Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O repórter e o romancista no Iraque

DIÁRIO DE VARGAS LLOSA

Wladir Dupont (*)


Diario de Irak, Mario Vargas Llosa, 171 pp., Editora Aguilar/Santillana, selo Alfaguara, Buenos Aires, 2003. Preço: 25 pesos argentinos; exterior: US$ 8,50. E-mail: <info@alfaguara.com.ar>


O risonho e corpulento cidadão iraquiano Ahmad Hadi, jornalista e dramaturgo nascido no sul do pa&iiacute;s, região xiita, entre as cidades místicas de Nayaf e Kerbala, onde, ele garante, se produz "o melhor arroz de todo o Oriente Médio", será um dos poucos que trabalham com entusiasmo e otimismo em Bagdá, nem por isso sendo menos cauteloso por conta dos riscos de uma cruenta pós-guerra, contente sobretudo por poder escrever com "liberdade absoluta, como nunca houve na história do Iraque".

Ao longo de 35 anos de prepotência criminosa do agora patético prisioneiro Saddam Hussein e seu agonizante partido Baath, ele conta, os jornalistas, além de sofrer feroz perseguição da censura política, ganhavam cinco dólares por mês. Hoje ganham 200 dólares.

"Não é um belo progresso?", pergunta, rindo, ao escritor e também jornalista peruano Mario Vargas Llosa, que durante 12 dias, entre junho e julho de 2003, percorreu o Iraque para escrever uma série de reportagens e artigos, depois publicados no jornal espanhol El País e reproduzidos na imprensa brasileira pelo Estado de S. Paulo.

Oito reportagens e quatro artigos sobre a gente iraquiana e seu sofrimento estão agora reunidos em livro, Diario de Irak (169 pp., Aguilar), ilustrado com fotos de sua filha Morgana e há pouco lançado no México. O autor explica que decidiu armar esse livro "para corrigir as impressões equivocadas, ou imprecisas, de minha breve experiência iraquiana ? que poderiam ter deixado uma leitura fragmentada das matérias".

Preocupação talvez um pouco exagerada. Pois essa fragmentação que teme Vargas Llosa, inevitável no texto jornalístico, é neutralizada por sua competência como romancista, capaz de envolver o leitor na descrição minuciosa de um ambiente exótico, o som de um falar peculiar, o sabor de uma comida estranha, até mesmo o deslizar quase imperceptível do suor num rosto mais escuro.


"Tenho a sensação, ao andar pelo centro de Bagdá, de caminhar por um mundo conquistado pelo deserto circundante, que manchou com cor-de-terra as fachadas dos prédios, as praças e as árvores, os monumentos e até os rostos e roupas das pessoas. Os corpúsculos ressecados flutuam no ar e penetram na boca e nos narizes do transeunte, impregnando-os de um gosto arenoso…"


Pior não há

Nesse território poluído e confuso, onde a morte espreita em cada esquina ou de cada telhado, o quarentão Ahmad Hadi edita o jornal diário Azzaman (O Tempo), fundado em 1991 por um célebre jornalista da oposição, exilado em Londres, Saad Al-Bazaad, agora com quatro edições ? na capital inglesa, nos Emirados Árabes, em Basora, e em Bagdá; esta última produzida na casa de Hadi, com a ajuda de 45 colegas, dos quais 15 mulheres, a maioria muito jovem, chegados esbaforidos das ruas e depois espremidos e curvados entre e sobre computadores, volta e meia apagados pela queda de eletricidade, ocorrência rotineira na cidade.

A edição de Bagdá, que começou a circular em abril, tira hoje 60 mil exemplares e é, na opinião do editor, "na frenética proliferação de jornais que aparecem desde então, o mais consultado, talvez o mais influente".

Sempre rindo, as vezes gargalhando, Hadi confessa a Vargas Llosa que com seu primeiro salário de 200 dólares saiu correndo comprar uma peça faltante para religar sua geladeira, parada havia dois anos. Sua mulher, professora primária, comprou uma antena parabólica que lhe permite sintonizar estações de TV do mundo inteiro.

O jornalista iraquiano diz que, mesmo atolado no caos urbano que é hoje Bagdá, em meio a atentados terroristas dos partidários de Saddam e a repressão imediata do exército da Coalizão, uma destroçada infra-estrutura de serviços, ruas e estradas militarizadas, o povo quer saber das coisas, quer ter mais informação sobre os horrores ainda ocultos do regime deposto.

Embora crítico velado da presença de soldados americanos, espanhóis e ingleses, Hadi se mostra otimista, e "por uma razão muito simples: pior que Saddam Hussein não pode existir nada. Depois dessa experiência atroz, só podemos melhorar".

Tudo isso ele diz saboreando um bom escocês, "não mais o álcool venenoso de antes, vendido a granel".

Conversa cancelada

Como seria natural, Vargas Llosa, leitor voraz, interessou-se também pela sorte do riquíssimo patrimônio cultural e artístico do Iraque, berço da antiga Mesopotâmia, em grande parte saqueado e destruído "por hordas de bárbaros", uns 30 mil delinqüentes comuns soltos nas ruas por ordem de Saddam, já no fim da guerra, principalmente dentro da Universidade de Bagdá.

Assim, no capítulo 4, "Saqueadores e livros", o escritor descreve como esse bando de vândalos queimou bibliotecas inteiras, roubou peças arqueológicas de museus, não deixou pedra sobre pedra, "como um enxame enlouquecido de Ali Babás, uma nuvem de lagostas famintas, que arrasaram a capital iraquiana", o exército americano só olhando, de longe.

Desolado, o ilustre visitante estrangeiro reflete: "A ditadura arrasou literalmente uma sociedade que há quatro séculos alcançara um elevado nível cultural, com hospitais e universidades que eram os mais modernos do Oriente Médio e profissionais à altura dos melhores do mundo…"

Num dos quatro artigos agregados ao conjunto de reportagens, com o fim de atualizar o material publicado, intitulado "Com as botas calçadas", Vargas Llosa faz uma derradeira homenagem ao seu amigo Sérgio Vieira de Mello, diplomata brasileiro morto no atentado terrorista contra os escritórios da ONU em Bagdá, por ele chefiados.


"Estive com o Sérgio uma dúzia de vezes em diferentes épocas de sua carreira… e sempre me impressionou seu profundo conhecimento do assunto ? as guerras civis no mundo, as quais ele corria para negociar a paz ?, a sagacidade de suas análises, e talvez, sobretudo, quando descobri que o contato e toda uma vida com as formas mais atrozes da dor humana nunca endureceram o coração desse alto funcionário da ONU…

?Você não se cansa de tantos horrores? Por que veio se enfiar neste merdier?? ? perguntei-lhe. Ele respondia: ?Não encontrei bons argumentos para sair fora?, se desculpava, com seu eterno sorriso de orelha a orelha."


Segundo Vargas Llosa, Sérgio só se queixava mesmo era da falta de tempo para ler, ele que era também outro leitor apaixonado.


"?Alguma vez vamos ter que falar de literatura?, despediu-se o brasileiro pela última vez do amigo peruano. ?Uma conversa, amigo Sérgio, que fica definitivamente cancelada.?"


(*) Jornalista e escritor brasileiro radicado no México