira página. Pode, é certo, discutir-se se uma carta aberta ?aos socialistas?, como dizia a manchete, mereceria tal destaque. O DN considerou que merecia, conferindo-lhe dimensão nacional (embora nos dias seguintes não tenha feito a ?exploração do sucesso?).
Em segundo lugar, do ponto de vista jornalístico, a carta podia ter sido encarada de duas maneiras: como um contributo para um debate alargado em torno da liderança do PS, que o jornal promoveria dada a sua relevância nacional, ou como um documento isolado, cujo ?valor-notícia? residia, essencialmente, no seu caracter polémico e na notoriedade do seu autor, não desejando o DN ir além da sua publicação. Parecendo coincidentes, as duas abordagens possuem diferenças essenciais.
O tratamento dado pelo DN à carta de M. M. Carrilho insere-se na segunda abordagem, como se deduz do enquadramento que lhe foi conferido. De facto, quer o título de apresentação ? ?Desafio a Ferro? ? na primeira página, quer o seu enquadramento no tema ?Casa Pia?, nas páginas seguintes, ou o título da página dois ? ?Carrilho afronta liderança de Ferro e as fotografias dos dois protagonistas ? Ferro Rodrigues, em movimento descendente (des)equilibrando-se sobre uma corda e M. M. Carrilho movimentando-se em sentido ascendente ? mostram que a carta foi valorizada, não pelos aspectos substantivos do seu conteúdo mas, essencialmente, pela posição de ?desafio? e ?afronta? ao secretário geral, com que o DN a encarou. A discussão pública que a carta podia ter proporcionado, dentro e fora do campo partidário, reclamada por António Brotas, não estava, aparentemente, nos objectivos do DN. Aliás, após a polémica desencadeada nesse dia, com grande repercussão nas televisões, o DN esqueceu a carta.
Por outro lado, o tratamento jornalístico conferido pelo DN à carta do deputado confirma algumas tendências actuais da cobertura jornalística da actividade política, entre as quais, o ?negativismo? e a valorização da dimensão de ?jogo? e de ?combate? entre pessoas; a fixação nas lutas inter e intrapartidárias; o excesso de interpretação em prejuízo do relato dos acontecimentos; a ?fulanização? da política e o elitismo na escolha de quem tem, ou não, ?importância? para aceder ao espaço público.
Ora, estas tendências ?despolitizam? os cidadãos e minam o debate dos temas substantivos, tornando o jornalismo político um campo de conflito permanente. Ao invés de contribuir para desenvolver as potencialidade da democracia, a cobertura da actividade política, assim encarada, aliena os cidadãos, levando-os a olhar com desconfiança a política e os políticos.
A contribuição pública que A. Brotas pretendia dar ao debate aberto pela carta de M. M. Carrilho, como outras que eventualmente surgissem, faria todo o sentido se o objectivo do jornal, ao publicá-la, tivesse sido abrir uma discussão pública para esclarecimento dos cidadãos sobre ?o funcionamento interno dos partidos portugueses? como sugere A. Brotas. Essa teria sido, aliás, uma maneira de o DN servir e apoiar um debate político de interesse público.
Mas não era esse o objectivo.
Bloco-Notas
A política como jogo ? Protesto de deputados socialistas
Um protesto dirigido ao DN por deputados do Partido Socialista e a resposta da jornalista do DN, Maria Henrique Espada, publicados no dia 14 pp., na secção ?Meu caro DN?, ajudam a perceber algo sobre as relações entre políticos e jornalistas. Vejamos.
?À socapa?…
Os deputados socialistas referem-se, nessa carta, a uma notícia publicada no passado dia 10, ?a propósito da reunião da Comissão Nacional (CN) do PS, intitulada ?PS refém de Ferro?, em que a jornalista ?cita declarações de dirigentes socialistas não identificados? segundo os quais Ferro Rodrigues ?se estaria a escudar no partido para se proteger dos estilhaços de um processo judicial??. Considerando a afirmação ?insultuosa? para o líder do PS, os deputados afirmam que se houve dirigentes que não disseram ?em voz alta? o que ?terão dito á socapa? à jornalista esta, ?ao citá-los?, está a ?fazer vingar uma tese de facção?. ?Quem quer veicular opiniões pessoais ou de facção?, dizem os deputados, ?deve fazê-lo em artigos de opinião assinados e não sob a forma de ?notícia? baseada em fontes não identificadas?.
… e ?à socapa?
Na resposta aos deputados, a jornalista afirma estranhar ?que os signatários do protesto não se tenham indignado, por exemplo, quando o seu próprio secretário geral usou, recentemente, dos mesmos métodos? e acrescenta que ela própria assinou uma notícia, na semana anterior, ?sobre o facto de Ferro Rodrigues estar em reflexão? quanto à sua continuação no cargo de secretário geral?, o que lhe parece ?grave?, na medida em que ?estava em causa? a liderança do PS?.
Usando os mesmos argumentos dos deputados, a jornalista afirma que ?alguém? lhe disse ?à socapa? que ?o líder admitia sair?, acrescentando que em ?artigos de opinião assinados ou nos órgãos do partido?, Ferro ?nada dissera até à altura?. Parece-lhe, pois, lógico que ?se se admite o acesso da direcção de um partido? aos jornais, ?à socapa?, também se devem admitir ?iguais circunstâncias aos que a criticam? (isto é, que se pronunciem ?à socapa?). Conclui, então, a jornalista que ?provavelmente, em matéria de fontes em off, será esse o único equilíbrio possível?.
Pluralismo ?à socapa?
Estas duas peças trazem á superfície ?regras? implícitas, embora não formalmente assumidas, do relacionamento entre políticos e jornalistas. Por um lado, uma confluência de interesses: os jornalistas precisam de notícias enquanto os políticos precisam dos jornalistas para passarem as suas mensagens. Por outro lado, os jornalistas aceitam que certas informações lhes sejam fornecidas ?à socapa? porque de outra maneira não as obteriam. Ao participarem nesse processo, os políticos ficam ?nas mãos? dos jornalistas. No momento em que uma parte quebra as ?regras do jogo?, vem ao de cima o lado sombrio da relação entre ambas. Neste caso, verificou-se uma espécie de pluralismo ?à socapa?."