AMARAL RAPOSO
Sebastião Jorge (*)
Amaral Raposo era um jornalista que se transformava num felino bravo, literalmente, quando a caça era alguém que desafiava as regras da gramática. O nome diz tudo. Há que se entender esse lado selvagem.
Não tolerava escorregões, nem pequenos deslizes por parte daqueles que se aventuravam em fazer acrobacias na superfície imaculada de uma página de jornal ou de um livro. Aquela justificativa que se respalda na elegância, para excluir a culpa dos que cometem tal pecado, com base no aforismo de Ferreira Gullar, "a crase não foi feita para humilhar ninguém", com ele não funcionava.
Erro era erro e tinha que ser combatido com palmatória grossa. O castigo não apenas doía como maltratava… Paciência, quem não gostasse. Que se fossem queixar adiante ou pedir arrego a um especialista no assunto. Muitos receberam o ato-disciplinar sem esboçar reação, enquanto outros, reconhecendo os escorregões, ainda elogiavam o mestre, passando recibo pelos pecados idiomáticos. Houve quem reagisse.
O bicho-homem ou bicho-intelectual, quanto mais famoso na altura e nome, maior era a fúria contra a negligência. Ele investia pesado e o fazia com a seriedade e a coragem de um gladiador. Nada o demovia no intento em sovar o alvo. Era impiedoso nesses momentos. Quem gostava eram os leitores, sequiosos por mais tunda no lombo dos descuidados com o idioma.
Amaral Raposo era um predador natural, atento e de olho na ousadia dos que atravessavam o seu terreiro. Pouco interessava a procedência da autoria. O poder público com as mensagens e notas oficiais, as quais nem sempre zelavam pelas elementares regras de gramática, era outro repasto saboroso para satisfazer o apetite desse demolidor de mediocridades. No dia 27 de maio, ele completou 100 anos de nascimento. A Academia Maranhense de Letras declarou 2003, como o Ano de Amaral Raposo.
O riso e a bronca na revisão
Os livros lançados, então, na área da prosa e poesia era motivo para armar os ataques e armazenar desafetos, principalmente através das colunas que escreveu, ao longo de muitas décadas, com os títulos: Coisas do nosso tempo, Os carrascos do idioma, Os inimigos do idioma, ou para variar, as Sabatinas dominicais, nas quais despia as vítimas, deixando-as envergonhadas e expostas ao sabor do riso. A palavra sabatina o submeteu a uma gincana cultural obrigando-o a explicações, acusado de usá-la mal, juntamente com dominicais. Soube justificar a colocação.
Estilo claro, incisivo, dentro do rigor clássico, sem afetações, como convém a um arqueiro da gramática, apontava os erros, com extrema irreverência. Sentia um estranho prazer em maltratar as vítimas.
José Chagas, esse refinado cronista, conhecido como exímio manejador da espada que Bilac considerava como "a última flor do Lácio", confessou, no texto "Amaral Raposo, ?contra o jogo da semântica?", que costumava desopilar o fígado, lendo não mais um Mark Twain, nem Bernardo Shaw, nem Daninos, nem Vão Gôgo. "Basta abrir qualquer gramática da língua portuguesa", dizia, para acentuar: "Não sei de nada mais humorístico". Com o mestre dos inimigos do idioma, então, dava boas gargalhadas. Quanto às investidas do jornalista, sentenciava:
"O Amaral, porém, tem a ingenuidade de pensar que algo ainda pode ser salvo neste naufrágio em que a própria Ilha se afunda. Tamanha é a indigência gramatical que ninguém precisa ser gramático para ver. E aí está por que Amaral protesta, e grita, e luta, mas uma luta parecida com a de D. Quixote contra os moinhos de vento".
Lago Burnett, outro cronista de fino trato, que introduziu o Manual de Redação no JB, em Avionemos sobre os aeroplanos, fala da aversão do mestre pelas palavras que considerava fora do contexto, como por exemp1o: aeroporto, que corrigia para aeroplano. Acrescenta Burnett: "(…) não admitia que se desse o nome de aeroporto a pistas de pouso e decolagem de aviões em terra firme. Mesmo com o prefixo aero, a palavra porto, para ele, estava vinculada direta e tradicionalmente a mar e navio". Adiante dá depoimento sobre o autor das sabatinadas: "Amaral era dos últimos representantes de uma geração de polemistas que teve seu ponto alto em Erasmo Dias".
Fernando Viana, médico, jornalista e político, e que lhe pintou o perfil em versos, com traços leves, cheios de ironia, mas fiéis ? "Boêmio de nascença e profissão, / É-lhe a prova, mais certa que as do nove, / Um cigarro, uma cana e um violão!" ? conta que em Salvador (BA), onde Amaral estudou, o aluno teve um diálogo curioso com o professor… O assunto era Castro Alves e seu livro Espumas Flutuantes, tendo Amaral contestado o título, por considerar que toda espuma é flutuante.
A nossa Raposa ? corrijo, o nosso Raposo ? durante quase toda a vida como jornalista, até antes da morte, não fez outra coisa que não tenha sido zelar, com unhas e dentes, talento e conhecimento de causa, os princípios elementares do português. Junto à revisão dos jornais, tornou-se conhecido pela exigência e brigas, como o "carrasco dos revisores. Dava bronca, esclarecimento público e puxão de orelha os erros que passassem à revelia dos originais. Numa das Sabatinas dominicais reclamava:
"Em artigo que assinei, em nossa edição de quarta-feira última, sob o título "O Maranhão na mensagem presidencial", escrevi: ?Diz-se mais. Dizem-se coisas impossíveis…? O revisor da matéria, amavelmente, corrigiu-me e publicou: Dizem-se mais que! Que fazer?"
Inconformado reclamava ainda:
"Pois, bem, apesar da minha luta no sentido de que a revisão me não mutile os trabalhos, até esta data, jamais consegui tal milagre".
Perseguição política e um quase-suicídio
José Raposo Gonçalves da Silva nasceu e se batizou com este nome, porém, se consagrou no jornalismo e morreu como Amaral Raposo. Natural de Grajaú (MA), veio ao mundo a 27 de maio de 1903, falecendo a 10 de abril de 1976. Pertenceu a uma geração de jornalistas com gosto pela boemia. Tocava violão e adorava uma serenata, tanto que o grajauense Chico Roas, lamentando a sua ausência nas noites daquela cidade, compôs esta quadra: "O Grajaú de boemia/ De carnaval e muita orgia/ Das ladeiras empinadas/ E das lindas madrugadas, / De Tunico e Amaral (…)". Lago Burnett é quem lembra que o mestre começava cedo a praticar a boemia, a partir das 8h, porém, às 12h não mais um copo.
Era, sem dúvida, um autodidata com inclinação à filologia. E nela se aprofundou, conhecendo as filigranas do idioma. Tornou-se íntimo de Luís de Camões ao estudar Os Lusíadas, de Luís de Camões e de Rui Barbosa, pelo interesse pela famosa Réplica e Tréplica entre o grande baiano com o antigo professor, Ernesto Carneiro Ribeiro, por questões de gramática. Com um grande lastro cultural exerceu as funções de promotor de Justiça, diretor da Biblioteca Pública Benedito Leite, chefe de gabinete do interventor Saturnino Belo, deputado estadual pelo PSD, Serviço de Proteção ao Índio e diretor da Assembléia Legislativa; pertenceu à Academia Maranhense de Letras, na qual ingressou sem pedir votos e fez um discurso de posse sem verbo; escreveu em diversos jornais de São Luís: O Combate, Diário de São Luís, Jornal do Dia, O Imparcial, Jornal Pequeno, Correio do Nordeste; e trabalhou na Rádio Timbira e Difusora.
O começo da vida nas redações não foi fácil, amargando frustrações que lhe deixaram profundas marcas. Escrevendo em O Combate, em 1928, um jornal político e de oposição, que intimidava os adversários com uma linguagem ríspida, às vezes ofensiva: com denúncias que provocavam a ira dos inimigos, ações comuns à época, ele foi intimado a deixar o Maranhão. A ordem partiu do capitão Zenóbio da Costa, chefe de Polícia do governador Magalhães de Almeida. Aquele militar tornou-se famoso no Estado pelos atos de violência, e o jornalista, como adepto de Marcelino Machado, líder do grupo oposicionista, vinha incomodando. Ao receber uma passagem de navio de terceira classe, viajou no ano seguinte, com destino à cidade de Salvador (BA), onde permaneceu oito anos. Na presença do capitão Zenóbio, este não fez rodeios, contou o jornalista:
Por isso fui aconselhado por aquele militar a retirar-me daqui, pois, segundo me disse, da próxima vez que eu fosse chamado à polícia, mandaria ele furar-me as orelhas com agulha de saco. Tinha apenas 26 anos de idade!
Filho de família pobre, sem dinheiro, desempregado e nenhuma pessoa conhecida em Salvador, a não ser o amigo, Fernando Viana, que cursava medicina, cujo endereço ele perdeu, viu-se no dilema entre viver e morrer. Pensou em suicídio. Era Natal de 1929 ? "Natal que não esqueço", escreveu depois. Debruçado sobre uma janela, ao pé da Ladeira da Montanha, teve este pensamento: "Jogar-me do Elevador Lacerda abaixo e acabar com o trem da existência".
Amaral foi salvo não apenas pela dúvida, como pela ponta de um cigarro de marca "Trocadero", que após fumar, jogou o toco no local onde o seu corpo se espatifaria, para alegria da crônica policial. Viu alguém juntando a bagana e refletiu: "(…) há gente muito mais desesperada, muito mais desiludida, muito mais pobre do que eu. E, entretanto, talvez não pensasse em desertar da vida…" Uma torrente de esperança penetrou no seu coração e reagiu. Pouco tempo depois, fruto de muito estudo e esforço, era redator de O Jornal, dirigido pelo Dr. Leopoldo Afrânio Bastos do Amaral, que veio a ser o primeiro interventor nomeado na Bahia, após a revolução de 30. Vitorioso, confessou:
"E, eu, que, doze meses antes, pensava na morte como única solução para o meu dramático problema, era Inspetor Geral da Instrução Pública, junto ao Ginásio Clemente Caldas!"
A polêmica que a cidade vibrou
Confesso que fui responsável por uma das polêmicas mais comentadas em São Lu&iiacute;s, isto, por maldade e prazer em assistir a um novo duelo verbal entre dois personagens respeitáveis no universo cultural da cidade: o jornalista Amaral Raposo e o professor Clodomir Caldas, que lecionava Latim e Português em diversos colégios. Fui seu aluno e sofri com as exigências. Prometi vingar-me. Eu trabalhava, em 1963, no Diário da Manhã, jornal fundado e de propriedade do governador Newton de Barros Bello.
Como ex-repórter do jornal Correio do Nordeste, fundado por Zuzu Nahuz, onde Amaral escrevia e era tratado com mordomias, considero-me um privilegiado, ao receber suas orientações e conselhos sobre jornalismo. Fiquei gostando dele e sempre o procurava para tirar dúvidas. Era exigente, mas amigo. Ao saber que o professor Clodomir publicou um Manual de Literatura, tendo uma semana antes, feito severa crítica a uma mensagem do governo do Estado, pela quantidade de erros de gramática, foi logo avisando, referindo-se àquele livro: "(…) Também será objeto das próximas Sabatinas e que, embora pareça mentira, não está, sob o aspecto em referência, muito melhor que a Mensagem!"
Assim, aconteceu. Na análise da obra encontrou barbarismos, ambigüidades, vícios de linguagem, cacofonia e redundâncias que "o autor não quis ou não soube, escoimar as trinta e duas páginas de antelóquio [prefácio] em exame". Amaral observou esta frase: "(…) cuja confiança em minha firmeza de conhecimentos, na matéria que ensino, vitalizou-me". O jornalista mandou corrigir para: me vitalizou. O prof. Caldas escorregou na troca da preposição a com o verbo haver e a palmatória soou longe. Irritado com outros erros que considerou primários e como a gritar com um aluno relapso, disse sonoramente:
"Não sei onde li esta sentença punitiva: há livros que, finda a leitura, temos desejo de jogá-los fora. Outros há, que, ao lhe virarmos a última página, temos uma vontade irresistível de o atirar pela janela, mas com toda força!
Não farei isso com o do professor Caldas. Muito pelo contrário, vou guardá-lo, a fim de que, se algum estudante me perguntar que obras deve adquirir para entrar no mundo brilhante, mas traiçoeira, da literatura, eu lhe posso responder:
? Olhe moço. Tome este livro. E leia-o, leia-o muito, leia-o demais, leia-o enfim, até sabê-lo de cor e salteado. Só depois comece a escrever. Escreva, porém, exata e minuciosamente ao contrário de tudo quanto aí está. E posso garantir-lhe que você, dentro em breve, será um corretíssimo escritor da língua portuguesa!"
Logo depois de publicado o artigo acima, encontrei o prof. Clodomir Caldas na praça João Lisboa e comentei as críticas, perguntando-lhe se responderia. Disse que não, com desprezo, alegando não discutir português, com quem num outro artigo, tinha cometido quinze erros. Escrevi um texto para o Diário da Manhã e falei da conversa com o professor. Foi o bastante. A casa desabou. Amaral irritou-se e lançou ? Repto ao professor Clodomir Caldas. Primeiramente referiu-se à notícia daquele jornal para a certa altura instigar o contendor:
"Desafio, pois o Dr. Clodomir Caldas a apresentar essa prova.
E não quero prova quanto aos quinze de sua colheita. Quero-as apenas, quanto a uns dois ou três. É um repto que lhe lanço. Um repto que não envolve, somente sua condição intelectual de professor, mas, também, sua condição moral de cidadão".
Para finalizar, e como a chamar o professor para a briga, saiu com esta:
"Daí não há fugir. Ou vem às falas, ou ficará duplamente desmoralizado. Como professor, o que será um desastre e como cavalheiro, o que será uma lástima".
O professor Caldas demonstrando aborrecimento pelo episódio, mandou uma carta ao Diário da Manhã, recriminando o repórter por ter revelado uma conversa pessoal e ao mesmo tempo, falou em processá-lo. Confirmei tudo, em outro artigo, e ele terminou respondendo ao desafio, com este titulo: Ao repto de Amaral Raposo, no qual começou se desculpando de nada haver dito sobre o jornalista, para então entrar no mérito da questão… No seu entender o título da coluna Sabatinas dominicais estava errada e justificou:
"Sabatina é repetição, no sábado, das lições da semana. Não pode ser dominical. O fato do dia de sábado ser vizinho do dia de domingo não o faz passar a domingo. Assim, haveria alteração total no calendário por que segunda-feira passaria a terça-feira etc."
O jornalista na defesa enumerou diversos filólogos que apontavam na sua direção.
Quanto à acusação de cometer erros de vícios de linguagem, o prof. Caldas respondeu que ? "no mesmo período em que o ilustre jornalista se refere aos meus comete os seus" ? e citou como exemplo o verbo grifar, que é um estrangeirismo, e o verbo sublinhar, uma redundância. Clodomir acusou o desafiante de abusar da vírgula e fez gozação: "Amaral ainda é do tempo do 9 e do z", isto por considerá-lo incapaz de distinguir o emprego de ambas as palavras nas frases.
Quanto a esta acusação Amaral lembrou que a culpa foi da revisão e falou que o professor não apontou um só erro que teria cometido dos 15 acima aludidos. Voltou a atacá-lo, ao mencionar que "um homem que escreve friamente, "a sua pátria berço é a Inglaterra, (…) poderá, realmente, dar palpite em matéria de letras?" O prof. Clodomir Caldas encerrou a polêmica dizendo que admirava Amaral, enquanto este, fingindo tolerância, não se conteve e derramou uma forte dose de irreverência:
"Bem mestre. Até logo. Deus o ajude, a fim de que você, daqui a seis ou oito anos ? não deixo por menos ? possa publicar algum livro útil à literatura. Que também lhe perdoe, pelo que tem ensinado, até hoje, a seus ingênuos discípulos. Ou, quem sabe, às suas inocentes vítimas."
Cruzada contra os inimigos do idioma
Em nome do português saudável, Amaral Raposo ficava contra todos aqueles que contrariavam e agrediam as mais simples regras da gramática. Não dispensava das críticas ninguém. Muito menos a si mesmo. Assim o fez na coluna Os carrascos do idioma (de 1953), ao justificar um tropeço:
Dizem que a justiça para ser boa começa pelos de casa. Eis que inicio esta crônica, incluindo-me a mim mesmo, no rol dos Carrascos do Idioma. Com efeito, relendo meu artigo de 15 do corrente, encontro esta calamidade: "Além disso, ainda quando algum temerário consiga adquirir os volumes de que carece, ou a fatalidade o espera, isto é, a necessidade em que se encontra de desviar grande parte de seu tempo na conquista de outro meio de vida, uma vez que, se pretender sustentar a família somente com a irrisória e miserável retribuição com que LHES compram ou LHES exploram a inteligência, ACABARÁ pedindo esmola (Amaral referia-se à situação do jornalista).
Raposo corrige-se e a frase ficou assim:
"A quem me referia eu acima? Referia-me a ALGUM TEMERÁRIO. Logo, cumpria-me ter escrito ?retribuição com que LHE pagam ou LHE exploram a inteligência?. Depois disso, aquele ACABARÁ, no singular, bem que estivesse de acordo com o ALGUM TEMERÁRIO, não concordaria jamais com o LHES, empregado por mim duas vezes. Uma confusão tremenda… Coisas do nosso tempo".
Das observações não escapavam os colegas de redação, os jornais e suas notas sobre aumento no preço do exemplar, anúncios de cursinhos para o vestibular, convites de formatura; tinha como alvo ainda membros da Academia Maranhense de Letras, os poetas de plantão e candidatos a aparecerem na vida cultural da cidade, as mensagens e comunicados do governo nos três níveis. Todos se transformavam em matéria prima para comentários, sempre ácidos.
Nesses momentos virava uma espécie de H. L. Mencken (1880-1950), outro jornalista dos EUA, que se transformou no terror dos intelectuais do seu país e da Europa. Entre muitos medalhões não escaparam da pena mordaz um Dostoievski, D. J. Lawrence, Henry James e Theodore Dreiser. Pela iconoclastia com que avançava para cima das vítimas foi considerado pelo New York Times, como "o cidadão privado mais poderoso da América".
Agripino Grieco, conhecido no Brasil, pelo veneno nas críticas, era também intransigente nesse particular, tanto que não dispensou nem a Machado de Assis, ao acusá-lo de "escorregar na casca de banana". Amaral, igualmente, pela atuação no jornalismo e o papel que desempenhou como guarda e zelador do idioma em São Luís, foi sem dúvida o mais famoso e respeitado no seu tempo. Há muitas paradas que o envolvem nesse observatório das coisas da gramática, que se transformaram em primorosos episódios, dignos de melhor atenção.
No texto acima, após autopenitenciar-se, o que é raro no jornalismo brasileiro, analisou o artigo do seu colega de jornal, José Bento Neves, que escrevia na mesma página; chamando-o a atenção por colocar a expressão "saúde enferma", merecendo a seguinte observação: "No mesmo dia e nesta mesma folha, não andou no assunto, com melhor sorte, o meu brilhante confrade Dr. J. B. Neves, que, em seu artigo sob o título "Apenas um aspecto" escreveu: ?desgraçados que não dispõem de um vintém para atender aos reclamos da Saúde enferma?. Não pode haver saúde enferma. Ou pode? Não. (…)" ? interrogou o mestre.
O professor Telésforo de Moraes Rego, artista plástico e que dirigia um grupo teatral, não fugiu do seu olhar crítico. Numa entrevista a um jornal local, Telésforo reclamava do governador do Pará, Zacarias Assunção, por negar-lhe o teatro da capital, Belém, para apresentação de uma peça. Houve alguns erros de concordância e depois de emendá-los Amaral ficou solidário com a recusa daquela autoridade:
"Se isso realmente aconteceu, façamos justiça ao general Zacarias Assunção: Não tinha ele motivos para esperar grande coisa de elenco tão avesso às normas da concordância, às advertências da gramática, às regras de sintaxe, sem as quais, diga-se de passagem, não pode haver teatro, que se veja, e, muito menos, que se ouça!"
A respeito do Globo (vespertino que circulou de 1949 a 1960) e que trazia no expediente o título de um outro jornal, Pacotilha (1880-1938), e os quais foram comprados pelos Diários Associados, demonstrou-se surpreso: "(…) como queiram S. Luís é a única cidade do mundo, em que se publica um só jornal, com dois nomes". Na mensagem do governador Newton de Barros Bello, ele reclama dos assessores pela "seqüência incessante de espantosos solecismos" para denunciar com irritação: "Há ocasiões em que, como tomados de uma espécie de sadismo literário, conseguem o milagre de cometer tr&ececirc;s erros em duas palavras (…)". E não satisfeito diz que ouvidos insensíveis às cacografias levaram os redatores a escrever seguidamente "política governamental" , para condenar: "frase que nos leva, instintivamente, a procurar o lenço para levar ao nariz".
O soneto Falso amor de L. Felix mereceu cuidadosos reparos. Depois de transcrevê-lo e comentá-lo, foi impiedoso:
"Pelo que ai fica, o que se depreende é que o poeta do Falso amor é muito mais falso… Em seus versos não há gramática, não há ritmo, não há sentimento, não há inspiração, não há poesia, não há nada".
Por um jornalismo ético e o amanhecer do cronista
Amaral não era apenas um bom articulista, um exímio editorialista, mas o cronista sensível e criativo na exploração desse gênero do jornalismo que consagrou um Machado de Assis, um Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga ou os maranhenses Lago Burnett, Bernardo Coelho de Almeida, Josué Montello. O autor de Os inimigos do idioma fazia a diferença. Sabia atirar com todas as armas.
Era um jornalista ético. Houve um episódio na década de 50, entre ele e o diretor de o Jornal do Dia, João Pires Ferreira, o J. Pires, pessoa de sua relação de amizade, que reafirma esse ponto de vista. Antes que se falasse, nos anos 70 do século passado, na "cláusula de consciência", defendida nos congressos de jornalistas, como meio de proteger o profissional de escrever sobre assunto que não concordava, Amaral na década de 50 praticou esse gesto, embora lhe custasse o emprego. Aquele jornal dava cobertura ao governo do Estado. J. Pires, o diretor, pediu que ele, como editorialista do periódico, escrevesse um editorial, por ordem do governador Eugênio de Barros, "baixando o pau" no dentista e político ligado ao PSP, José Silva, diretor da Delegacia do IAPETC. Não aceitou a incumbência, alegando amizade pessoal com o mesmo. O diretor da folha não gostou da recusa e travaram o seguinte diálogo:
? Não pode? E por quê? É ordem lá dos homens.
? Venha ordem até do Papa. Sou amigo desse moço. Não me é possível atacá-lo. Já faço muito em não o defender.
? Neste caso tenho que dizer isso ao Alexandre [Costa]. Não quero encrenca comigo.
? Pode dizer. E, se é questão de faca no peito, veja quanto me sobra de saldo, passe o cobre e até logo.
Certa vez duas funcionárias do Sesc foram convidá-lo, bem assim, ao Alfredo Galvão, diretor do jornal Correio do Nordeste, para ministrarem aulas num curso de extensão de jornalismo, que o órgão realizaria em 1964. Educadamente aceitou a tarefa, mas no próximo número do jornal, depois de agradecer a lembrança do convite, fez divagações a respeito da profissão, nas quais desabafava queixas e mágoas, sem deixar de ser sincero:
"(…) ser jornalista, muito especialmente no Maranhão, constitui uma das maiores desventuras que pode alguém sofrer, neste mundo… Jornalismo nestes tempos em nossa terra, não é, propriamente, um meio de vida. É um meio de morte. Não é caminho aberto para conquistas ou vitórias. É, pelo contrário, uma estrada ingrata, amarga e desesperante, que só nos leva a fracassos e derrotas. (…) jornalismo é antes de tudo, uma vocação. Uma vocação que se torna vício".
No ano de 1953 ele tinha a mesma idéia sobre a profissão, e reclamava da "invasão" nas redações daqueles que não eram do ramo. Empunhando o verbo em defesa da classe, e concitando a todos os jornalistas para se unirem e discutir os problemas ligados à categoria escreveu no Jornal do Dia:
"É necessário, pois, que os jornalistas maranhenses, os homens capazes de pensar, de argumentar, de raciocinar se reúnam e protestem. Os fariseus estilo invadindo o templo. Ponhamo-los para fora. Do contrário, nunca seremos uma classe. Nunca teremos uma profissão (…)".
Nessas reclamações tinha um alvo, ou seja, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Luís ? SJPSL ?, o qual acusava de negligente, omisso e de compactuar com as bandalheiras, que o desmoralizavam, inclusive pela admissão dos penetras, entre eles médicos, políticos, empresários etc, e que só queriam usufruir os benefícios. Chegou a desafiar o órgão a processá-lo.
Em certos momentos brindava os leitores com crônicas, verdadeiras peças de um jornalismo que associava sentimento e racionalidade. Nada de melodramas, construções xaroposas, como recurso para falar das coisas simples. Era bom até quando dizia não ter assunto. Assim ocorreu na crônica "Crise de assunto":
"Sempre acordo muito cedo, apesar de me recolher tarde. Há poucos instantes, despertei. Subi a Montanha Russa [rua onde morava]; e, enquanto descansava para me restabelecer do esforço físico, fiquei a olhar as árvores e os jardins rasteiros, que florescem em frente da Prefeitura Municipal.
Ainda não havia sol. Pássaros tagarelas enchiam de música o espaço ainda brusco da hora crepuscular pousando no chão, pousando nos ramos, pousando nos fios de iluminação elétrica".
Ribeiro Simas era um poeta que não aceitava a corrente modernista e gostava de publicar as produções nos jornais. Recebeu críticas e manteve polêmicas com a inteligentzia local, inclusive com José Chagas, que o considerou um "vendedor de bananas da poesia". Tornou-se amigo de Amaral, que o conheceu numa viagem pelo interior do Estado. Acometido de um resfriado o velho jornalista foi socorrido pelo poeta que lhe deu um comprimido de Cafiaspirina, ficando-lhe agradecido.
Quando Simas publicou Canto da Paz, Amaral considerou essa estréia, como "o livro de um homem que sonha". Após lembrar aquele episódio e confessar não ser poeta e ter vontade de destruir as rimas da mocidade, teceu comentário incentivando Simas a prosseguir com o seu sonho, mas com uma advertência, como a recomendar algo mais e com diplomacia:
"Para outra vez, porém, mande imprimir seus versos em outra gráfica. A que lhe fez seu Canto da Paz deixou muito a desejar".
A crônica tem passagens comoventes, pelo sentimento de gratidão àquele que lhe devolvera a disposição de continuar viagem no lombo de um burro.
Campanha pela educação
O filho de Grajaú dispensava um carinho especial aos professores, sem esquecer o papel da alfabetização no desenvolvimento de uma sociedade. Foram muitos os artigos e editoriais escritos para defender um salário digno aos educadores, incluindo este problema como responsável pela má qualidade do ensino. Muitos desses mestres de primeiras letras, segundo denúncias, não ganhavam a metade de um salário mínimo. Escrevendo a respeito do Dia do Professor comparou a data ao Dia do Mendigo Nacional:
"Acrescentar que são mendigos é pouco. Porque os mendigos andam de pés no chão, andam maltrapilhos, andam sem gravata, andam como Deus é servido. O professor, não. O professor tem que dar satisfação à sociedade, através da roupa que usa e da decência que a profissão lhes impõe. É, assim, duplamente sacrificado. Está, portanto, em situação muito mais desesperadora do que os infelizes que esmolam na porta da Igreja ou pedem resto de pão à porta dos hotéis".
Em Carta Aberta ao Governador Newton de Barros Bello (MA), em 64, reclamou do salário das professoras do interior, denunciando:
"Essas criaturas, delas com tempo de serviço além de 20 anos, estão percebendo, um vencimento que nenhuma cozinheira hoje em dia aceita. Não recebem um ordenado. Recebem uma humilhação, uma afronta, um acinte mensal à sua dedicação, ao seu esforço, ao seu sacrifício".
As estatísticas do analfabetismo o preocupavam. Não aceitava a idéia de que o Brasil tivesse tantas pessoas sem ler. Não acreditava num país próspero sem antes deflagrar um programa de alfabetização que atingisse crianças e adultos. Daí ser contra o voto do analfabeto. Quando uma proposição nesse sentido obteve consenso no Congresso Nacional, no começo da década de 60, registrou opinião com o artigo "Passou finalmente o monstrengo". Logo depois, como ocorreu o inverso, ou seja, a proposta foi rejeitada voltou ao assunto: "Caiu o voto do analfabeto ? e justificou: "Tenho, agora, o consolo cívico que essa inqualificável imoralidade não logrou ser enxertada no processo eleitoral vigente".
Discurso sem verbo
Eis abaixo a segunda parte do discurso, este sem verbo, do jornalista Amaral Raposo, fato raro na vida literária brasileira, ao ingressar na Academia Maranhense de Letras:
"Em tais circunstancias, já agora, sou compelido a cumprir, embora em parte, a promessa, ou a empresa a que me aventurei, bem inadvertidamente.
Consegui-lo-ei? Dir-no-lo-á, depois, vosso julgamento, Senhores Acadêmicos:
Onde, agora, os elementos essenciais à consecução da meta: em pauta? Ante o fulgor sideral da personalidade de Luiz Viana, surpreendente de ilustração e de cultura, onde em mim a energia espiritual, a força de análise, os recursos de intuição, e, ainda, onde os documentos imprescindíveis ao estudo e à crítica para o elogio do vitorioso didata?
Onde, em mim, a esta altura de uma existência sem brilho e sem relevo, portador de um coração já deserto de impulsos criadores e de uma alma já órfã de esperanças, de idealismo e de sonho, a conquista dos clarões mentais, indispensavelmente necessários ao exame de tão preclaro representante da capacidade científica maranhense, das vitórias literárias maranhenses, dos triunfos poéticos maranhenses, sobretudo da extraordinária vocação pedagógica do insigne conterrâneo, tão viva e palpitante, entre as cogitações desse grande vencedor de mil batalhas, nos altiplanos da erudição e da sabedoria?
Por isso mesmo, para quem as solenidades desta noite? Para quem esta reunião dos mais capacitados expoentes do nosso romance, do nosso periodismo, de nossa poesia, de nosso teatro, de todas essas múltiplas e luminosas atividades, presentes, sempre, nas elevadas preocupações dos homens de pensamento e de cultura?
Acaso por minha causa, acaso para mim, obscuro combatente de campanhas sem vitórias, por mim, vaga figura sem projeção e sem nome, além das fronteiras provinciais de nossa terra? Certo que não. Para quem esta honra grandiosa, tão repleta de beleza espiritual, de encantamento e de sonho? Para mim, para a inútil insignificância do meu nada? Ainda não. Para quem, pois, a homenagem? Para Luiz Viana, para o infatigável mestre de sucessivas gerações, para o professor do Instituto de Manguinhos, para o belo cronista de O Estado de S.Paulo, para o diretor de Instrução Pública da Parnaíba, para o catedrático de história natural do Liceu Maranhense; num crescendo incessante de funções e de cargos, cada qual mais à altura de nossos louvores, de nossa admiração e de nosso respeito, para o Diretor do Liceu Maranhense, para o idealista e o pioneiro da Escola Normal do Maranhão, para o fundador, logo depois, do Colégio de São Luís, essa tradicional fonte de educação moral e cívica de nossa mocidade estudiosa". (Fonte: Revista da AML, junho de 1998).
Sim, para ele, e dele, a expressiva grandeza desta solenidade para a consagração póstuma de seu vulto imortal, para a catalogação definitiva de sua obra e sua vida no Panteão da História, ao lado dos espíritos de exceção, junto, finalmente, e para sempre, aos grandes homens, às grandes e inolvidáveis personalidades da gleba natal.
(*) Professor universitário, jornalista e advogado; e-mail: sbjorge@uol.com.br