Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Memória, ditadura e pau-de-arara

A TAÇA DO MUNDO É NOSSA

Luiz Artur Ferraretto (*)

Fui ao cinema para rir um pouco com aquilo que a imprensa considerou ao longo da semana uma forma humorística de revisitar a ditadura militar, ironizando algozes e vítimas de um dos períodos mais terríveis da história brasileira. Não esperava de A taça do mundo é nossa, película cometida pela turma do Casseta & Planeta, com o aval econômico das Organizações Globo, o sense of humor de um Monty Phyton a satirizar crenças políticas e religiosas em A vida de Brian ou sequer o senso crítico dos velhos humoristas ? velhos para Bussunda e companhia, fique claro ? como Max Nunes a redigir bons e inesquecíveis tipos e textos para programas antológicos como Planeta dos homens ou Viva o gordo. Neste país em que qualquer convicção mais profunda esfuma-se à conveniência do momento, esperava, com uma dose de bonomia, pelo menos rir um pouco.

Fiquei constrangido, é certo, e, talvez, minhas relações pessoais tenham pesado um pouco neste momento que tanto se fala da baixaria na televisão brasileira. E, nestas críticas, me parece, sobra um pouco de preconceito de classe. É de mau gosto o que o povão assiste e a elite finge não ver. Neste saco, entram Ratinho e Gugu, Hebe e Faustão. Ficam de fora os textos pobres do pobre humor nacional, reduzido a um palavrão a fazer graça. Olhem o terrível que é ? e falo como gaúcho ? as constantes referências à cidade de Pelotas. Terrível não porque fira a hombridade dos meus conterrâneos. É terrível saber que brincar com a opção sexual de alguém provoca risos. Mais do que isto, saber que atribuir a alguém o caráter de homossexual torna-se uma ofensa discutida em bares e comentada nas esquinas. Mas isto não é culpa dos cassetas e planetas.

Antes de continuar, há ainda um pequeno parêntese a ser aberto. Todo assunto é passível de filme, seja drama ou comédia. Tragédias históricas maiores já foram retratadas na forma de comédia nas telas do cinema, mas com sensibilidade e não grosseria. Por exemplo, o genocídio de seis milhões de judeus, durante a Segunda Guerra Mundial, inspirou obras como Trem da vida (Train de vie, França/1998), de Radu Mihaileanu, ou ? mais conhecido e oscarizado ? A vida é bela (La vita è bella, Itália/1997). Não se trata, portanto, de condenar o direito de crítica inerente ao humor ou mesmo a propriedade de abordar este ou aquele assunto.

Isto posto e fechado o parêntese, vamos de volta ao constrangimento gerado por A taça do mundo é nossa. Constrangimento ? fique claro ? pelo desconhecimento histórico das pessoas, pela falta de memória nacional e pelo desrespeito com as vítimas da ditadura militar. Assisti ao pouco que suportei do filme em um destes cinemas multinacionais de relativo conforto. Ao meu lado, a cada palavrão, um rapaz ria de forma quase doentia. Chegava a comentar a graça do pau de arara, imaginando um desproporcional falo desta ave tão tropical. Nunca talvez tivesse ouvido ou sabido o que era o tal pau de arara e a diferença entre o de daquele da tortura e o da deste trocadilho tão especial descoberto por ele e, com certeza, sequer imaginado pelos roteiristas de A taça do mundo é nossa. Do outro lado, uma pessoa, muito próxima de mim, filha de um torturado, assistia às mesmas cenas. Filha, portanto, de alguém que lutou pela liberdade, inclusive, de se cometer filmes como este ou de se rir sem atos institucionais a brandir espadas censoras sobre cabeças bem ou mal-informadas.

Lembrei, na hora, de outro filme, de outra sessão de cinema. Em uma tarde de verão na cidade de Porto Alegre, a da estréia de Pra frente Brasil, suas cenas de tortura, as pessoas batendo palmas de pé, respirando uma liberdade ainda não totalmente conquistada. Numa das sessões, comentada entre os estudantes da época, alguém irrompeu em choro compulsivo na seqüência em que o personagem de Reginaldo Farias era duramente torturado. Esta pessoa ? uma vítima da ditadura ? via-se, ali, retratada em um espelho tecnicolor que, meses antes, enfrentara a censura no Festival de Gramado. Foi há 20 anos e o rapaz ao meu lado, agora, sabe apenas do pênis da arara. Para quem viveu aquilo, são soldados da polícia militar a invadir a sua casa e carregar para o esquecimento pais, irmãos, maridos, filhos, amigos, enfim, cidadãos próximos ou distantes, conhecidos ou desconhecidos. Muitos deles, desaparecidos. São, também, oficiais do Exército a verificar o cumprimento da censura política nos jornais momentos depois da decretação do Ato Institucional no 5. E são também verdugos a esperar que os esqueçccedil;am para que possam dormir tranqüilos. Ou, quem sabe, rirem daqueles perigosos e ridículos comunistas como faz agora, ao meu lado, este rapaz, o da genitália da arara. Afinal, como repete a todo momento um personagem deste A taça do mundo é nossa, não foi para isto que os milicos fizeram aquela revolução de 1964?

(*) Jornalista e professor da Universidade Luterana do Brasil, em Canoas/RS